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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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31
Mai10

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

17 – “Estamos fodidos, estamos fodidos, agora vai aparecer aí o Dr. Sebastião e pôr-nos a todos na rua. O funcionário já nos tinha avisado que não eram permitidas brincadeiras com armas de fogo dentro do Centro de Trabalho. Mas o Martins é maluco de todo. Se vier aí a polícia quero ver como ele descalça a bota”, disse o UEC subalterno. O UEC, que embirrava com os cristos pendurados na parede das salas de aula, avisou: “És um medricas. O Dr. Sebastião não manda em nós. Lá por o Centro de Trabalho estar alugado em nome dele não quer dizer que nos trate como carneiros. Mais a mais, ele é um burguês. E os burgueses podem ser aliados do proletariado para tomar o poder… mas, aí chegados, cada um está por sua conta e risco”.

E o Dr. Sebastião apareceu. Vinha furibundo e atrapalhado. Ele, que era um homem calmo e apresentável, apareceu no Centro de Trabalho desalinhado e histérico. E gaguejou durante muito tempo o seu discurso, quase até o tornar perceptível. Avisou a rapaziada que não permitia atitudes aventureiras dentro do CT, que a Dona Marcelina tinha aceitado alugar a casa ao Partido por se tratar do Dr. Sebastião (ele próprio), que era o seu médico e por quem tinha deveras respeito e admiração. Muita gente tinha advertido a Dona Marcelina que alugar a sua casa a comunistas era um mau negócio. Que podiam pôr bombas, que podiam andar aos tiros, que podiam incendiar a casa, avisaram-na. E a ditosa Dona Marcelina tudo isso contou ao Dr. Sebastião. A solução encontrada foi ele (o Dr. Sebastião) responsabilizar-se pelo bom comportamento dos seus camaradas. Mas ninguém pode prever o comportamento do ser humano. Muito menos em ambiente revolucionário. Isto apesar de a revolução estar longe e apenas chegar a Névoa através dos jornais (quase todos dominados pelos comunistas), da televisão (também dominada pelos comunistas) e da rádio (igualmente dominada pelos comunistas). Mesmo a revolução democrática e nacional estava literalmente ocupada pelos comunistas. E o mesmo se podia dizer das casas de banho (agora transformadas em autênticos jornais de parede) dos cafés, dos bares e dos restaurantes, onde as piadas brejeiras deram lugar a textos inflamados de apoio à revolução e de crítica contundente à classe dominante, onde todos os homens eram agora burgueses e paneleiros e as mulheres eram todas putas debochadas. Do lesbianismo ainda os militantes revolucionários da agit-prop não tinham sido informados. E os que não eram uma coisa nem outra só podiam ser trotskistas.

E agora aquilo. O Dr. Sebastião não se conformava. Os comunistas, que eram por definição gente responsável, educada e moralmente superior, andavam a dar tiros nas paredes, como se fossem garotos. Corriam até boatos que existiam no CT bombas enterradas.

Sobre as bombas, o UEC que alvejava cristos prontamente desmentiu o boato. Aquele era o seu tesouro revolucionário e não estava decidido a partilhar a informação da sua existência com um burguês, mesmo que se afirmasse comunista e tivesse passado pelas prisões salazaristas por distribuir jornais do Partido.

Perante o mutismo esquerdizante dos UEC, a indiferença activa do Martins e a sisudez imbecilizante do funcionário, o Dr. Sebastião acalmou. O passo seguinte foi marcar uma reunião da Comissão Política Concelhia para discutir o assunto para essa mesma noite. Perante o ambiente insurreccional que se vivia no CT, os camaradas dirigentes resolveram, a sugestão do Dr. Sebastião, reunir-se na sala de jantar da sua residência. A ter lugar no CT, a grande maioria dos quadros dirigentes revolucionários podia vir a ser insultada pela arraia ignara na casa que diziam sua, mas que de facto pertencia, por direito arrendatário ao Dr. Sebastião. Bem vistas as coisas, era ele quem pagava a renda. Em nome do Partido, é certo, mas o dinheiro era dele. Ou melhor, dos seus doentes, que a troco das consultas o remuneravam com algum custo mas copioso reconhecimento. Os comunistas mais rancorosos afirmavam, entre dentes, que a saúde era um direito do povo, por isso o dinheiro cobrado pelas consultas transformava o Dr. Sebastião num explorador. Mesmo aliado do povo e comunista detentor da indelével insígnia da sua passagem pelas prisões políticas fascistas, não deixava de ser um mero cúmplice circunstancial do proletariado que a seu tempo deixaria de poder prosseguir na mesma senda, por manifesta contradição de classe. O materialismo dialéctico assim o profetizava. E o que a ciência política marxista-leninista afirma nenhuma teoria burguesa consegue contradizer.

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