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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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28
Set12

O Homem Sem Memória - 127

João Madureira

 

127 – Em abono da verdade, temos de dizer que a noite foi longa.


Logo após a petiscada, o digestivo, a cigarrada e a cantoria da Internacional, o Graça, provavelmente mordido pela consciência, virou-se na direção do Mário “Camões” e sussurrou-lhe ao ouvido: “Aqui, que ninguém nos ouve, vamos dar sequência à lei de Talião: olho por olho, dente por dente.” “E como?”, perguntou o Mário “Camões” com o seu olho bom a resplandecer de alegria e o outro a querer ganhar vida. “Esse tal de Talião era um homem com eles no sítio. Do tal Talião ninguém se ficava a rir.” “Olha, Mário, a lei de Talião não é um homem é apenas um princípio que se encontra no Código de Hamurabi…” “Talião ou Hamurabi, a mim tanto se me dá. O que interessa é a sua mensagem revolucionária.” “Ouve-me primeiro: As primeiras indicações do princípio de Talião foram descobertas no Código de Hamurabi, em 1780 a.C., no reino da Babilónia. Esse pressuposto permite que as pessoas façam justiça pelas suas próprias mãos e de forma igual, no respeitante ao tratamento de crimes e delitos, é o princípio «olho por olho, dente por dente»…” “Pois isso mesmo…” “Não sejas impaciente, deixa-me continuar. Esse princípio transmite a ideia de reciprocidade e paralelismo entre o mal causado a alguém e o castigo imposto a quem o causou: tal crime, tal pena.” “Boa. É isso mesmo. Vamos ali ao Bar Aurora arrear na reação e tirar, pelo menos, um olho a alguém…” “Ou um dente”, disse a rir o Graça. “Não, um dente não”, alvitrou desgostoso o Mário “Camões”. “Um olho. Apenas um olho. Um olhinho apenas.” “Tu podes não ser comunista, mas lá que és determinado, isso ninguém o pode negar”, concluiu o Graça. E continuou: “O que podemos fazer é enfiar umas meias de vidro na cabeça e…” “…E assaltar um banco, ou o Bar Aurora e arrancar um olho a algum burguês, ou ainda uma ourivesaria e recolher fundos para comprar armas para fazer a revolução. A verdadeira revolução. Não essa merda de revolução dos revisas que consiste em colar cartazes, redigir comunicados, pintar paredes, mandar uns bitaites nas reuniões das associações, nos sindicatos ou nas reuniões do partido… Já agora o que é que quer dizer «revisas»?”, perguntou entusiasmado o Mário “Camões”. “Olha lá, tu queres aprender tudo numa só noite? Ouve-me com atenção. Podemos enfiar umas meias de vidro na cabeça e ir arrancar os cartazes dos reacionários…” “Eu estou entusiasmado é com o Talião, ou Hamurabi ou lá que merda é…” “Olha lá, eles arrancaram os olhos ou os dentes a alguém? Arrancaram?” “Não mas…” “Aqui não há mas nem meio mas. Tu queres ir para a prisão? Sabes, por acaso, de algum comunista que tenha arrancado os olhos a alguém? Sabes?” “Não, mas sei que o Partido defende que é preciso partir os dentes à reação. O próprio Otelo disse que talvez não fosse má ideia meter os reacionários no Campo Pequeno. E não estou a ver que ele estivesse a sugerir que era para assistirem a uma tourada à antiga portuguesa. Inclino-me a pensar que imaginava o mesmo que eu: que é necessário eliminar os reacionários à lei da bala. Ou revolução ou reação…” “Eles arrancaram-nos os cartazes, nós podemos ripostar arrancando-lhes os deles. E assim estamos a cumprir com a Lei de Talião…” “…Mas não com as da revolução”, respondeu o Mário Camões com o olho bom a deitar chispas. Ao que o Graça ripostou: “A mais não vou. E com isso já estou a infringir os Estatutos da Partido, nomeadamente o artigo 33º e o 34º, arriscando uma sanção disciplinar…” “Talvez a alínea b) do artigo 37º e por isso baixares de escalão”, disse como quem não quer a coisa o José. No que foi amoestado pelo Graça: “Não te metas onde não és chamado.”


Alguns bêbados mais tardios encontraram a célula comunista de agitporp de Névoa sentada nos bancos do jardim a fumar uma cigarrada em silêncio. Depois de fumarem a primeira cigarrada fumaram uma segunda e uma terceira. Sempre em silêncio. Logo após, o Graça resolveu levar a sua proposta a votação, mesmo contrariando as diretrizes do Partido, onde nada se votava sem primeiro se consensualizar, que o mesmo é dizer que tudo se decidia sempre antes de votar. A sua proposta ganhou, não por unanimidade unânime, como era tradição, mas sim por unanimidade irregular com um voto contra, o do Mário “Camões”, e uma abstenção, a do Carlos Chouriço.


Enfiaram então as meias na cabeça e, quais heróis revolucionários cinematográficos, foram-se aos cartazes dos partidos reacionários e rasgaram-nos com toda a fúria subversiva de que eram capazes. Rasgaram os que estavam mais à mão de semear, mas também os que se encontravam colados nas paredes altas e derrubaram inclusive os que permaneciam colados em placas de contraplacado e pendurados nos postes. Para não deixarem rasto algum, nem a mínima suspeita, retalharam também os do seu Partido, e que tanto trabalho lhes tinham dado a colocar, assim certinhos e direitinhos. Entretanto foram deixando pintado nas paredes o símbolo dos anarquistas, um “A” inscrito num círculo.


Para rematarem a anarquia, galgaram os muros do Liceu e foram pichar as paredes da antiga parte feminina com uma frase naif que dizia assim: “A virgindade provoca o cancro, vacina-te.”


Depois de ler o escrito com o seu olho vivo, o Mário “Camões” perguntou ao Graça: “O que é isso da virgindade?” Ao que o José, por puro exercício intelectual, tentou responder: “A virgindade tem tudo a ver com a Virgem.” “Qual?”, questionou o mesmo Mário. “Pois, com a Virgem Maria, que concebeu sem pecado”, respondeu evangelicamente o José. “Deixa-te de merdas filosóficas e vai direto ao assunto”, foi direto às dúvidas sobre o assunto o camarada Mário.


“Deixa-me rematar o escrito que logo to explico”, respondeu o Graça com a disponibilidade subversiva que conseguiu arranjar.


Da conversa filosófica que se originou a seguir pretendemos dar-vos conta no capítulo subsequente. Isto se formos capazes. Do que duvidamos, mas vamos tentar. Para isso é que aqui estamos. Quem não quer ser narrador não lhe veste a pele.

26
Set12

O Poema Infinito (113): o tempo e as palavras

João Madureira


Alisou-se o tempo na superfície da sua antiguidade. E as palavras aparecem dourando as frases com uma luz que se ajusta ao friso lento do desassossego. O tempo resplandece de novo no teu olhar. E o teu olhar é a condição de todas as imagens significativas. O tempo refunda o tempo na ordem rigorosa dos conceitos. E as palavras estremecem e assustam-se com a sua acústica. O tempo refunda a condição na ordem prodigiosa dos acontecimentos. E o mundo velho cai vítima da sua inteligência intuitiva. Instala-se a paz na terra e o seu ímpeto pulsa cada vez mais longe. A imensidão da saudade torna-se absoluta. E o amor incrementa-se com a distância. E a distância irradia invisibilidade. E a invisibilidade transforma-se na raiz das coisas. E as imagens gemem. Por isso o sofrimento é visível na tua face. Todos sofremos com a doce visão do envelhecimento. Voltam as palavras com o seu ritmo nítido, envoltas no seu enigma intemporal. E empolgam-se. E irrompem na sua extensão de dor e de júbilo. E prolongam-se gradualmente dentro da sua expansão silenciosa. E cumprem com a sua abstrata sabedoria do sofrimento. E desnudam-se por entre as vírgulas. E deslumbram-se com o espanto dos poetas. Por isso a inteligência humana é simbólica. Da neve eterna da saudade alguém extrai o azul com sabor a céu. E um oceano de palavras espelha-se na folha nervosa da planície. E a terra espelha-se nas folhas verdes das bétulas. E as encostas vertem vinho e o seu júbilo de festa e trabalho. O tempo abre a sua transparência antiga de fogo e alheamento. O desconforto de viver é elevado a uma nova categoria. Por isso as palavras prendem-nos num espaço cada vez mais dilatado. Nuvens de palavras rebentam nos céus fazendo diluviar uma miríade de frases escritas com flocos de neve. Esqueço-me de reter o seu sentido. Ao longe a cidade vai subindo impulsionada pela luz perentória dos fundamentos bíblicos. E o vento sopra arrepios de um frio invisível. As palavras transformam o tempo em solidão. Uma claridade antiga encontra o seu próprio esquecimento. Na terra mais antiga, o sábio semeia palavras eternas. Alguém propaga o seu prudente silêncio. E o silêncio oculta a face no júbilo ordenado da compreensão. O silêncio avoluma-se organizando o pensamento. As palavras encontram o seu sentido espiritual. Olho-te com o tensíssimo olhar do amor. De ti nasce a energia das palavras com que escrevo. Eu escrevo o tempo no tempo. No meu tempo. No teu tempo. No tempo infinito. No tempo infinito das palavras. No tempo infinito da nossa finita vida. Na impetuosa incandescência das palavras transitórias. Na prodigiosa razão da sua infinita combinação. 

24
Set12

Pérolas e diamantes (4): a utilidade das catástrofes

João Madureira

 

Machado de Assis, no seu livro “Quincas Borba”, referindo-se a uma epidemia que evitou um casamento, conclui que “as catástrofes são úteis, e até necessárias”. E ilustra a sua tirada filosófica com um pequeno conto que, à sua imagem e semelhança, “aqui lhes dou em duas linhas”.

 

“Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, um triste molambo de mulher, chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela. – É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo. – Dá-me licença que acenda ali o meu charuto?”

 

De facto, pegando agora no que aqui nos trouxe, o nosso primeiro-ministro nem sequer precisa de estar embriagado para acender o seu charuto nas misérias do nosso próprio casebre. É mesmo sóbrio que assim age, falando mal e depressa, atrapalhando-se na sua ânsia de capataz da troika, tentando mostrar que é mesmo homem para ser ainda mais duro do que os duros e mais insensível que os insensíveis.

 

Ninguém, “no seu juízo perfeito, faz render o mal dos outros”, como bem escreve Machado de Assis. “Não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas.” Tudo isto é uma ideia consoladora, pelo menos na cabeça de Pedro Passos Coelho.

 

Já todos percebemos que, para mal dos nossos pecados, este governo que nos desgoverna, fá-lo conscientemente através do medo, da chantagem e da coação verbal e económica. A contenção, a austeridade, a pressão institucional, o confronto com o Tribunal Constitucional e a ameaça permanente de que isto ainda pode vir a piorar, é tão intensa que começa a ser insustentável.

 

Há um provérbio chinês que diz: “Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” Mas não pode ser lido de forma literal, senão dá barraca. De facto, parece que o poder da ignorância, da estupidez e da boçalidade nunca prescrevem. Paulo Francis tinha razão: a estupidez, a ignorância e a boçalidade ainda são as maiores multinacionais do mundo.

 

Além disso, o poder exercido de forma autista, cega e arrogante, é uma insensatez. Ao que parece, o nosso primeiro-ministro pouco se importa com o facto. Ungido pela maioria absoluta que o sustenta, colocou-se no seu pedestal e aí vai disto.

 

Ele e o seu ministro das finanças são apenas uns paus mandados da troika. São os seus homens da Regisconta, ou melhor, são os cobradores do fraque, que em troca de uma mão cheia de euros, esmifram o devedor até o deixarem exangue.

 

Do nosso lado, alguns ainda lhe invejam o poder, porque vivem na ilusão de que ele, o Passos, é um chefe verdadeiro. Acreditam, erradamente, que o senhor está acima das nossas misérias e inseguranças. Mas, afinal, não está. Antes pelo contrário. O sujeito, deslumbrado pelo poder, pela sua leitura messiânica, vive soterrado pela permanente angústia de o perder.

 

Nas finanças se consome, o homem, e nem consegue falar direito. Atrapalha-se, gagueja e hesita. Como muito bem lembra Michele Apicella no filme “Palombella Rossa”, de Nanni Moretti, “quem fala mal, pensa mal”. E ele, o nosso aflito e gaguejante primeiro, já não consegue encontrar as palavras adequadas. A quem exerce o poder, as palavras – as palavras certas – são as ferramentas que podem apontar o Norte.  

 

Podemos ser levados a pensar que tudo apenas não passa de um problema de comunicação. Mas esta crise não é senão uma crise política. E são os problemas políticos, que este governo não sabe nem quer despachar, que estão por resolver. É isso que Pedro Passos Coelho é incapaz de compreender.

 

Os problemas políticos que não se resolvem tornam-se incomunicáveis. Em política, a força das palavras é decisiva. E as palavras escolhidas por Passos Coelho são de resignação e desespero. Ele não acredita nos portugueses. Ele apenas crê nos números que a troika lhe fornece.

 

O nosso primeiro é a principal vítima da folha de Excel do seu ministro das finanças, que nem sequer é do próprio, mas antes do seu congénere alemão, a quem ele presta vassalagem como um vulgar serviçal. 

 

Desconfio que o nosso primeiro é homem para, à boa maneira de mais uma personagem do livro de Machado de Assis, gostar de Otello, a ópera em quatro atos do compositor italiano Giuseppe Verdi (com libreto de Arrigo Boito, baseado na peça “Othello, the Moor of Venice”, de Shakespeare) e como espectador se regalar das paixões de Otelo e sair do teatro com as mãos limpas da morte de Desdémona, mas assobiando risonho “Nini”, a medíocre cançoneta de Paulo de Carvalho.

 

Pedro Passos Coelho, na sua terrível teimosia de correr tudo a impostos, devia pensar duas vezes na realidade do râguebi, pois quando se começa a correr muito, logo vem alguém que nos faz uma placagem. E ele já foi placado exemplarmente pelo Tribunal Constitucional e pelo povo nas ruas.

 

Talvez também sonhe, ao jeito saudoso do eficaz ditador de Santa Comba, com que a maioria de nós volte para as aldeias cultivar as parcas leiras, dormindo com as galinhas e acordando com os galos por não conseguirmos pagar a fatura da EDP, nem o petróleo do candeeiro de campânula.

 

Estes que agora dizem que nos governam não são gente séria, são gentalha insensível. Estão para o povo como o fardo de palha está para o pão.

 

Pedro Passos Coelho e os seus Relvas, Cratos, Vítores e Chicos, agarraram a triste sina dos desprezíveis: Estão para nunca mais estarem, ficam agora para nunca mais ficarem.

 

Os nossos desejos são de que a História lhes seja leve. E o seu destino político breve. Para bem de todos. E até o deles próprios. 

21
Set12

O Homem Sem Memória - 126

João Madureira

 

126 – E a vida seguiu o seu caminho. O camarada funcionário foi à dele e os nossos queridos camaradas foram à sua. Ou seja, o dirigente comunista foi copiar o comunicado de um outro comunicado, fazendo-lhe os pequenos ajustes necessários, para não se enganar na métrica, na semântica e na música, que ele interpretava como coerência ideológica. E era-o de facto. O Graça e o José, coadjuvados pelos seus amigos e camaradas, pegaram nos pinceis, nas tintas, nos fios, nos lápis, no giz, nas réguas e nos esquadros, nas tachas e nos martelos e nos Estatutos do Partido e foram pintar um mural numa parede que servia de resguardo a uma moradia a modos que burguesa. A orientação era boa e a sua posição em relação à rua e aos transeuntes era a ideal.


Para os estimados leitores não ficarem na dúvida, temos de cumprir – mesmo que nos custe, pois nestas coisas não gostamos de tomar partido –, com o dever revolucionário de informar que o Mário “Camões” e o Carlos Chouriço, mesmo a contragosto, se juntaram à brigada de agitprop, pois, sendo dissidentes ao nível da ideologia e da praxis partidária, como já vos demos a devida conta, não conseguiam cortar com a amizade.


Para eles a amizade estava acima de tudo. Até acima do Partido, daí a sua propensão para a debilidade ideológica, para o sectarismo pequeno-burguês e para os seus persistentes desvios ideológicos. Como todos bem sabemos, e a História nos transmite amiúde, são militantes deste tipo que dão em dissidentes e se transformam em perigosos anticomunistas. Dizem por aí que fracos comunistas dão anticomunistas audaciosos. As contradições da burguesia, tal e qual os caminhos do Senhor, são enigmáticas.


Antes de começarem a traçar as linhas quadriculares que iam possibilitar dar a forma correta ao mural, consultaram atentamente o esquiço que tinham na pasta onde a bandeira do Partido estava desenhada e devidamente repartida pelos respetivos quadrados. Alterando a escala, o estudo ia permitir que a bandeira ficasse como era estatutariamente exigido.


É que com a bandeira do Partido não se brinca. Por isso consultaram mais uma vez os Estatutos, nomeadamente o Capítulo X, intitulado “Símbolos do Partido”, art. 43º: “A bandeira do Partido Comunista é um retângulo de tecido vermelho que tem no centro em cor de ouro a foice e o martelo cruzados, símbolo do trabalho e da aliança entre os operários e os camponeses…”


“Então vamos lá a isto”, disse o Graça virando-se para o José. E com o giz e a régua desenhou os quadrados respetivos, tantos quantos os que se encontravam no esquiço. Nem mais, nem menos. Depois foi a vez do José se pôr a desenhar a foice e o martelo bem ao centro, como mandavam os estatutos. Nem menos, nem mais.


Para todos os camaradas poderem participar na tarefa revolucionária, o Graça, como bom e leal comunista, deu a ler ao Mário “Camões” o texto respetivo. Mas o Mário “Camões”, pedindo humildemente desculpa, despachou a tarefa para o Carlos Chouriço, argumentando, e bem, que devido ao olho de vidro e à pouca luz ambiente que por ali havia, as letras se tornavam pouco nítidas, o que podia originar alguma informação deficiente que pudesse por em causa o correto desenho da bandeira e, como muito bem tinha dito o camarada Graça, com a bandeira do Partido não se brinca.


Com voz neutra, como manda a boa tradição marxista-leninista, o Carlos Chouriço leu: “Em cima e à esquerda, debruada em cor de ouro, uma estrela vermelha de cinco pontas, símbolo do internacionalismo proletário…”


“Para aí Carlos”, pediu o Graça. E o Carlos parou. Mais uma vez pegou na régua, ou no esquadro, já não estamos bem cientes, mas para o caso tanto monta, olhou para o esquiço e traçou as linhas que devia traçar. Nem mais, nem menos. E lá apareceu a tal estrela, que afinal eram duas, uma, mais pequena, inscrita numa outra maior, para poder dar o respetivo efeito de debruo, e dessa forma poder a estrela vermelha ser inscrita no retângulo vermelho, que é a bandeira do Partido Comunista, e conseguir ser visível.


Terminada a tarefa, novamente o Graça deu ordem ao Carlos Chouriço para continuar a leitura. E o Carlos, novamente, com a sua voz neutra, como manda a boa tradição marxista-leninista, continuou a ler: “E por baixo da foice e do martelo, bordadas em cor de ouro, as palavras «Partido Comunista». Presas ao tecido…”


“Alto e para o baile”, ordenou o Graça. E o Carlos voltou a parar. Então foi a vez de o José pegar no giz e desenhar as respetivas letras. Redondinhas e à escala devida, enfiadas nas linhas e nos respetivos quadrados. Nem menos, nem mais.


Depois da tarefa terminada, o Graça ordenou: “Agora toca a mexer as tintas e a pintar.” Mas o Carlos Chouriço interrompeu-o para informar que o artigo ainda não tinha chegado ao fim. E pôs-se a ler: “Presas ao tecido, no ângulo superior esquerdo, duas fitas com as cores nacionais: uma verde e outra vermelha.”


“Disso passamos”, avisou o Graça. Nem tudo o que aí vem é para levar à letra. As fitas são para colocar na bandeira. Mas aqui trata-se de um desenho. Um mural é tecnicamente diferente. Além disso, aqui que ninguém nos ouve, eu mando o nacionalismo às malvas. Cá o rapaz é um verdadeiro comunista. E um verdadeiro comunista não tem nacionalidade. Só tem internacionalidade. É um militante planetário e plenipotenciário. Um revolucionário não tem pátria, a sua pátria é a própria revolução. Nisso sou um seguidor do Che Guevara. Para ele não havia fronteiras, depois da revolução em Cuba exportou-a para o Congo e depois para a Bolívia, ele que era Argentino. Por isso deixa lá as fitas e vamos ao que verdadeiramente interessa.”


“Mas aqui ainda há mais uma frase: “O hino do Partido é A Internacional.” Ó Porra, isto não interessa.”


“Olha, deixa estar”, disse o Mário “Camões”, “A Internacional canto-a eu.” Ai não cantas não”, avisou-o o Graça, “é que podes acordar a vizinhança e por estas bandas não somos lá muito bem vistos. Além disso, eu não quero ser mordido pelos cães ou levar o rabo cheio de sal para casa ou chumbo no buxo. Cantamo-la todos quando formos petiscar. Lá no restaurante do camarada podes cantá-la até que a voz te doa. Agora toca de pintar.”


Mais uma vez o Mário “Camões” se desculpou com a falta do olho que não lhe permitia pintar com o rigor exigido, nomeadamente no enchimento da foice e do martelo, podendo deixar a aliança operário-camponesa tremida ou mal definida. Para revisas, já bastavam os burocratas do Partido. Ele a poder ajudar nalguma coisa era no enchimento dos vermelhos. Para definir as linhas de fronteira, o melhor era o José que tinha a mão firme e os princípios todos no devido lugar.


Enquanto vários camaradas continuavam nos seus postos a manter o perímetro de segurança em relação à secção técnica e artística do núcleo da brigada da agitprop, o Graça, o José, o Carlos e o Mário pintaram a bom pintar a Bandeira do Partido. Os dois primeiros a definirem os contornos e os outros a encher o restante painel.


Quando deram por terminada a tarefa, arrumaram o material e dirigiram-se ao Centro de Trabalho com a alegria comunista estampada no rosto, que, ao contrário do que afirmam os reacionários, é igualzinha à da restante gente. Nem mais, nem menos. É bom que os mitos, as falsidades e as calúnias se comecem a desfazer. E se esta obra servir também para isso, ótimo. Se não amigos na mesma. Mas lá tentar, tentamos, até que a tentação nos doa.

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