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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Jan12

O Filisteu na quinta da Anita

João Madureira

 

As tardes deste inverno de sol tímido dão-me tristeza. Uma tristeza densa e fria como já há muito não sentia. Quando era jovem, por vezes utilizava-as para, em vez de estudar, pôr-me a ler lindos romances de capa e espada. Enquanto lá fora o sol envergonhado nem sequer derretia a geada, dentro de casa, aquecido à lareira, imaginava como eram bonitos e corajosos os heróis dos romances de aventuras, de uma coragem verdadeira, a coragem de quem vence o medo pelo sentido de justiça e aspira a endireitar o que de torto encontra nos quatro cantos do mundo.

 

Mas depois também penso que quem faz da vida apenas uma enorme recordação não tem grande futuro.

 

Nos tempos que correm querem fazer-nos crer que os intrujões que estão no Governo são homens bons. Certamente que já o foram. No fundo todos o somos, apenas nos tornamos maus por culpa de alguém que, por sua vez, também se tornou mau por culpa de alguém que, por sua vez, também se tornou mau por culpa de outro. Sim, eu sei. Esta é uma cadeia infindável de culpados, mas sempre haverá alguém que lhe escapa.

 

O discurso dos nossos governantes é brutal, de uma brutalidade quase insana. Essa brutalidade pretende devorar quem se faz apetecido, o povo, este povo que se vê a caminho do precipício e é incapaz de dizer basta, que prefere falar em voz baixa, fazer pequenos gestos que querem dizer, “por favor, senhores ministros não se irritem, por favor”, assumindo sempre o tom de delicadeza atemorizada dos cordeiros, tentando acreditar que o futuro é cada um de nós sacrificar-se na convicção de que a vida não é feita senão de abdicação, subserviência e lástima. Este Governo brutal é incapaz de fazer melhor porque optou, inexoravelmente, por nos tornar piores.

 

Desta vez pretendia não vos falar das nomeações que o Governo fez. Mas a indignação tomou as rédeas deste meu escrito e, como muito bem diz o nosso povinho, o que tem de ser tem muita força. Ora pois então.

 

Dizem os jornais que nos primeiros seis meses de governação Pedro Passos Coelho já nomeou mais gente para cargos políticos do que o primeiro Governo do malfadado José Sócrates. E estão prometidas muitas mais nomeações nos próximos tempos. Ora isto marca um ponto de viragem na austera imagem do Governo. Já bem nos dizia António Aleixo: Os que bons conselhos dão / às vezes fazem-me rir / por ver que eles mesmos, são / incapazes de os seguir.

 

 

A cereja no topo do bolo foi a nomeação dos administradores para a EDP. A cangalha é constituída por: Rocha Vieira, um ex-militar ligado ao PSD; Jorge Braga de Macedo, ministro de Cavaco Silva, PSD retinto e histriónico, com certos tiques de esquizofrenia mediática e verborreica; Paulo Teixeira Pinto, ex-secretário de Estado de Cavaco Silva, PSD ilustre, pintor nas horas vagas e poeta nos anos bissextos; Ilídio Pinto, acionista da Fomentinvest, curiosamente a última empresa onde Passos Coelho trabalhou. E ainda a inenarrável Celeste Cardona, antiga ministra da Justiça do governo do PSD/CDS.

 

Catroga, o homem que não gosta de discutir “pintelhos”, mas adora ganhar milhões enquanto os outros andam a contar os tostões, diz que as escolhas, entre elas a sua, foram feitas porque os chineses já os conheciam. Estamos em crer que sim senhor. No entanto não são estes os únicos portugueses que são conhecidos dos chineses.

 

Sabemos de ciência certa que todos os trapaceiros acima citados são pessoas com fortíssimas ligações aos partidos da (des)governação. Ou seja, o PSD e o CDS, que gritavam aos quatro ventos o escândalo das putativas nomeações dos “boys” pelo governo do engenheiro Sócrates, duma vez só envia, e pela mão enluvada do primeiro-ministro, para as cadeiras douradas da EDP, um grupo, não de “boys”, mas antes de “old boys”, quinquilharia que, de tão gasta e ferrugenta, devia era ir para abate.

 

No entanto Pedros Passos Coelho resolveu pagar àqueles “príncipes aposentados” o preço do compadrio, da gestão dos lobbies, da baixa política de bastidores, da subserviência, da mentira, da demagogia, da inoperância, do “amiguismo” e do embuste.

 

Apesar de me custar, tenho de o dizer, este primeiro-ministro é um intrujão. É um aldrabão porque disse coisas que ficaram escritas e que atestam o seu grau de impostura.

 

A 14 de julho de 2011, afirmou na reunião Nacional do PSD: “A nossa preocupação não é levar para o Governo amigos, colegas ou parentes, mas sim os mais competentes.”

 

As nomeações para as “Águas de Portugal” indicam precisamente o contrário. Para lá foram indicadas pessoas de competência técnica mais que duvidosa, mas todos eles com cartão ou do PSD (que se anda a empanzinar de tachos) ou do CDS (que também se anda a fartar à custa do Estado, que diz abominar e pretender destruir).

 

Em plena campanha eleitoral, o trafulha do atual primeiro-ministro, afiançou para quem o quis ouvir. “Não quero ser eleito para dar emprego aos amigos”. Seis meses após ter ido para o governo já atulhou todos os cargos de nomeações com gente do PSD e do CDS. Mesmo para o Centro Cultural de Belém nomeou o putativo Dante português, Vasco Graça Moura, que até se benzia e cuspia sempre que falava do engenheiro Sócrates e dos seus “boys”.

 

O burlão do primeiro-ministro, apesar de ter escrito no programa executivo do PSD/CDS que “o Governo compromete-se a despartidarizar o aparelho do Estado”, está a fazer exatamente o contrário. Todos os cargos estão a ser ocupados pelos militantes e simpatizantes do PSD e do CDS.

 

O filisteu que nos (des)governa, disse ao DN a 27 de julho de 2011 que “quando nos aparecer alguém a dizer ‘são todos iguais’, perderemos o tempo que for preciso a explicar ‘não, não somos iguais’”.

 

Isto para não falar na tal ladainha de vendedor de banha da cobra sobre o “impensável” corte no subsídio de férias e de Natal, na mais do que “improvável” subida de impostos, no “reforço e melhoramento” do Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social, na mais que “provável descida” da taxa de desemprego, etc., etc., etc., etc., etc. e etc, e etc. e ainda mais etc. etc. e etc. e tal.

 

O nosso presidente da República, com a sua incomensurável idiotice de gato pardo, tentou fazer-se de coitadinho, caindo no ridículo e perdendo a compostura. Ele que se reformou e se vai locupletando com as benesses de um Estado que ajudou, e de que maneira, a falir, criando um buraco financeiro do tamanho da cratera do vulcão dos Capelinhos. Já George Orwell nos tinha lembrado que todos os animais são iguais, só que há uns animais que são mais iguais do que outros.

 

As mentiras como punhos que este Governo teima em propalar, de forma vingativa em relação ao seu povo, tornam atualíssima uma quadra de António Aleixo: P'ra mentira ser segura / e atingir profundidade / tem de trazer à mistura / qualquer coisa de verdade.

 

PS – Tenho de confessar, embora me custe, que desta vez tinha destinado este espaço para escrevinhar algumas palavras de aplauso e reconhecimento ao presidente da Câmara de Chaves pela sua “década de progresso” frente aos destinos da nossa cidade e do nosso concelho. Por desgraça, o chefe do governo da Nação meteu-se ao meio e desviou-me do meu principal objetivo. Prometo que fica para a próxima. Desde já as minhas mais sinceras desculpas. 

27
Jan12

O Homem Sem Memória - 99

João Madureira

 

99 – Tanta teimosia só podia definir um destino: o calabouço. E foi para lá que o nosso estimado herói foi enviado, com alguns dentes partidos, várias escoriações no rosto e distintos hematomas no lombo. Fora isso, a sua vontade continuava bem viva. A sua vontade, a sua atitude, o seu pensamento e a sua determinação.


Uma vez contestatário, contestatário para sempre. Honra lhe seja feita. Pois existem aqueles homens que contestam muito no início mas esmorecem logo a seguir. O José não. O José é vinho de outra pipa. O José é um herói à maneira antiga. Herói uma vez, herói para sempre. Honra lhe seja feita. Pois existem muitos heróis que são heróis mal chegam à história, mas desistem logo passadas algumas páginas porque ser herói dá muito trabalho. Especialmente ao autor. Mas que seja tudo pelas alminhas de todos os heróis que já existiram e, também, pelas alminhas de todos os outros que hão de existir daqui para o futuro.


O José continuava a viver entre almocinhos e jantarinhos fornecidos pela sua querida mãe, um que outro passeio devidamente escoltado pelos compinchas cevados com as iguarias da Dona Rosa, duas ou três cigarradas logo após o café e o bagaço, muita leitura e pouca escrita.


Podemos dizer que a situação e o cenário eram propícios a inspirar uma escrita assertiva, fogosa, denunciadora das múltiplas arbitrariedades praticadas pelo Estado Novo, acusadora da prepotência do sistema político, do poder judicial e da brutalidade do sistema repressivo levada a efeito pelas forças militares e militarizadas. Podia ainda, fruto da sua experiência, escrever sobre o evidente logro da mensagem cristã, ou, pelo menos, da aldrabice difundida pelos seus protagonistas – os tais que ocupam os altares e ensinam nos seminários –, podia descrever a decadência burguesa das supostas elites nevoenses, da sua emergente e eterna banalidade, da sua inenarrável estupidez e ignorância, podia ainda escrever sobre a sua experiência de vida entre o lumpen, sobre o seu convívio com putanheiros, putas, paneleiros, pintores, guardas e demais pimpões. Lá poder podia, mas o José era fiel à indolência e à dúvida metódica que carateriza os intelectuais.


Apesar deste caldo de cultura, deste manancial de informação, deste viveiro de saber, o José não conseguia escrever coisa que se visse. Pensava que ainda não tinha chegado o tempo certo para que as coisas lhe saíssem devidamente temperadas. A sua escrita evidenciava um desequilíbrio preocupante. Pelo menos para ele. Ou era claramente denunciadora, panfletária e repleta de azedume, ou, então, tendia para um romantismo bacoco e tão ingenuamente revolucionário que provocava enjoo e riso, qualificativos que não eram bem-vindos em tais andanças.


Por causa das vicissitudes, em vez de escrever, lia. Mas também não lia lá grande coisa. Os livros sobre marxismo, que alguns amigos lhe levavam ao calabouço disfarçados de romances de amor, davam-lhe uma soneira imensa e os que versavam sobre o leninismo, encadernados com capas de brochuras religiosas, provocavam-lhe enxaquecas terríveis. Para não esmorecer, começou a pedir à mãe que lhe levasse, às escondidas, claro está, revistas de banda desenhada e livros pequenos de cobois e romances de cordel.


Sem a mãe saber, os amigos presentearam-no, sobretudo nas noites dos fins de semana, que era a altura em que o posto estava quase deserto, com uma que outra meretriz mais atrevida. E se a comida confecionada pela mãe lhe chegava aos beiços pelo facto de ela encher o bandulho dos guardas que estavam de plantão, bem assim como o oficial de serviço, as meninas da vida apenas lhe puderam ser servidas porque atrás delas traziam o Embuçado, camuflado de tenente da GNR. Os amigos são para as ocasiões. Mesmo que essa amizade por vezes aparente uma outra coisa.


Pode até parecer mentira, mas o nosso estimado herói vivia agora uma vida dupla. Fazia que lia livros políticos, romances históricos e poesia moderna, super moderna, contemporânea ou experimentalista, para agradar aos seus amigos, que já o consideravam um resistente anti-fascista, mas o que de facto apreciava era ler BD, Sete Balas e romances cor-de-rosa.


Também recebia, a pedido da sua querida mãezinha, a visita de um padre que o confessava e lhe dava a eucaristia, e a quem dizia não pensar em mulheres, nem em nome delas se tocar. Afinal, como bem sabemos, recebia em segredo duas putas atrevidas que, a troco de algum dinheiro e de um ou outro poema erótico de baixa qualidade, que o José guardava para estas ocasiões, lhe entregavam o corpo como quem entrega a alma ao Criador.


As histórias que relatam a vida dos heróis na cadeia, heróis quase sempre vítimas da prepotência de algum sistema político ou de um tremendo erro judicial praticado por um malfeitor da pior espécie, introduzem sempre na cela do protagonista um animal. Um pequeno animal que serve para demonstrar, a quem lê ou vê um filme, que o herói é um homem de corpo inteiro, pois até o podem acusar de agitador, terrorista, assassino ou ladrão, mas quem domestica ratos, quem adota pardais, educa baratas ou ensina formigas, só pode ser um anjo. E um anjo muito, mas mesmo, muito bom, não um anjo apenas suficientemente bom, ou bom tout court.


Só que desta vez a história não se repete, ou não se repete dessa forma. Pois o calabouço do posto da GNR não tinha janeluco algum para o passarinho entrar e a mulher da limpeza desinfetava o posto com produtos tão tóxicos que eliminavam todas as formigas e baratas que tivessem o atrevimento de invadir as instalações das forças da ordem.


Mas sobra o rato, dirão os estimados leitores. Pois sobra, tenho de concordar. De facto sobra o tal ratinho que adora ser domesticado pelo herói prisioneiro, que lhe faz festinhas no pêlo branquinho, que lhe dá de comer suculentas migalhinhas de pão centeio e um que outro naco de queijinho que o citado herói, apesar de ser pouco aquele que lhe trazem, nunca se esquece de repartir com o seu ratinho companheiro de cela.


Mas nem o rato desta vez nos salva a história, nem sequer nos evidencia a coragem e a excelsa humanidade do José. Isto apesar de haver buracos na cela onde o José estava confinado. E é verdade que também havia queijinho, e do bom, e pãozinho centeio com fartura. Mas não havia rato. E não havia ratinho porque todo o quartel era patrulhado por um gato enorme que tinha tanto orgulho em ser a mascote do pessoal da GNR de Névoa que não brincava em serviço.


Podia o nosso amigo pegar no bicho, se recebesse a respetiva autorização, e pôr-se a ensiná-lo a usar botas, ou a falar. Mas nem o nosso herói é seguidista nem o autor é parvo. Ou mentiroso, sequer.


Por isso vamos ter de nos conformar com a situação. Além disso, esta também pode ser uma forma de demonstrar que um livro, apesar dos milhões que já se escreveram, pode ter uma pontinha de originalidade.


Pensarão os estimados leitores que presunção e água benta cada um toma a que quer. E estão no seu legítimo direito de assim pensar. Mas, por favor, não se esqueçam que o contrário também é verdadeiro. Apesar de o contrário ser um pensamento intrincado de definir. Mas também quem é que vos disse que a boa literatura é fácil?


Pensarão os estimados leitores novamente que presunção e água benta etc., e estão no seu legítimo direito, mas uma vez mais vos lembro que o contrário também pode ser verdadeiro. O que nos remete outra vez para o intrincado da mensagem. Por isso, fiquemo-nos por aqui. Ou aderem à tese da presunção ou ficam do meu lado. Se optarem pela segunda hipótese, agradeço-lhes desde já. Se optarem pela primeira premissa, amigos à mesma e que vos faça bom proveito. Mas lembro aos estimados leitores que se optarem pela primeira hipótese, que ela pode ser objeto da mesma argumentação pela minha parte, ou seja que presunção e água benta cada um toma a que quer. Resumindo e concluindo (já cá faltava o lugar comum), na leitura de um texto e na sua interpretação, cada um está por sua conta e risco. E é bom que assim seja. Avancemos. 

25
Jan12

O Poema Infinito (84): a memória e o lugar

João Madureira

 

A memória tem o odor inultrapassável dos alicerces de cada vida. Tem o toque da seiva lenta da árvore da juventude, o bordado meticuloso dos corpos virgens e nus, a vegetação mirabolante dos olhares, a respiração profunda do musgo dos muros, o toque frio dos tanques onde as mulheres lavavam a roupa, o grito das flores que chamavam pelas abelhas, o denso sabor da tua boca, a textura fina dos teus lábios, a luminosa água das fontes, a simplicidade interminável dos mapas que ilustravam as paredes brancas das escolas, o sabor espremido dos frutos que tanto sabiam a noite como a amanhecer. É essa dolorosa memória que me faz lembrar dos iridescentes berlindes com que jogávamos, dos tímidos jogos do botão, das rudes brincadeiras do trinca cevada, do espeto, do sábio trabalho de amassar o pão, do fogo da lareira, do mapa do tesouro escondido no rosto da minha avó, do interior da casa, do velhíssimo segredo dos castelos, do semblante marcado dos carvalhos, das manhãs cheias de neblina, das tardes inundadas de sol, das noites repletas de estrelas. Olhávamos o fogo e descobríamos os corpos dos espíritos que nos faziam companhia sentados ao nosso lado no escano. Agora o tempo atropelou tudo ao nosso redor. Por isso nos esquecemos dos objetos íntimos. Agora as palavras respiram num medo cada vez mais recente. E cada vez mais antigo. Agora viajámos sem rumo transgredindo o voo perpétuo das aves do silêncio. O ofício da memória rouba-nos a luminosidade do vagaroso olhar dos místicos. Por isso te atravesso sem me deter, tentando debelar a ruína e registar definitivamente a luz do teu olhar verde. Tento ainda perceber a exata voz das plantas, o naufrágio colorido dos astros, o rumor denso dos sonhos, o amor translúcido das montanhas, o tempo do trigo verde, a imediata paciência das paisagens, a invocação da chuva, o delírio das mãos dos amantes, a insónia das constelações, a direção dos solstícios, o consolo mortal do veneno das serpentes. O tempo ensinou-me o mágico ofício da escrita, o valor da obra, a persistência. O sol ensinou-me o caminho das pedras. Os rios ensinaram-me o regresso pelas margens. Agora conhecemos a solidão, a velocidade cruel do tempo, a indiferença crua de Deus, a inquietante sonolência dos humanos, a intensa revelação dos jardins da memória. Enquanto a madrugada cintila tudo parece continuar insensivelmente igual: a casa na sua quietude lunar, os espelhos submersos na penumbra da sua cada vez maior inutilidade, as cadeiras na sua eternidade sentada, as janelas a inventarem a sua necessidade de luz, o inverno a dilatar o frio, os corpos a ramificarem-se no seu inexorável envelhecimento. Sou cada vez mais um filho do delírio à procura do meu lugar para morrer. 

23
Jan12

O crime não pode compensar

João Madureira

 

O meu amigo R., sub-repticiamente, e mesmo antes que eu consiga começar a minha inevitável preleção, tenta estabelecer uma relação, que ele diz dialética (pudera!), entre o jazz e o marxismo. Eu lembro-lhe das tentativas falhadas de comparar o freudismo com o marxismo e da barraca que deu quando o verdadeiro marxismo (o leninismo) foi experimentado em diversos países. Ele põe cara de caso e atira-me com o argumento de que eu não acredito em nada, que contesto tudo, que até ponho o universo em causa. Digo-lhe que, por favor, não exagere. Explico-lhe que sou a modos como um cozinheiro que consegue, ou pelo menos tenta, transformar os sentimentos em sopas e as evidências em palavras. O que, convenhamos, nem sempre é fácil.

 

Ele, desviando o olhar e a conversa, lembra que cada vez mais Portugal cheira a tragédia. E a aventura e a extravagância. Eu contraponho que é tudo isso o que nos vai arrastar para o tédio. O tédio, e a estagnação, em que se transformou a nossa cidade. O que, inevitavelmente, nos irá arrastar para a extravagância e para o desespero. Isto se não conseguirmos deitar-lhe uma mão a tempo. Ou mesmo as duas, pois a nossa cidade bem necessitada está de uma barrela.

 

Ele mostra-me uma fotografia antiga e aponta-me o seu rosto no meio do grupo. Não o reconheço. De facto, as crianças nas fotografias são iguais umas às outras. Então vestidas de escuteiros são quase impossíveis de distinguir.

 

Ali onde o veem, o R. ensinou-me muita coisa. Foi sempre um homem de bastidores. Honra lhe seja feita. Uma vez atirou-me com esta: “Já algum dia viste as traseiras de uma tribuna? Agora que tens a mania de que queres dedicar-te à política, é bom que te vás familiarizando com as traseiras das tribunas antes de seres arrebanhado pelo frenesim do pedestal. É aí onde está o poder. Quem, como eu, já viu a parte de trás de uma tribuna, com olhos de ver, claro está, fica marcado, ou melhor, fica imunizado contra todo o género de bruxedo que, de uma forma ou de outra, é celebrado em tribunas. É muito semelhante com o que se vê das traseiras de um altar de igreja, mas isso são outras histórias.

 

Está bom de ver que o meu amigo R. é um cético que abandonou o seu partido porque nunca lhe deram a atenção que ele considerava merecer. E olhem que foi um militante ativo e responsável. Claro que era um homem iminentemente de bastidores, mas, de certa forma, um fazedor de estratégias vitoriosas.

 

No início apenas dedicava ao partido as manhãs de domingo. Enquanto os outros abalavam para a missa, o R. ia para a sede fazer aquilo que tinha de ser feito: telefonar, agrafar documentos, pôr a contabilidade em dia, receber cotas, agrupar colantes, limpar o pó às fotos dos dirigentes, tornar a telefonar, substituir bandeiras, agrafar mais documentos, organizar os dossiês com recortes dos jornais, fazer ainda mais alguns telefonemas, colocar em pastas os documentos agrafados, colocar o dossiês nas respetivas prateleiras e fazer os últimos telefonemas.

 

Nos seus anos de árdua militância aprendeu a acenar sempre que os outros lhe acenavam, berrar quando os outros berravam, especialmente em desfiles e comícios, rir e bater palmas quando os outros riam e batiam palmas. E a obedecer ao dirigente (ou dirigentes), concordar com o dirigente (ou dirigentes), e nunca discordar do dirigente (ou dirigentes), mesmo que ele (ou eles) estivesse (ou estivessem) longe da vista. Pois podiam estar longe da vista mas estavam sempre perto do coração. Nisso, o seu partido contrariava a sabedoria (e um que outro anexim) popular. Era a regra que confirmava a exceção.

 

O seu partido anunciava-lhe a felicidade. A felicidade tocada a ritmo de tambor e temperada com a melopeia do hino do partido. Mas acho que foi no tema da felicidade que a sua fé no partido começou a soçobrar. Ele procurava a felicidade no partido, ou com o partido, mas quedava apenas com o sabor da sua substituição. Disseram-lhe que a felicidade também pode ser de substituição. Disseram-lhe ainda mais: que a felicidade substitui a própria felicidade. E que essa é a felicidade sedimentada. Desistiu.

 

Fomos apanhar ar e tentar agarrar um pouco de sol. Passámos na Eira (antigo Jardim das Freiras) mas lá ninguém se conseguiu sentar porque os bancos estavam a ser utilizados, e vandalizados, por jovens que com os seus skates fazem deles rampas de lançamento ou plataformas de aterragem. O repuxo continuava a lembrar-nos, como se fosse preciso, que os dias estão cada vez mais húmidos. O R. não se conteve: “Quem destruiu o jardim merecia ser julgado em praça pública. Um atentado destes merecia ser severamente punido. Isto não se faz.” Eu tentei temporizar: “Lá chegará a hora dos flavienses porem essa gente no olho da rua.”

 

Eu ainda sugeri que nos sentássemos nos bancos da rua de Santo António. Ele apenas disse: “Cruz, credo! Trânsito pelas costas? Nem pensar. Os carros são como os touros, devemos lidá-los sempre de frente.”

 

Fomos até ao Tabolado, sentámo-nos, abrimos as pernas e pusemo-nos a olhar o Tâmega enquanto o sol nos batia em cheio no corpo. Mas, mesmo assim, aquilo era mais luz que calor. Pelos vistos, até o astro rei está em crise.

 

Ficámos sentados um bom bocado. Por isso nos começámos a sentir também de madeira e com necessidade de comunicar. Todos os que ali estavam eram gente idosa, dependentes das condições atmosféricas. Sobretudo as mulheres, voltaram a ser raparigas tagarelas. E os homens também fizeram questão em lembrar as suas brincadeiras de criança, quando corriam uns atrás dos outros, quando perseguiam os casais de namorados.

 

Eu olhei para o R. e o R., olhou para mim. De súbito tivemos saudades. Uma saudade imensa da nossa velha cidade, onde aos sábados e domingos os jardins se enchiam de casais de namorados, onde nos conhecíamos uns aos outros, onde o convívio era são e pacífico, onde a vida se sentia nas ruas, nos comércios, nos cafés, nas praças, nos jardins. Actualmente a cidade ao sábado e, especialmente, ao domingo é um deserto de pedra e um cemitério de memórias. Basta olhar para os flavienses mais idosos para repararmos como choram por dentro. Ninguém passeia nos jardins, enquanto a rapaziada grita e pula em trejeitos de ameaça. Os idosos são motivo de chacota, as tradições foram dizimadas, o respeito e a educação deram lugar à indiferença e à provocação.

 

O coração da nossa cidade morreu. Dizem por aí que os flavienses a tudo se acomodam, que tudo perdoam, que tudo lhes serve. Nós sabemos que não. Por isso acreditamos que urge castigar os responsáveis pelo assassinato do coração da nossa urbe. O crime não pode compensar. 

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