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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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30
Jul12

Em defesa da amizade: Um, dois e três foi a conta que Deus fez etecetera e tal [rep]

João Madureira


Um - A cultura do meu amigo


Hoje apeteceu-me comer um gelado, enquanto conversava com um meu amigo que é muito dado às coisas da cultura. E falámos muito e falámos bem. De vários temas, todos interessantes. Digo-vos que é muito útil falar com esse meu amigo. Isto é, quando ele nos deixa falar. É que ele sabe muito de muita coisa, sobretudo de alta cultura. Fala muito e bem sobre os mais variados temas. Todos temas muito interessantes, muito abrangentes e muito atuais. Ele é até mais culto do que a maioria dos cultos do nosso país. E olhem que, mesmo sendo Portugal um pequeno país, possui, mesmo não parecendo, muitos e bons homens e mulheres de cultura. Mas, mesmo assim, este meu amigo supera-os quase a todos. Ele fala muito, bem e depressa e nunca, mas mesmo nunca, revela dúvidas enquanto discursa. Ou seja, nunca se engana, nunca se atrapalha, nunca gagueja. O discurso sai-lhe sempre límpido, sem hesitações, sem atrapalhações, sem flutuações ou outras indeterminações. Com ele é sempre a direito, mesmo quando o seu discurso revela uma configuração um pouco mais sinuosa. Tem este meu amigo a qualidade de tudo descobrir. De pôr tudo claro como água. A sua cultura é muito apreciada pela família, pelos amigos, vizinhos, colegas e até por alguns dos seus inimigos. Mesmo os seus inimigos reconhecem que ele é muito, mas mesmo muito, culto, de uma cultura superior, muito metódico no falar, muito comedido nos seus gestos, que também são cultos, até o seu andar é um andar que reproduz a sua brilhante cultura. O seu andar é mesmo muito erudito. De uma erudição convergente, tranquilizante e tranquilizadora. Mas não é só o seu andar ou o seu falar que espelham cultura, o seu olhar também a exprime. De uma cultura impecavelmente estudada. Se a cultura tem alguma utilidade, de certeza que é neste meu amigo onde encontra a sua plena realização. As suas conversas, mesmo quando parecem fúteis, não o são. O meu amigo dá-lhes sempre um toque culto. Até quando come consegue encher-nos de cultura. Com ele tudo se transfigura em cultura: os gestos, os talheres, os condimentos, as toalhas, os guardanapos, os tachos, os copos, o vinho, até mesmo os palitos dos dentes ganham uma auréola sublime, uma importância inaudita com espaço próprio na história universal. Depois é a sobremesa que se nos agiganta na sua intrínseca utilidade, no seu inseparável conceito culinário, na sua ancestralidade cultural, na sua significância metafísica, no seu indesmentível valor simbólico e prático, na sua génese voluptuosa, no seu redimensionamento monástico, na sua decifração metafísica, ou estrutural, ou alegórica. A tudo lhe encontra sentido, forma, objetivo, importância, sedução, uniformidade, relação e arte. Até na falta de cultura encontra cultura. E beleza. Para ele tudo é belo porque, na sua perspetiva, tudo se reduz à linguagem. No princípio era o Verbo, repete ele muitas vezes. É muito esclarecedor em tudo o que diz. Revela-nos a cultura que está por detrás da disposição das cadeiras, na colocação dos candelabros, no ritual de nos sentarmos ou nos levantarmos da mesa. Aponta-nos o conflito civilizacional e a evolução cultural que está por detrás do ato de não cruzarmos cumprimentos de mão. Elucida-nos com muita competência sobre o modernismo sistémico das floreiras numa sala de estar ou sobre o conflito epistemológico das reações químicas entre pessoas que se querem bem. Uma noite passada com este meu amigo vale por uma semana inteira a estudar a enciclopédia luso-brasileira de cultura. Podia estar aqui toda a noite a escrever que não era capaz de expressar convenientemente a sua cultura. Por isso aqui vos deixo este pequeno introito com a única intenção de prestar, a esse meu amigo, uma singela homenagem que, não sendo culturalmente relevante, é sincera e necessariamente inculta.

 

Dois - Amizade


Há cerca de uma semana, o meu amigo Matias foi passear o cão e ele fugiu-lhe. Era um cão de raça. Foi muito caro. Era um animal de estimação. Como se fosse da família. Dele, claro. Que eu cá não me perco com esses animais. Era um cão que rosnava mais do que ladrava. Costumes de parentela. Andava sempre muito lavado, perfumado e penteado. Estamos a falar do cão do Matias. Porque o Matias, propriamente dito, é bem mais desleixado. Não é que seja mau tipo, é apenas um pouco sovina para os amigos. Mas com o cão não olhava a despesas. Nós, os seus amigos, por vezes ficávamos um pouco zangados por tratar melhor o cão do que a nós. Mas o Matias é mesmo assim. É ele e o cão, depois a família mais chegada, depois outra vez o cão e só depois os amigos. Estou em crer que o Matias é mais cão do que o próprio cão. Agora anda desfeito. Ele sem o cão não é nada. Nem dorme, só dá voltas e mais voltas em redor da cidade em busca do animal. No último desfile etnográfico em C., o Matias desfilou vestido de romano com um outro cão ao lado. Mas um carro, mesmo no final do desfile, passou-lhe por cima. Foi nesse mesmo dia que o Matias comprou o cão que agora lhe desapareceu. Já lá vão sete dias e o cão não aparece. Ele anda doido. De noite até ladra, imitando o cão, para ver se ele responde ao seu apelo. Nós já lhe dissemos que não lhe fica nada bem andar a ladrar à noite pelas ruas da cidade. Mas ele não nos liga. O seu estado inspira-nos algum cuidado. Por isso fazemos votos para que o cão do Matias regresse ao lar são e salvo.

 

Três - Em defesa da amizade


O meu amigo Miguel é muito distraído. Muito inteligente, mas muito distraído. Muito boa pessoa, mas muito distraído. Distrai-se com muita facilidade. Ainda ontem, quando andávamos a passear, foi de encontro a um poste de iluminação pública. Fez um grande galo na testa, mas nem sequer se queixou. O Miguel fala muito, pensa muito, distrai-se muito. Por vezes também se ri com muito saber. Muitos dos meus amigos dizem que ele é maluco, mas eu garanto-vos que não é. De maluco não tem nada. Ele é muito esperto, muito inteligente, muito compreensivo, muito efusivo, muito estudioso. Só que é muito distraído. Numa noite entrou dentro de uma casa alheia pensando que era a sua. Deitou-se na cama e só quando os donos se puseram aos gritos é que ele se deu conta do equívoco. Aquilo ainda foi uma grande trapalhada, pois meteu polícia, bombeiros, insultos e até prisão e julgamento. Dizem que nessa noite na esquadra recitou o Anticristo de Friedrich Nietzsche inteiro, com prefácio, data de edição da obra, tradução, capítulos e respetivas páginas. Parece que o polícia de plantão o ameaçou com um processo por desrespeito à autoridade e por provocação religiosa pois não conseguiu descortinar que o texto era do filósofo alemão e não um insulto gratuito ou um gozo fininho. Os polícias de agora são muito sensíveis e muito senhores do seu nariz. Até já têm alguma cultura. Mas daí até conhecerem o Anticristo de Nietzsche vai ainda uma grande distância. Cultos, cultos, mas nem tanto. Muita cultura também embrutece, disse-me uma vez um. Não me lembro de um único dia em que eu e o Miguel andássemos a passear e ele não tivesse tropeçado nalguma coisa. Já tropeçou em cães e cãezinhos, gatos e gatas, lambris de passeios, pedras pequenas e grandes, pessoas de vários tamanhos, raças, credos e ideologias, crianças calmas e rabugentas, choronas ou risonhas, polícias e guardas-republicanos, bombeiros voluntários e sapadores, soldados, sargentos, tenentes, capitães, majores e por aí fora. Parece que ainda só não tropeçou num contra-almirante. Também já tropeçou em carros de grande e pequena cilindrada, bicicletas de montanha e de corrida, triciclos novos e velhos, burros de carga, cavalos de corrida e, até, mendigos de várias espécies e origens, idades e proveniências, vícios e predileções. Quando isso acontece fica muito aflito e começa a gaguejar. Ato contínuo, oferece uma grande esmola ao sujeito passivo. Alguns deles fazem-se mesmo à colisão. Mal o avistam na rua, tentam sempre ir dar-lhe um encontrão. Ele pede sempre muita desculpa e dá-lhes obsessivamente uma esmola choruda. Mas, a partir daí, o seu discurso torna-se ininteligível. Não só pela temática, mas também por causa da gaguez. É aflitivo. E ele sabe-o. Falar sobre semiótica, ou sobre epistemologia, ou cibernética a gaguejar é uma tortura quase insuportável. Mas se eu o abandonasse quando ele está nesse estado quase catatónico seria uma traição. Afinal eu sou seu amigo. E os amigos devem servir para alguma coisa. O Miguel só tem medo de uma coisa: tropeçar num cigano que esteja a pedir esmola e que finja que toca o acordeão. Aí põe-se aos gritos e tem que tomar dose tripla da sua medicação para os nervos. Ninguém é perfeito. Nem o Miguel. Nem eu. Nem o Nietzsche. E, muito provavelmente, nem o amigo leitor. Essa é que é essa.

27
Jul12

O Homem Sem Memória - 68 [rep]

João Madureira

 

68 – Acordou cedinho e preparou-se para rezar as orações matinais mas lembrou-se que o que tinha rezado na casa do tio Manuel dava e sobrava para toda a semana. Por isso absteve-se de rezar. O que é demais é moléstia. Dormiu mais um pouco.


A sua querida avó preparou-lhe, sem o saber, um pequeno-almoço à inglesa: carne entremeada da pá frita na sertã, um ovo estrelado, pão centeio, café preparado na chicolateira, a que lhe juntou uma brasa incandescente, e por fim três nozes e meio cálice de aguardente, pois o dia tinha amanhecido frio e rabugento.


Foi à missa mas não rezou, observou e escutou o lento desenrolar da liturgia, o fleumático recitar das orações, os dissonantes cânticos das mulheres do coro, a voz desarranjada dos padres, a música hesitante da banda musical, os olhares distraídos e cabisbaixos dos homens, os gestos impacientes das crianças e dos jovens, a aparência compenetrada e débil das beatas, a aparência sofrida do Cristo na cruz em frente do sacrário e o semblante doce de prazer sofrido do São Sebastião pintado na cúpula de madeira do teto da igreja.


Ridiculamente trajados, os rapazes pareciam homens miniaturais enfiados nos seus fatinhos pretos onde uma camisa inexoravelmente branca sobressaía dentro do colete acanhado. O laço e os sapatos de verniz, igualmente desventurados, constituíam o remate que lhes conferia um ar de irmãos replicados. Pareciam todos idênticos, como se fossem chineses ou os pretos dos filmes do Tarzan.


As raparigas trajavam invariavelmente vestidos brancos rendados para mostrar ao Criador, e às gentes da sua aldeia e das aldeias vizinhas, que eram fêmeas, virgens e puras. Usavam conjuntamente um laço a aconchegar o vestido ao pescoço, sapatos brancos de verniz e ainda um outro laço mais vistoso e colorido na cabeça. Todas ostentavam cabelos compridos. Era a imagem de marca da época.


Dentro da igreja, por cima do perfume a flores, do odor a suor e a cera, impunha-se o intenso cheiro da naftalina.


Depois da missa, seguiu-se a procissão. Como todos os anos, os andores eram subidos. Por isso, transportá-los pelo meio das ruas estreitas e sinuosas era tarefa para os homens mais fortes e determinados. Mesmo assim, muitas vezes entre o descer e levantar, o torcer à direita e virar à esquerda, muitos anjos deixavam as suas asas, alguns santos perdiam as suas auréolas, algumas santas os seus mantos e alguns homens a sua divina paciência.


Entretanto a banda tocava, as pessoas entoavam cânticos de louvor a todos os canonizados, e os foguetes estouravam no ar para lembrar aos povos em redor que os habitantes desta aldeia eram os mais devotos dos devotos.


Finalmente, a procissão chegou ao sítio onde tinha principiado. Os homens dos andores puderam, então, sentar-se nos bancos da igreja para limpar o suor e ganhar fôlego para se dirigirem até suas casas onde os aguardava um lauto almoço. Os músicos foram distribuídos um por cada casa. Ao seu tio Manuel calhou-lhe em sorte o regente da banda.


O almoço foi servido com algum requinte. Até o mestre ficou surpreendido. O senhor Manuel, nas suas várias estadias realizadas em França junto dos seus três filhos, tinha absorvido algumas das peculiaridades da cultura culinária francesa. Por exemplo, fornecia agora como entrada o melão em talhadas previamente descascadas para servir de acompanhamento às finas tranches de presunto, servia ternos folhados de galinha cozidos no forno, atreveu-se mesmo a dar a provar aos convidados “pâté de canard au Porto” com torradinhas, e, ó ousadia!, momentos antes do prato principal, colocou em frente de cada comensal meia alface tenra (colhida no seu quintal, mesmo ao lado das meloas, fruto que foi o primeiro a semear na aldeia com muito sucesso, para inveja dos invejosos),  guarnecida com um filete de anchova. Tudo isto foi regado com um branco palhete, colheita própria, de se lhe tirar o chapéu. O seu travo ligeiramente frutado e dulcificado veio mesmo a calhar para refrear o sabor intenso e ácido do sal da anchova.


Ainda todos estavam a recompor-se das torcidelas de nariz e da salivação excessiva por causa da anchova encavalitada na alface, quando foi servido o cabrito assado acompanhado de batatas também assadas e de um arroz de miúdos. O branco palhete foi de imediato substituído por um mais adequado tinto forte para desfazer gorduras e estimular a boa disposição.


A sobremesa, para os convidados mais requintados, foi composta por meias esferas de meloa guarnecidas com vinho generoso, colheita de um amigo da casa de origem duriense, e ainda por bolos, biscoitos sortidos, e um licor de noz de fabrico caseiro.


Foi servido ainda um café bem forte para cortar o álcool. E aos homens mais atrevidos foi oferecido um charuto de razoável qualidade, que alguns fumaram e outros guardaram para mais tarde. Depois dormiu-se a sesta.


Lá mais para o fim da tarde tocou a banda no coreto. O baile não foi muito participado por causa do calor. Mas o arraial foi de arromba.


Além da Filarmónica atuou um conjunto de músicos galegos que tocava todo o tipo de música. Com a banda bailavam os pares mais velhos, ou os jovens mais tradicionais. Com o conjunto dançavam todos, até os coxos, o que provocou uma nuvem de poeira que muito perturbou dançarinos e basbaques, apesar de o recinto ter sido regado durante a tarde. Nas tascas improvisadas, os forasteiros comiam, bebiam e folgavam. Os que eram conhecidos das pessoas da aldeia eram convidados a irem até às adegas beberem um copo e trincar algum pedaço de carne que tivesse sobrado. Por volta da meia-noite já todos os homens, e algumas mulheres, estavam bêbados. Era a hora má. Com os ânimos exaltados, surgiam as provocações dos da terra aos forasteiros e de estes aos da terra. Povos de aldeias vizinhas são rivais para toda a vida. Então se pelo meio algum deles se atrever a namoriscar rapariga do povo, o caldo fica mesmo entornado.


Foi o que aconteceu. No meio do arraial principiou um redemoinho de criaturas que mais parecia uma disputa entre bruxas e zângãos. Começou a chover porrada da grossa: murros, pontapés e paulada. O José, curioso, correu para lá. Aquilo só podia ser obra de gente malformada. Qual não foi o seu espanto quando verificou que, no meio do tumulto, estava o seu tio João a assentar porrada num rapaz emigrante de Soutelinho da Raia que se atreveu a dançar com a sua sobrinha mais nova, filha do seu irmão Manuel, sem a autorização do respetivo pai. Enquanto a rapariga chorava, depois de o pai lhe ter dado umas estaladas bem dadas, o tio João continuava a bater no pobre moço. E não abrandava. Isto fez com que os mancebos de Soutelinho se pusessem em guarda e sacassem das navalhas e dos trabucos dos respetivos bolsos. Acudiu a Guarda Republicana com as espingardas prontas para o que desse e viesse. O ambiente ficou à beira da guerra civil, uns de cá e outros de lá, cada um com as suas armadilhadas razões e cada qual com o seu orgulho ferido. Nisto o José abraçou o tio João e pediu-lhe que, por amor de Deus, pensasse no bom nome da família, no falecido pai e na querida mãe que estava ali afogada em pranto. Lembrou-lhe que também o avô José, e seu saudoso pai, veio de Vilela para a aldeia arranjar mulher que prestasse. E não se arrependeu. Agora o pobre rapaz não podia namorar com quem engraçasse? Ora, ora! Dominada a fera, estabeleceu-se o armistício. O Tio João foi para ao pé dos seus, a sua sobrinha foi para casa curtir as mágoas e a vergonha, e o rapaz namoradeiro, mesmo contra a sua vontade expressa, rumou no jipe da GNR caras à aldeia donde tinha sido nado e criado. 

25
Jul12

O Poema infinito: Elegia das utopias (em apneia) - [rep]

João Madureira

 

Sonhei num tempo concreto onde um homem magro dividia as utopias e as embrulhava em fórmulas condensadas e a voz do desejo namorava as palavras generosas fazendo a tua boca assemelhar-se a uma estrela de música sacra onde os timbres inesperados ecoavam no abismo do teu corpo que agora se estende em ecos incontrolados como se o silêncio do tempo fosse um soluço de raiva divertida e a fantasia rasgasse o tempo e o rosto da pobreza e as noites negadas aos amantes separados pela religião ou pelas fronteiras da língua ou pelos muros persistentes da intolerância ou como se a vida se compusesse de insónias e rostos abjurados pela guerra e pela surpresa da destruição das paisagens e as carícias fossem um pecado teoricamente livre onde os olhos assassinos inventassem deuses cruéis navegando em buracos negros onde as mães matassem os seus próprios filhos mesmo antes de serem gerados e onde em nome da paz a raiz dos livros sagrados construísse a bondade nos olhos dos poetas cegos para assim da terra brotar a erva daninha da esperança e os corações dos guerreiros poderem girar ostentando o sangue inócuo da glória e do triunfo e da vontade de vencer todos os inimigos e todos os estrangeiros e todos os emigrantes e todos os relógios atómicos e depois ainda escreverem livros repletos de palavras nuas que copulam entre si furiosamente na tentativa frustrada de compor um poema alegre sonhado por crisálidas desenhadas por um computador tão perfeito como o deus da guerra que é a deidade da glorificação da vitória e do sangue e da morte para mais ao longe as bocas famintas de afagos e beijos e palavras doces e quietas brilharem em murmúrios vestidos de silêncio quase feliz quase feliz quase feliz e depois ouvir os gritos mudos de esperança dos homens de boa vontade e as vozes roucas das mulheres ultrajadas pela ablação do órgão do prazer das suas vaginas e o sangue virgem das prostitutas proletárias negras e doentes sufocadas pela moléstia inventada pelos que enviam o amor para fora do tempo e vestem a humanidade de ódio e indulgencia e fome e fartura e religião e ateísmo e de gritos demorados de lutas fratricidas e de classe como se a natureza dos homens os pudesse dividir em rebanhos com donos cheios de razão e onde os mastins ladrassem o manifesto comunista ou a bíblia ou o alcorão até trocarem todas as palavras e todas as frases e todo o sentido para assim o ódio ser ainda maior que o dos nazis aos judeus e meu deus lá vem mais um coração perdido no peito de um ditador como um relógio tresmalhado no bolso de um bancário que vende as horas que não são suas nas praças financeiras do ocidente e que ergue um copo de vinho tinto caríssimo à imagem e semelhança do gesto eclesiástico do regente na missa dos católicos que somos nós quase todos os que vivemos debaixo da beleza inócua das línguas latinas e com elas nos iludimos e nos enganamos e nos amamos e nos odiamos e nela rezamos a um deus insensível mas omnipotente que nos pede obediência e fé e depois ainda sedentos de lucidez recomeçamos tudo de novo como se os sonhos se pudessem repetir como se a vida não fosse única como se a liberdade não fosse individual como se a cultura não fosse essencial para nos envolver no anacronismo que é deus ter dado inteligência ao animal que cada um carrega dentro de si para assim podermos pensar na morte até morrermos…

23
Jul12

Pérolas e diamantes (1): sexta-feira treze em Montalegre

João Madureira

 

 

 

No passado 13 de Julho fui até Montalegre. E regressei fascinado. Mais uma vez seduzido, valha a verdade, pois já é a terceira sexta-feira 13 que lá vou em meia dúzia de meses. E às três é de vez. Por isso resolvi escrever sobre a minha experiência. Aquilo é uma festa pegada. Uma loucura saudável. Um espetáculo arrebatador, frenético e explosivo. Começou com um jantar muito concorrido no Pavilhão Multiusos, onde se comeu bem e se bebeu também muito bem. Enquanto se comeu e se bebeu, uns aproveitaram para irem pintar os rostos de várias cores e feitios, outros para cumprimentar os conhecidos e os amigos e outros, ainda, para tirarem fotografias junto de algumas personalidades distintas que fazem questão de se juntarem à festa das bruxas. Durante o repasto fomos assustados por diversas figuras devidamente disfarçadas de mortos vivos, monstros, bruxos, bruxas, zangões, vampiros, almas penadas e demais figuras terroríficas. Desta vez jantei em companhia dos meus amigos, o que não é de admirar, mas também junto dos elementos dos Homens da Luta, vestidos de Homens da Luta, mas que não deram muito nas vistas. Nas vistas deram dois cromos da televisão, que não conheço, mas que deu para ver que são famosos. Um dos cromos era uma rapariga, muito esgalgada, com cabelo comprido, levemente aloirado, montada numas sandálias com saltos de cortiça que mais pareciam umas andas. E se ela já era alta, com as andas ficava que parecia um lareiro, pois era esguia como os juncos. O outro personagem da TV era um jovem muito risonho, com barba se sete dias, que se adivinha não ser por falta de tempo para a desfazer, mas antes porque está na moda. Trajava calças verdes e camisa da mesma linhagem. Parecia um soldado desmazelado, mas, no entanto, com algum aprumo, numa mistura fina entre a descontração e a moda cara, que é atualmente o apanágio dos ricos e famosos. Não sei da sua importância, ou relevância, social ou cultural (e com o caso Relvas, agora até já desconfiamos que a nossa sombra se tenha licenciado sem nos avisar), mas deu para ver que o rapaz da barba e a partner esgalgada eram muito solicitados, sobretudo pelos convivas mais jovens, que com eles tiravam fotografias e se riam imenso. Eu também me ri, sobretudo porque me lembrei do emplastro, que também faz o mesmo só que por detrás dos entrevistados, enquanto aqui os emplastros sorridentes se colocavam em primeiro plano, bem na frente das máquinas fotográficas ou das câmaras da TV Barroso. Entre as sobremesas e o café, a malta foi posta a dançar por um conjunto de Chaves constituído por rapazes que tocam bem, cantam bem e afinados. Assim fosse a nossa autarquia e teríamos o futuro garantido. Entretanto, o presidente da Câmara de Montalegre aproveitou para participar na distribuição de uma bebida saborosa que nos sugeria sangue, devido à sua coloração vermelha. Mas se o sangue tivesse aquele sabor é bem provável que muitos de nós abríssemos os pulsos para ir beberricando ou pedíssemos ao vizinho, ou vizinha (conforme o gosto e as preferências), para lhe chuparmos as jugulares. (Ei, cuidado com as generalizações, aqui é só da bebida que se trata. E nada mais. Ah, seus malandros, sempre na paródia. Hem!) Durante o jantar também é frequente escutar alguns grupos ou fanfarras musicais, que tocam uma música ou duas, para ir animando a malta. A mim, das três vezes que tive o prazer e a honra, de lá ir, ficou-me a Fanfarra Kaustika, que é uma banda de metais que toca uma música frenética que até põe os mortos a dançar. Os mortos e os pernetas, como é o meu caso, que tenho pés de chumbo e um feitio que pouco deve à alegria e ao entusiamo. Timidez, já se vê. É claro que muitos a consideram mau feitio, mas não é. É mesmo timidez. Os meus amigos mais chegados bem o sabem. Se não acreditam perguntem-lhes, pois eu não quero ser juiz em causa própria, para isso já chega e sobra, o, com vossa licença, dr. Relvas. Do pavilhão rumámos caras ao castelo. Antes de iniciarmos a viagem, o senhor presidente lembrou-nos que o devíamos seguir, senão ia ser muito difícil conseguir romper por entre a multidão que àquela hora já enchia o recinto onde se realiza sempre o espetáculo da queimada. Então aquela rapaziada colocou-se atrás do presidente Fernando e aí vai de romper por entre a populaça. Todos já devidamente pintados e envergando uma capa preta e um chapéu à imagem e semelhança da bruxa de OZ. Bem, todos é uma forma de dizer. Eu não consigo. É a minha timidez. Ou mau feitio, se preferirem. Eu não me consigo pintar, nem disfarçar de coisa alguma. A minha cara de bruxo é permanente e nem sequer precisa de dissimulação. Por isso, lá fui eu atrás do senhor presidente. Só que a meio da jornada, junto ao Café Terra Fria, encontrei a Elisa, uma querida e estimada colega e amiga das Pedras Salgadas. Está claro que parei para a cumprimentar. Posso ser mau carácter, mas não sou mal-educado. E os meus amigos estão acima de tudo. No ínterim, o nosso bando pôs-se na alheta. Mas não me importei, ali ao meu lado estava a Luzia que, bem vistas as coisas, é a minha companhia de sempre e para sempre. Manias. Por isso dei-lhe a mão, para não a perder ou ela não me perder a mim, e lá rompemos pelo meio da multidão. Lá romper rompemos, mas quando chegámos perto do palco, já as cancelas estavam fechadas e os homens da segurança atentos. Como não tínhamos credenciais, ficámos do lado de fora. O senhor presidente bem nos tinha avisado, mas eu não podia passar pela Elisa e dizer-lhe apenas olá. Não podia. Podia ir até na comitiva do senhor presidente da República e ficar sem jantar, ou almoçar, ou sem comenda, mas o que não conseguia fazer era passar por uma amiga como a Elisa e dizer-lhe olá de longe. Não podia. Manias. Mau feitio. Falta de sentido hierárquico. Pois pode ser tudo isso e mais alguma coisa, mas para mim os amigos, os meus amigos, estão acima de tudo. E digo-vos do fundo do coração, estou-me borrifando para o que dizem, ou o que possam dizer a meu respeito. É que eu sou assim e já estou velho para mudar. Bem, mas voltemos ao essencial. A Paula, que também é minha amiga, e que eu prezo e estimo, ligou a perguntar onde nos encontrávamos. E a Luzia, e eu também, já agora, sorrindo porque gostámos que ela se tivesse lembrado de nós no meio daquela multidão, dissemos-lhe a verdade, que estávamos imersos naquele mar de gente tentado galgar a encosta para arriscar ver o espetáculo. Lá tentar tentámos, mas é o rompes. À medida que subíamos, cada vez as pessoas eram mais e estavam ainda mais juntas umas às outras. Muitas delas estavam mesmo sentadas, o que me meteu medo, pois pensei que se algo de estranho se passasse e desse àquela gente para correr encosta abaixo, podia-se dar ali um desastre de proporções inquietantes. Afastei esse pensamento da minha cabeça lembrando o esconjuro do padre Fontes: Vade retro Satanás para as pedras cagadeiras. No sítio mais alto a que chegámos, eu apenas conseguia ver um carvalho iluminado, dois holofotes, um poste de ferro e a esquina direita do palco. Isto olhando para a frente, porque olhando para trás apenas vislumbrava o cimo das torres do castelo e dois morcegos gigantescos, e, sobre o meu lado direito, lobrigava as chamas de umas latas onde ardia um óleo que cheirava a inferno. A Luzia apenas conseguia observar as estrelas do céu, isto se olhasse para cima, pois pequerrucha como é não via literalmente mais nada. Sentia-se sufocar. Por isso nos viemos embora, e sem muita pena, porque aquele espetáculo já nós o tínhamos visto na primeira sexta-feira da trilogia. Descemos a custo, a muito custo mesmo, a colina e fomos beber um fino a um bar onde naquele momento tocava a Fanfarra Kaustika. Cumprimentei o Abel e o Gil, dois dos mais influentes músicos da banda, pois eu só conheço gente influente, inclusive nos grupos musicais, e ficámos a ouvi-los tocar aquela sua música frenética, ou maluca se preferirem, que eu e a Luzia tanto apreciámos, e até nos atrevemos a dar uns passinhos de dança. Se algum amigo nos visse ia pensar que estávamos ébrios ou felizes. Tenho de reconhecer que estávamos ambas as coisas, mas muito mais a segunda que a primeira. Muito mais. Passado algum tempo, saímos do café e subimos a rua Direita caras ao largo da Câmara. Entretanto assistimos à descarga do fogo-de-artifício, um magnífico espetáculo de som, luz e cor. Pode ser um lugar-comum, mas também é verdade como um punho. No ecrã gigante da praça do município assistimos, descansados, ao esconjuro da queimada feito pelo padre Fontes vestido de bruxo, mas que é um santo, ao contrário de mim que sou um bruxo disfarçado de santinho e ao contrário de muita outra gente que parece santa, que se disfarça de santa, que se diz santa, mas que é pecadora até ao tutano. E nessa gente estão incluídos todos os detratores do bom padre de Vilar de Perdizes, gente que ressuma ódio e vomita insinuações e mentiras como se fossem mafarricos escatológicos expelidos pelos ânus de um demónio gigante, como uma vez vi num filme de Pasolini. Vade retro Satanás para as pedras cagadeiras. Ali descansados, a Luzia enamorou-se de um crepe de chocolate e eu mandei-me a um pão com chouriço. Nem um nem outro acabou o petisco. Mas soube-nos bem a extravagância. Pois de uma extravagância se tratou, dado que os preços por Montalegre, nestas ocasiões, ficam de luxo. Mas festa é festa, música é música. E essa é grátis. E boa. E bonita. Mais tarde, a Paula ligou-nos e lá nos voltámos a encontrar. E a partir dali, até às quatro da madrugada, foi um constante subir e descer a rua Direita, do pelourinho à câmara, da câmara ao pelourinho, bebendo fino aqui, cumprimentando amigos ali, conversando acolá. Sobretudo escutando música em todos os lados. Num crescendo de alegria e entusiasmo contagiantes. Cerca das quatro da madrugada, já um pouco cansados, regressámos a terras de Aquae Flaviae. Lá teve que ser. A idade não perdoa. Na viagem de volta, em amena cavaqueira com o Luís e a Helena, (já agora, obrigado pela boleia e pela companhia) comentámos a qualidade do evento. Foi fácil chegar à simples, e rápida conclusão, de que as sextas-feiras treze em Montalegre são o melhor espetáculo de animação de rua em Portugal. Ou seja, que nestas ocasiões a capital do barroso se transforma na capital da animação. Isto enquanto Chaves definha e morre como polo de atração turística. Enquanto os outros concelhos tratam da sua vida, o de Chaves preocupa-se em fazer de conta que faz aquilo que não sabe e não é capaz. Definhar e morrer desta maneira dá pena. Dá pena e mete dó. Tem de aparecer alguém que não se conforme com este estado de coisas. Este imobilismo mata a cidade e destrói a já pouca autoestima dos flavienses. Rezemos para que alguém nos tire desta pasmaceira, deste marasmo, deste filme medíocre. Ámen. Falta dizer que passei toda a noite agarrado à Luzia e à minha máquina fotográfica e que quando largava a mão da Luzia era apenas para fotografar aquilo que me apetecia. Não perdi nem uma nem outra, graças a Deus. Agora parece que cheguei ao fim e com um sorrisinho maroto no rosto. Escrevo isto porque os estimados leitores não me estão a ver. Mas o sorriso cá está. Isso garanto-vos.

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