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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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21
Mai10

A vil tentativa

João Madureira

 

“Segundo as Actas do Clube, parece, pois, que o Sr. Pickwick parlamentou sobre a sua descoberta numa assembleia-geral, convocada para a noite seguinte do seu regresso, e entabulou várias especulações eruditas e brilhantes sobre o significado da inscrição. Parece também que um artista talentoso executou um esboço fiel da curiosidade que se achava inscrita na pedra, a qual foi apresentada à Real Sociedade de Arqueologia e a outros órgãos eruditos; que imensos rancores e invejas surgiram de controvérsias hostis escritas sobre o assunto, que o próprio Sr. Pickwick escreveu um folheto, com noventa e seis páginas numa fonte minúscula, oferecendo vinte e sete leituras diferentes da inscrição; que três cavalheiros idosos cortaram na mesadas dos seus filhos varões, um xelim a cada, por terem duvidado da antiguidade do fragmento; que um indivíduo especialmente entusiasta se apartou prematuramente deste mundo, desesperado por não conseguir discernir o seu significado; que o Sr. Pickwick foi eleito membro honorário de dezassete sociedades nacionais e internacionais, devido a esta descoberta; que nenhuma dessas dezassete associações conseguiu achar-lhe o sentido, mas que todas as dezassete foram unânimes quanto à sua extraordinária singularidade.

É certo que o Sr. Blotton – e que possa este nome merecer o desprezo eterno de todos quantos cultivam o misterioso e o sublime – , este senhor, dizíamos, com a suspeição e a natureza sofismática que caracteriza os espíritos vulgares, aventou uma leitura do caso tão ridícula quanto degradante. O Sr. Blotton, com o desejo mesquinho de manchar o brilho do nome imortal de Pickwick, foi ao ponto de se deslocar ele próprio a Cobham e, quando regressou, observou sarcasticamente numa palestra ao Clube que conversara com o homem que vendera a pedra, que esse homem estava convicto de que era antiga mas que negara terminantemente a antiguidade da inscrição, visto alegadamente ter ele próprio gravado tais letras por desfastio, de forma a configurarem nem mais nem menos do que a simples indicação «A marca de Bill Stumps», e que, sendo esse Sr. Stumps pouco versado em escritos originais, e geralmente mais atento ao som das palavras do que às regras exactas da ortografia, omitira o «L» final do seu nome de baptismo.

O Clube Pickwick, como seria de esperar de uma instituição iluminada, acolheu esta declaração com o desprezo que merecia, expulsou da sociedade o presunçoso e velhaco Blotton e deliberou a oferta de um par de óculos de ouro ao Sr. Pickwick, como sinal da sua confiança e aprovação; o Sr. Pickwick, mostrando por seu turno a devida gratidão, mandou pintar um retrato seu e pendurou-o na sala do clube – sem que manifestasse, note-se, qualquer desejo de que esse retrato fosse destruído quando se acrescentassem os anos à sua idade.

O Sr. Blotton saiu vencido mas não convencido. Escreveu também um panfleto, que endereçou às dezassete sociedades eruditas, repetindo a declaração que já fizera e deixando um pouco mais do que implícita a insinuação de que as sobreditas dezassete sociedades eruditas eram elas próprias muito crédulas. Uma vez atiçada a indignação virtuosa das dezassete sociedades eruditas, multiplicaram-se os folhetos; as sociedades eruditas estrangeiras corresponderam-se com as nacionais, as sociedades eruditas nacionais traduziram para inglês os folhetos das internacionais, e estas por seu turno traduziram os folhetos das sociedades eruditas nacionais para as mais diversas línguas; e assim começou a célebre discussão científica que ficou conhecida mundialmente como a «controvérsia de Pickwick».

 A vil tentativa de insultar o Sr. Pickwick, porém, recaiu sobre a cabeça do seu calunioso autor. Todas as dezassete sociedades eruditas votaram uma moção declarando que o presunçoso Blotton era um metediço ignorante, e desde então deitaram-se a redigir mais tratados do que nunca. E a pedra permanece, até aos nossos dias, como um monumento ilegível da grandeza do Sr. Pickwick e um perpétuo troféu sobre a pequenez dos seus inimigos.”

 

Os Cadernos de Pickwick – Charles Dickens – Tinta da China

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