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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Nov12

O Homem Sem Memória - 136

João Madureira

 

136 – O Graça sugeriu ao José que utilizasse como ponto de referência para a escola de pioneiros a catequese dos católicos, ou, ainda melhor, as madrassas islâmicas onde as crianças memorizam o alcorão. O objetivo saltava à vista, pois é dessas escolas de onde saem os militantes de Alá mais revolucionários e fundamentalistas. Os comunistas também têm de ser capazes de educar nas suas escolas os revolucionários do futuro. E quanto mais cedo essa intervenção ideológica se fizer melhor sucedida será.


O camarada José lá foi para a sua escola de pioneiros com o mesmo entusiasmo com que os presos políticos na URSS iam para o Gulag. Mas uma coisa era colocarem-no à frente de uma turma da catequese comunista, outra, bem diferente, era obrigá-lo a administrar única e exclusivamente conhecimentos dos quais já começava a duvidar. Por isso, esqueceu as orientações políticas e ideológicas do Graça e do camarada funcionário e resolveu ser ele próprio a delinear o currículo. Perdido por cem…


Aceitou incluir o ensino de A Internacional e outras canções revolucionárias, condescendeu em obrigar a decorar o Manifesto Comunista aos camaradas pioneiros, mas decidiu, por sua própria conta e risco, fazer também da escolinha um centro de escrita criativa. Teimas e desvios ideológicos que lhe iriam sair caros no futuro.


Ensinou-lhes regras básicas de agitação e propaganda, truques para vender A Verdade, como por exemplo começarem a chorar e a acusarem os que se recusavam a comprar a voz da classe operária de reacionários, anticomunistas primários e inimigos da liberdade. Adestrou-os a levantar o punho direito enquanto gritavam palavras de ordem, pois o esquerdo era gesto dos traidores socialistas. Também lhes ensinou jogos populares, canções de roda, lengalengas, anedotas e outras coisas mais ao gosto popular. Mas no que porfiou mais foi na escrita criativa.


Pediu-lhes que escrevessem tudo aquilo que pensavam. E a maioria escreveu, como mais à frente veremos. E disse-lhes que não ligassem muito à pontuação, pois ela é um elemento limitador do desenvolvimento das ideias mais criativas. Mais tarde, José Saramago iria seguir esse caminho com o sucesso que todos conhecemos.


A sua primeira proposta foi corriqueira, mas honesta. Sugeriu que escrevessem um texto subordinado ao título: “O que quero ser quando for grande”. Eles, os camaradas pioneiros, pobres coitados, torceram de imediato o nariz pois essa era o tipo de proposta em que a professora da primária era useira e vezeira. Mas ele disse-lhes que ali na escola dos pioneiros tinham liberdade para escreverem aquilo que quisessem, desde que fosse genuíno.


“E o que é que quer dizer «genuíno»?”, perguntou a camarada pioneira Lídia com a sua curiosidade pequeno-burguesa. O José explicou-lhe o significado, mas avisou que esse tipo de perguntas era mais para a escola oficial. Na escolinha dos pioneiros deviam prestar mais atenção a outras coisas. A semântica podiam-na descobrir pelo contexto.


Novamente a camarada pioneira Lídia, com a sua impertinência infantil misturada com o seu tipo de educação pequeno-burguesa, perguntou qual o significado das palavras «semântica» e «contexto». Ele tornou a insistir na necessidade do «contexto» para perceber a «semântica», mas que o mais importante era tentar jogar com as palavras para se construírem frases eficazes e com essas mesmas frases construírem bons textos que depois podiam utilizar para compor obras que pudessem influenciar a revolução e abrir horizontes ao nosso povo, que tão carenciado andava deles. Aqui a camarada pioneira Lídia, voltou a perguntar o que queria dizer «carenciado», pois não entendia a sua «semântica» nem atinava com o «contexto».


Nesta altura, o camarada pioneiro João também resolveu entrar na discussão e questionou o camarada professor José sobre o que queria dizer com a expressão «abrir horizontes», pois, ao que sabia, os horizontes não se podem abrir pois eles estão abertos por natureza.


A camarada pioneira Lídia – porque não ia muito ao partido… desculpem, à bola, com o camarada pioneiro João, pois, apesar de serem filhos de dois casais de professores de educação física, davam-se quase como Estaline e o Lenine nos últimos tempos de vida de Vladimir Ilitch Ulianov – contrapôs que isso era a modos que uma forma poética, e marxista-leninista, de dizer que os livros revolucionários que pretendiam escrever iam iluminar o caminho que o povo trabalhador tinha de percorrer até ao socialismo. Mas o camarada pioneiro João, não querendo ficar para trás no poder de argumentação, contrapôs que a expressão utilizada por ela (“ela, não”, avisou a Lídia, “camarada pioneira Lídia, se fazes favor, e também chefe de turma”) era incorreta pois não é um caminho o que vai conduzir o nosso povo ao socialismo, mas antes uma estrada alcatroada.


O José, habituado que estava a este tipo de discussões entre militantes, deixou que a controvérsia continuasse, pois apesar de chata, interrompê-la poderia desencadear uma luta entre fações dentro do partido, facto que podia desencadear uma onda de dissidência da qual iria inevitavelmente ser responsabilizado. Ora ele não estava para esse tipo de coisas. A sua ficha já estava repleta de informações pouca abonatórias quanto à sua firmeza ideológica e à sua quase total incapacidade para o trabalho unitário.


Vendo a discussão tomar ares de polémica ideológica, o camarada pioneiro Luís, filho do camarada funcionário, resolveu vir à liça e argumentar que o que verdadeiramente nos vai levar ao socialismo não é um caminho de terra, nem uma estrada alcatroada, mas antes uma autoestrada bem asfaltada.


“E porquê uma autoestrada asfaltada?”, perguntou curioso o camarada professor. Ao que o camarada pioneiro Luís, filho do camarada funcionário, respondeu ao camarada professor José: “Pois porque na estrada cruzam-se os carros em duas direções opostas, sugerindo que enquanto um povo vai, outro vem, o que não está nada de acordo com o sentido único do socialismo. Caras ao socialismo só podemos ir numa direção. Quem vai e volta, volta e vai são os traidores socialistas burgueses. Os comunistas quando se dirigem para o socialismo fazem-no num só sentido, em via única. Daí a sugestão das autoestradas. Mas concordo que a imagem da estrada alcatroada é muito melhor do que a de um caminho…”


Sentindo-se mal interpretada, a camarada pioneira Lídia exprimiu que quando falou em “iluminar o caminho do socialismo” apenas queria utilizar uma figura de estilo que significasse o “sentido da história” e não um caminho feito de terra e pó por onde caminham as cabras, os burros e os bois.


“E os velhos!”, lembrou o camarada pioneiro João. “E as velhas!”, recordou o camarada pioneiro Luís. “E os burros!”, insistiu a camarada pioneira Lídia. “Estás a chamar-me burro?”, perguntou o camarada pioneiro João à camarada pioneira Lídia. “Porquê, achas-te esperto?”, perguntou a camarada pioneira Lídia como quem responde. “Se eu sou burro, tu és cabra.”


Vendo a discussão descambar para o insulto, mesmo que infantil, o José bateu com a mão na mesa e disse que estava na hora do recreio e lembrou que um camarada pioneiro não chama nomes aos outros camaradas pioneiros. Os comunistas não se insultam, não discutem, apenas trocam pontos de vista. “E escolham bem as brincadeiras! Façam do vosso recreio também um momento de aprendizagem e sã camaradagem.”


O camarada pioneiro Luís perguntou se podiam brincar à guerra de guerrilhas com as armas de plástico. Ele disse que sim. Perguntou-lhe se podia fazer de Che Guevara. Ele disse que sim. Perguntou-lhe se lhe podia emprestar o charuto de plástico. Ele respondeu que não. Que fumar não é próprio de crianças. “Nem na brincadeira?”, perguntou o camarada pioneiro Luís. “Não devemos brincar com coisas sérias”, respondeu o camarada professor José. “Mas brincamos às revoluções!”, observou novamente com muita acutilância o camarada pioneiro Luís. “Já lá para fora, ou a guerra de guerrilhas acaba mesmo antes de começar.” “E qual é o meu papel?”, questionou a camarada pioneira Lídia. “Olha, podes fazer de camarada companheira do camarada Fidel”, sugeriu o camarada José apontando o João que já lá vinha todo enfarpelado de verde oliva, com a sua metralhadora a tiracolo, os seus óculos e as suas longas barbas. “Nem morta! Antes reacionária que companheira daquele trotskista.” “Mas o camarada Fidel nunca foi trotskista”, observou corretamente o camarada professor José. “Isso sei eu. Mas não me estava a referir ao camarada comandante Fidel, mas sim ao camarada pioneiro João.” Ao que o camarada seu professor respondeu: “Não deves insultar dessa forma um teu camarada pioneiro. É muito feio.” “Olha, camarada, sendo assim então prefiro ficar aqui dentro na sala a memorizar e recitar poemas do Ary dos Santos para a festa de Natal.”


Mesmo sem querer, o camarada José riu-se.

 

28
Nov12

O Poema Infinito (122): prelúdio e invocação

João Madureira


Olho até cristalizar a tua transparência, a transparência dos dias e a transparência das raízes. Tento condensar todos os possíveis. Tento que a água e o fogo te lambam as mãos, os pés e o desejo. E fotografo-te a libertares-te da roupa lenta com gestos rápidos. Só os animais que se desejam conseguem vibrar juntos. Nem a distância nos perturba. Nem a distância nos afasta. Nem a distância nos distancia. Por isso fabrico versos alisados pelo alfabeto e temperados com a impaciência branda do tempo. Habitas-me a memória, por isso ela se reproduz como o eco dos gritos das sereias na profundidade dos mares. Uma carga semântica explode no silêncio da noite. E a noite chora. Mergulhamos no céu da terra à velocidade dos feixes iluminados. O teu olhar ganha novo significado. Tanta informação mata o prazer. Por isso o teu rosto se cobre de sol e se agarra ao vento e chora lágrimas tão precisas como metáforas. A lentidão introduz a triste organização do abandono. As palavras constroem-se fora de toda a lógica. E a sua ferocidade é transportada numa procissão de sofismas. E o desejo submete-se ao desespero. Por isso os nossos olhos respondem ainda ao desgaste da luz. Invoco a liberdade e invoco o seu som. Invoco a natureza e invoco os campos e as formas bucólicas e os precipícios e as ideias em folha e invoco também os preceitos e a memória de deus e o som dos sinos das aldeias. E invoco a combustão e a penúria, os frutos escritos nas entranhas das árvores e a culpa, toda a culpa, toda a santíssima culpa oculta nas vozes dos mortos, e a violência da sombra e a avidez da luz e todos os sistemas políticos do mundo. Invoco o maneirismo da destruição, as coisas que perturbam, a música inoperante, os fragmentos do quotidiano, o fascínio pelos papéis, a precisa velocidade das asas dos pássaros, a filosofia do fastio. E invoco ainda a brincadeira dos cães e os lábios gélidos da vida e o perfume silencioso dos gestos amorosos e a cortesia tímida das conversas e as palavras maduras e as palavras luminosas e as estações transparentes. E invoco igualmente as árvores que falam e o desassossego da fantasia e a fresca ansiedade da certeza e a preguiça patética do sono e os fragmentos do apocalipse e as medidas preventivas dos filhos da puta e os pensamentos enrodilhados nas gargantas dos domingos sacrílegos e o sorriso natural do entendimento e as minúsculas partículas de deus e os filhos do desassossego. E invoco a seminal geometria dos pénis e a notável interpretação das vaginas. E invoco para sempre a explosão nuclear da criação. E a saudade das formas. E a forma das saudades. E o choro convulsivo das metáforas. E o corpo esbelto das ninfas que comem palavras em suspenso. E invoco, para que conste, a tristeza antiga da morte, a dolorida alegria da vida, o pânico das árvores encolhidas. E finalmente invoco a beleza fulminante das pessoas que já desapareceram e que nunca mais voltarei a ver. Por isso continuo a olhar até conseguir cristalizar a tua transparência. Toda a tua transparência. Absolutamente toda a tua transparência.

26
Nov12

Pérolas e diamantes (13): cogumelos, amigos e hífenes (ou hífens)

João Madureira


Ora vamos lá por partes. Desta vez pretendemos começar pelos achados. Não pelos candidatos a autarcas perdidos, nem pelos candidatos a autarcas achados, mas sim pelos cogumelos que o senhor José Alves descobriu lá para os lados de Ferral.

 

O valente barrosão deparou-se com um cogumelo que pesava um quilo e quatrocentos gramas. Homem acostumado a estas azáfamas afirmou, espantado, que nunca na sua vida tinha enxergado coisa igual, um cogumelo tão grande. De facto é um achado estranho. Disse-o ele e dizemo-lo nós. E também o expressaram todos quantos viram o cogumelo gigante.

 

O senhor José Alves considera que é importante mostrar às pessoas que as terras do Baixo Barroso são férteis. Parece que por aquelas bandas há muita coisa do género, mas em pequena dimensão. Segundo o feliz apanhador de cogumelos, o enorme fungo comestível vai dar umas “tainadas” jeitosas, cozinhado com bocados de presunto entremeado.

 

Em Vila Pouca de Aguiar, depois do início das chuvadas passageiras do outono, cerca de três mil pessoas iniciaram uma corrida aos cogumelos em diversas manchas florestais do concelho. Cerca de meia centena são apanhadores comerciais.

 

Segundo veio nos jornais, a quantidade de cogumelos recolhidos pode atingir as quatro toneladas e render cerca de quarenta mil euros por época. E a escolha é diversa. Pode ser o popularmente conhecido como frade ou roque (“macrolepiota procera”), o nosso conhecido tortulho (“tricholoma esquestre” e “tricholoma terreum”), o distinto níscaro (“boletus edulis” e “boletus pinophilus”), a modesta sancha (“lactarius deliciosus”), a aprazível língua de vaca (“fistulina hepática”) ou o trivial cantarelo (“cantharellus cibarius”).

 

Têm os estimados leitores de convir que até os nomes científicos dos cogumelos são graciosos e agradáveis, quase tão saborosos como os próprios míscaros que guisamos com carne e comemos à mesa aquecidos por uma boa lareira e por um tinto de Valpaços.

 

Ora pronunciem comigo em voz alta: “macrolepiota procera”. E repitam “ma-cro-le-pi-o-ta pro-ce-ra”. [E desculpem lá a hifenização. Sei que os hífenes, (ou hífens, escolham à vontade) pelo menos estes, não fazem parte das palavras do latinório científico. Limitei-me a utilizar estes tracinhos pequenos para dividir as duas palavras em sílabas. Mas se não estiverem conforme a lei, conformem-se, pois eu esmifro-me tanto, mas mesmo tanto, a pensar no que os outros pensam acerca do que eu penso que não só me atrapalho a teclar nas teclas como dou volta ao teclado e teclo tantas vezes no hífen que me atrapalho no travessão e “estouque” me atrapalho tanto que chego a atrapalhar o estimado leitor, ou leitora.]

 

Veem que bonito. Bonito e erudito. Em vez de dizerem que cearam tortulhos, e sem tracinhos, experimentem explicar na vossa roda de amigos, ou conhecidos, que ao jantar saborearam uns “tricholomas esquestres” e “tricholomas terreuns”, libertos de toda a hifenização, por isso mesmo saborosíssimos, e vão ver que eles, os vossos amigos, não os cogumelos, e muito menos os hífenes, ou hífens, ou tracinhos, pois para o caso tanto monta, porque não se manducam, além de ficarem a salivar como o cãozinho de Pavlov, passarão a admirar-vos ainda mais pela vossa graciosa sapiência. E também porque não são ingénuos ao ponto de deglutirem os hífenes (bifes?) como o cão fazia aos tracinhos (ossos?). Se é que lhos davam, claro está.

 

E a seguir podem diversificar, explicando, por exemplo, que lancharam umas atraentes “fistulinas hepáticas” panadas com pão ralado ou com omelete de ovo de galinha garnisé. Se por lá estiver alguém que sofra do fígado, evitem pronunciar o termo “hepática” que pode levar à indesejável associação com a doença e estragar de imediato o efeito surpresa e a digestiva conversação. Podem limitar-se a utilizar apenas o termo “fistulina”.

 

Para prolongar o efeito, e os convivas não se aperceberem de que os estimados leitores apenas pronunciaram a primeira parte do nome científico do cogumelo, pois, de certeza que já descobriram que têm sempre dois, digam, simplesmente, que degustaram umas “fistulinas” embebidas em ovo de galinha garnisé. E se algum deles, mais atrevido, perguntar “fistulinas” quê?, para se dar ares de entendido, respondam-lhe dividindo a palavra “fistulina” em sílabas para colocar a esperteza do insolente no seu devido lugar. Tipo: Não percebeste? Eu torno a repetir: “Fis-tu-li-na”, (e ainda mais devagar) “fis-tu-li-na” embebida em fina e amarela omolete de ovo de galinha garnisé. Entendeste agora direito ou queres que te faça um desenho? Aqui chegados, podem ter a certeza de que o atrevido já meteu a viola no saco.

 

Por exemplo, eu, por altura dos Santos, em amena cavaqueira com alguns amigos que já não via há muito tempo, e que por acaso até estavam com outros amigos que presentemente estão ligados à política, experimentei dar um arzinho da minha graça e, para fazer conversa e ficar bem visto por gente tão distinta e ilustre, pois os meus amigos que por cá encontro nos Santos são todos ilustres e distintos, daí o conhecerem políticos, mas, como ia dizendo, experimentei pôr cara de entendido e, enquanto eles falavam de marisco, champanhe, bifes, hífenes, caviar, salmão fumado e bombons, eu, mais terra a terra, e para não me ficar atrás, pois já me basta ter quedado a penar aqui pela província enquanto eles se pavoneiam pelas distintas metrópoles lusitanas, introduzi na conversa, com o meu ar de transmontano de província que não saiu da província e por isso mais provinciano é, os cogumelos. E fi-lo do jeito que vos passo a contar.

 

Com um ar entre o indiferente empenhado, tipo o nosso estimado vice(hífen)presidente António Cabeleira, e o jovial insonso, género o do senhor presidente fantasma João Batista, olhei para o grupo e disse com o ar mais casual possível: «Ontem à noite entremeei umas “macrolepiotas proceras” que me souberam pela vida. Pu-las nas brasas até ficarem no ponto, polvilhei-as com umas pedrinhas de sal grosso, reguei-as com um fiozinho de azeite e estendi-as virtuosamente numa travessa muito antiga que a minha avó me deixou. Numa frigideira, também das antigas, fritei um pouco de presunto, cortei pão centeio às rodelas, enchi uma caneca de vinho e, sentado no escano e de pernas abertas para a lareira, ceei como já o não fazia há alguns dias.»

 

Bem, eles olharam para mim com um ar tão guloso, mas mesmo tão guloso, que até me deu pena. Claro está que apesar de se alimentarem de coisas finas e boas, quando ouvem falar de presunto, de pão centeio e de vinho tinto da região, acende-se-lhes um desfastio no estômago que se transmite aos luzeiros, pois ficam logo com uma claridade nostálgica que dá aflição. Claro que, apesar de conhecerem os frades, ou roques, ou rocas, não sabem o que são “macrolepiotas proceras”. Mas como são do tipo orgulhoso, também não perguntam. Ninguém gosta de dar parte de fraco. Muito menos eles que são cultos até dizer chega. Só que ninguém sabe tudo.

 

Como os vi tão ougados como crianças, mas tão altivos como o Pedro Passos Coelho que é incapaz de, mesmo tendo a plena consciência de que a sua política falhou, reconhecer que errou e arrepiar caminho, resolvi levar o meu exercício mais longe e, à minha maneira altruísta, pus-me com a seguinte conversa: «Hoje vou preparar uns “boletus edulis” e uns “boletus pinophilus”, com carne de javali. Tudo no pote. Vou acompanhar o petisco com batatas barrosãs e tinto de Barreiros. Requintes destes só cá na terra é que se encontram. Eu misturo os “boletus”, porque os “edulis” têm um travo mais espontâneo que os “pinophilus”, que são mais suaves. Dos dois sabores combinados, resulta um terceiro que é uma magnífica síntese entre a natureza e a cozinha tradicional. Há muita gente que gosta de misturar sabores. Enfiam tudo dentro da panela e depois comem à bruta. Mas a verdade é que, por exemplo, os “cantharellus cibarius” não ligam muito bem com os “boletus”, especialmente com os “boletus edulis”, pois intensifica-lhes o sabor agreste. Por isso, devem misturar-se com os “boletus pinophilus”, ou com os “tricholomas”, de preferência o “tricholoma esquestres”, pois os “tricholoma terreum” também têm tendência a acidular um pouco a mistura.»

 

No fim da preleção, os meus amigos mais amigos, riram-se e os outros riram-se porque viram rir os primeiros. Já os nossos amigos políticos, ou afins, riram-se porque é o que costumam fazer por tudo e por nada. Menos o nosso vice(hífen)presidente da câmara, honra lhe seja feita, que apenas sorri quando a sua assessora de imagem lho pede lembrando-lhe que quando a sua cara sai a ilustrar as notícias dos jornais tem de estar sorridente.

 

E tudo isto porque depois dos cogumelos vos queria falar de nabos e, por junto, dos motivos porque quatro presidentes em fim de mandato já andam a lutar para ver quem se vai sentar na cadeira do poder que o Relvas lhes está a aprontar. Mas como a crónica já vai adiantada, fica para a semana.

 

 

PS – Por favor, senhor presidente, apareça. Olhe que continuamos impacientemente à sua espera. 

23
Nov12

O Homem Sem Memória - 135

João Madureira


135 – Mesmo contra a sua vontade, o camarada José lá se decidiu a ir pregar o sermão comunista aos girinos. O Graça deu-lhe carta-branca quanto aos métodos e às estratégias pedagógicas a utilizar, apenas foi ortodoxo quanto aos conteúdos: a cartilha tinha de ser a comunista e mais nenhuma. Podia utilizar todos os materiais impressos do partido, mas até a bibliografia unitária, porque subtilmente enganadora, estava rigorosamente interdita. Nesta idade só podia ser fornecida aos camaradas pioneiros a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade. As subtilezas argumentativas ficavam para uma fase posterior. E quanto mais posterior melhor.


Forneceu-lhe mesmo uma listagem de obras a decorar, gentilmente cedida pelo camarada funcionário que a foi copiar diretamente da bibliografia recomendada à escola superior do Partido, à imagem e semelhança da escola central de quadros leninistas do Partido Comunista da União Soviética.


“Abrenúncio!”, exclamou o camarada José quando o camarada Graça lhe entregou a bibliografia aconselhada datilografada a dois espaços em folha a4.


“O Manifesto? Mas eles mal sabem ler! E mesmo que soubessem. Esse livro é ilegível. A mim quase me matou. Pobres crianças.” “Não subestimes a capacidade dos camaradas pioneiros.” “Subestimar, dizes tu? Subestimar? Como é que eles vão compreender aquele jargão todo?” “Jargão? Tu atreveste a qualificar a linguagem científica do Manifesto do Partido Comunista como jargão? És um apostata visceral.” “Eu?” “Sim, tu?” “Porque embirras com tudo o que eu digo? Fiz-te algum mal?” “E eu fiz-te algum mal a ti?” “Se me fizeste mal? Tu perguntas-me se me fizeste mal? Então como qualificas a decisão de me mandares organizar a escola de pioneiros e dar lá aulas?” “E o que é que a escola tem de mal?” “O que tem de mal? Eu faço a pergunta ao contrário, o que é que ela tem de bom?” “Perguntas-me o que é que uma escola onde se ensina o comunismo tem de bom? É isso? Será que não consegues descortinar o seu sentido revolucionário?” “E a escola tem algum significado revolucionário especial que necessite de ser descortinado?” “Tu que até tens a mania que sabes tudo não consegues enxergar o objetivo?” “Tu achas que eu tenho a mania que sei tudo?” “Tu não sabias disso?” “Disso, o quê?” “Tu não sabias que tinhas essa mania?” “Tu achas que se eu soubesse que tu me achavas convencido era teu amigo? Achas?” “Quem te julgas tu para me inquirires como se fosses um camarada dirigente?” “Ai apenas os camaradas dirigentes é que estão autorizados a fazer perguntas idiotas?” “É essa a tua contribuição para o esclarecimento da verdade? É? Chalacear com a organização e os dirigentes do Partido deixa-te contente?” “Desde quando é que colocar questões incómodas é chalacear?” “Para ti o que é que é chalacear?” “E isso interessa-te para alguma coisa?” “Olha lá, onde queres chegar com esta conversa de parvos?” “Conversa de parvos? Tu estás a chamar-me parvo?” “Até onde pretendes levar esta discussão? Não estarás a negar-te a cumprir uma tarefa diretamente incumbida pela direção regional?” “Ai foi a direção regional quem te incumbiu de me incumbires tão honrosa tarefa revolucionária?” “Achas, por acaso, que eu te colocava a executar uma tarefa revolucionária tão melindrosa sem uma decisão de um organismo superior?” “Porque será que quando te faço uma pergunta concreta tu te desculpas sempre com os de lá de cima?” “Com que intenção me insultas?” “As minhas perguntas insultam-te?” “Perguntas-me com esse desdém se as tuas perguntas me insultam?” “As minhas perguntas insultam-te?” “Tu perguntas-me com esse desdém todo se as tuas perguntas me insultam?” “As minhas perguntas insultam-te?” “Tu tens a distinta lata de me perguntares com toda essa altivez de intelectual pequeno-burguês se as tuas perguntas me insultam?” “As minhas perguntas insultam-te?” “Tu és meu camarada?” “Duvidas?” “Tu és meu camarada?” “Duvidas?” “Então porque será que nunca cumpres uma ordem dada por mim?” “Ai tu dás-me ordens?” “Tu és meu camarada?” “Porque não me perguntas antes se sou teu amigo?” “Respondias mais rápido?” “A ti interessa-te a rapidez de uma resposta ou a sua sinceridade?” “A tua adesão ao Partido foi sincera?” “Nesta ocasião, a quem é que isso interessa?” “A ti não te interessa?” “E a ti interessa-te?” “Porque é que a verdade não havia de me interessar?” “Não foste tu que disseste que a verdade só interessa se ajudar a revolução?” “E tu não concordas?” “Contigo ou com a verdade?” “Porque nunca consegues ser afirmativo?” “O teu objetivo é que eu concorde contigo?” “Não consegues responder?” “Responder para quê?” “Queres ou não queres cumprir com a decisão do coletivo partidário?” “Achas que isso ajuda a revolução?” “Pensas que eu ando a brincar às revoluções?” “Porque te indispões comigo como se eu fosse teu inimigo?” “Porque me perguntas isso?” “Porque achas que aderi ao Partido?” “Porque és uma pessoa inteligente?” “Achas?” “Porque és uma pessoa sincera?” “Achas?” “Porque és solidário?” “Achas?” “Então porque caralho foi?” “Ora adivinha lá?” “Porque queres transformar o mundo?” “Será? Olha lá, a amizade para ti conta alguma coisa?” “Porque me fazes essa pergunta?” “Queres mesmo que eu vá dar aulas aos pioneiros?” “E tu não queres?”


Depois de mais uma noite de copos e desabafos, os dois concordaram em continuar a ser amigos. Mas uma coisa o José tinha de fazer, levar para diante a escola de pioneiros. E com sucesso. Pois do seu sucesso dependia a ascensão de ambos no Partido. Por isso, o José perguntou-lhe: “E tu achas que eu quero ascender no Partido?” “E quem não quer?” “Tu queres?”


A partir daqui resolveram calar-se para podermos continuar com o nosso relato. Tanta pergunta também cansa. Não só quem as faz, mas, sobretudo, quem as lê. 

21
Nov12

O Poema Infinito (121): a grande solidão dos sonhos

João Madureira


Hoje é o sexto dia da criação, a sexta morada do silêncio inicial. Por isso cito os nomes dos bichos e das flores e escrevo num caderno a sua implícita significação. E anoto os sentimentos que me sugerem: melancolia, tristeza, alegria, ternura. E recopio tudo para a tua pele. Tu manténs a imobilidade absoluta da beleza. Os teus olhos abrem sulcos nos meus. E o teu rosto dispersa-se pelo jardim e o vento recolhe a dor da morte que se concentra na penumbra do entardecer. Releio tudo e observo o frémito intenso da luz que se esvai. Com a ponta dos dedos toco no teu corpo e sinto-o a falar com o meu em surdina. Por isso escrevo no teu o meu desejo com tinta permanente. E de vez em quando sublinho as palavras que se confundem com o latejar dos nossos corações. E a memória enrola-se em imagens impercetíveis. Anoitece. E com a noite vem a solidão, a obscura solidão da sonolência. E as paredes balbuciam poemas do tempo maduro. Lembramo-nos dos verões prolongados da nossa afeição, com os sexos aflitos, com as bocas triturando beijos, com a lua seduzindo rios, com o cio a subir por dentro de nós como a cobra bíblica do mal. E nós como anjos aflitos transmitíamos um ao outro todo o amor que é possível arrecadar nas estações quentes. Agora falamos do tempo com os olhos presos nos filhos e do futuro com os pensamentos fixos no desespero. E murmuramos desejos incompletos e olhamos em silêncio o tempo dos sorrisos. E tocamo-nos brincando com as mãos como o fazíamos quando éramos crianças descalças que chapinhavam na beira do rio. Presentemente já nos demoramos nos sorrisos que não nos apetecem e olhámos para a foz do rio em vez de o fazermos na direção da nascente. Somos como páginas ainda legíveis que se vão tornando ilegíveis. O sonho agarra-se à esperança do regresso. Mas os nossos rostos são atualmente mapas tristes. Agora fazemos promessas e sorrimos só deus sabe porquê. É como se tivéssemos os lábios viciados pela amargura. Todas as flores nos parecem amores imperfeitos. E a alegria tem o luminoso sabor a sal. Descobrimo-nos no silêncio cúmplice das palavras. Somos como a água magoada que reflete o cansado choro das magnólias. O tempo encobre-se para lá das portas da casa que atualmente permanecem quase sempre fechadas. E pelas janelas por onde entrava o verde da primavera presentemente só avistamos nuvens espessas que ensombram os dias e enegrecem a terra. No entanto, do nosso posto de vigia continuamos a olhar a rota das aves no céu. E as aves percebem-nos e tornam-se vibráteis. Sim, ainda é cedo para começarmos a matar palavras. Devemos tentar mais uma vez ortografar paisagens e descrevê-las minuciosamente como se fossem corpos vivos e transparentes. Por vezes, quando a solidão se torna maior, desenhamos escadas à medida da ausência e esperamos. Uma coisa se impõe como necessária: a grande solidão dos sonhos.

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