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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Mar16

Poema Infinito (296): por vezes

João Madureira

 

 

Criamos a amizade nas lonjuras íntimas dos campos, onde a terra é destra, o fogo é solitário, o ar é forte e a água é assombrosa. O mundo abraça-nos. Nós abraçamos o mundo. O campo é aberto, a terra firme e os homens comandam os seus cavalos pela tarde fora, atravessando a tristeza. O mundo, por vezes, fica estranho. Aprendi a acender a minha voz no amanhecer, quando regresso do teu corpo com o assombro dos costumes, sonhando exaltações, dissipando a ternura, lembrando-me das cidades antigas, da água doce que encontrei na tua boca, dos teus lábios memoráveis, da solidão da beleza, da variedade das noites, de todas as aproximações à intimidade, da ventura. Da aventura. Das desventuras. Atravessei o mar. Sonhar, por vezes, não é nada fácil. Conheci muitas terras, vi arrabaldes infinitos, saboreei numerosas palavras em múltiplas línguas, passei, e passeie, por ruas feridas de morte, onde o céu se fechava, onde os anjos eram ocasos. Onde a claridade ardia. Os pesadelos eram insistentes e as distâncias abatiam-se sobre nós fazendo doer o horizonte. O mundo, por vezes, fica inútil, diminuído, traiçoeiro, cheio de muros. As tardes transformam-se em espanto. A ideia de imortalidade fica sozinha. Ou, por vezes, acompanhada da sua sombra. As noites ficam retas como avenidas. O tempo destroça as horas, recolhe os nossos passos e devora a extensão da luz das estrelas. O tempo chega sempre adiantado e alonga-se com as distâncias. Ilumina-se com a solidão. Flagela os caminhos. As ruas ressurgem imóveis usurpadas pela devoção. A cidade, por vezes, fica cheia de esquinas. Disseram-me que os meus antepassados vieram das antigas terras do nascente. Agora, os seus descendentes recuperam as casas e a luz que eles trouxeram fixa nos olhares. Agora, os seus descendentes sangram as memórias guardadas como tesouros e cantam salmos ao poente. E rasgam as sombras. E emparedam o destino. E adquiriram o hábito de, por vezes, se sentarem nos pátios observando as tardes de domingo, enquanto esculpem pequenas estátuas de deuses cegos. As crianças ouvem falar em carrosséis e nas aventuras infinitas dos ginetes de lata e no sabor salgado das praias e no caudal infinito que estabelecem as mãos que trabalham. Do barro feito com a água do rio construíram-se as cidades e fundaram-se as pátrias. Dos troncos das árvores fizeram-se os barcos que aproveitavam quase sempre as correntes falsas. As estrelinhas amarelas marcam no céu sempre os sítios mais longínquos. Milhares de homens abalaram pelo mar. Milhares de homens vieram pelo mar. Encontraram-se. Aconteceram então as desgraças. As sereias desvairaram as bússolas. Os homens dormiam alheados das mulheres. As cidades dividiam-se ao meio e ficavam mais expostas à chuva e ao vento. Desde então, os homens passaram a partilhar um passado incerto. O tempo, por vezes, alarga as sombras, inclina o esplendor das manhãs, estende as tardes, anoitece os baldios, apropria-se dos becos sem céu e impede que a felicidade, por vezes, chegue à memória. Há coisas felizes que, por vezes, nos alegram a alma: a lembrança dos jardins das casas, a vida benigna das flores, a existência delicada das cores, a misteriosa lisonja dos afetos, a roda laboriosa do vento, a honra das casas, a vertigem dos campos semeados, as frinchas subtis que a água abre na terra, as cancelas, os carreiros, o sonho das árvores, a luz dispersa no olhar de quem ama e, por vezes, a eterna encruzilhada que nos observa lá do canto do céu.  

28
Mar16

283 - Pérolas e diamantes: o cordel democrático

João Madureira

 

 

 

A vida humana, já mo dizia minha avó, é o maior esbanjamento económico da natureza. Quando estamos preparados para começar a tirar rendimento da nossa experiência humana, morremos. E os que nos sucedem vão ter de começar do zero.

 

Afinal o que é a alma humana em pleno século XXI? Afinal onde param as fadas da modernização e do bem-estar?

 

As ideias deixaram de ser um bálsamo para passarem a ser um castigo.

 

Vivemos num tempo sem deuses e com homens (e mulheres, porque não dizê-lo por mais que isso custe aos cultores do politicamente correto) desinteressantes, dirigido por carreiristas e indivíduos corruptos, onde o capitalismo financeiro, com a cumplicidade ativa dos conservadores e neoliberais, agora fingidos de sociais-democratas, se empenham vorazmente no desmantelamento do Estado Social.

 

A narrativa e o argumentário perseguem-nos e moldam-nos o pensamento. É o medo vertido em expressões inconclusivas: descontrolo da dívida pública, quebra da poupança, crédito mal parado, necessidade imperiosa de reduzir despesas sociais e a urgente reforma das leis laborais. É o velho conto do vigário. A crise. A puta da crise.

 

A mando desses senhores convertemos as leiras em baldios e os pomares em eucaliptais. Atualmente os muros delimitam apenas espaços vazios e estéreis.

 

Mas temos de reconhecer que algo mudou: deixaram de nos tratar como escravos e passaram a tratar-nos como criados.

 

E nós, bem adestrados, passámos a utilizar o mecanismo psicológico das crianças que se imaginam invisíveis ao tapar os olhos com as mãos. Se não me vês, eu também não te vejo.

 

Tal como os nossos corpos, também as ilusões morrem e fedem depois de mortas. Independentemente dos perfumes com que as borrifemos.

 

Continua a ser bonito guardá-las. Chegámos mesmo a pensar defendê-las firmemente até ao fim. Mas até o bom vinho vai azedando dentro do pipo.

 

Agora, à semelhança dos bancos, a Comunidade Europeia, passou a intervencionar os Estados.

 

Mandam-nos a casa os homens vestidos de preto. Os cangalheiros financeiros passeando na brisa do Tejo com as suas pastas carregadas de discos externos.

 

Há quem sorria com as penhoras. Nada do que nos possa importar os afeta. Serve-lhes até de diversão.

 

As elites endinheiradas acreditam na liberdade individual. Sobretudo na deles. Creem na vontade e no esforço. São os vencedores que gastam o que ainda lhes resta de energia nos spa, nos court de ténis ou ainda nos luxuosos ginásios privativos, onde encontram outros vencedores como eles, que os ajudam a enriquecer graças a uma teia de influências que denominam de sinergias.

 

Foram ambiciosos, depois fantasiosos. Atualmente entretêm-se em ser mitómanos sociais.

 

Eles falam de transações de propriedades, trespasses, quintas que escrituram em nome de ex-mulheres, amigos, sobrinhos, cunhados, sogros, mães ou pais, alguns deles com alzheimer, ou outra espécie de senilidade, e falsificam até as assinaturas, tornando-os proprietários de apartamentos, lojas comerciais, sociedades de importação e exportação, pomares e até negócios escuros.

 

Alguns deles, muito poucos, vão parar à cadeia. Outros saem de lá como heróis. Mas a grande maioria safa-se sempre. Para que a planta cresça é necessário fertilizá-la com adubo ou estrume.

 

Nós somos como pássaros vivos com uma das patas presas por um cordel a quem dizem: Vá lá, voa, para que raio queres as asas?

 

Que rica democracia a nossa!

24
Mar16

Poema Infinito (295): trilogia do desaparecimento

João Madureira

 

 

Das margens do tempo regressam as manhãs gloriosas da infância, as suas sombras, os corpos matinais a agitarem-se como lagartixas, a permanência dos olhares, os galopes em cima dos ramos, a frescura da água, as voltas do tempo, a sede das tardes, a família junto ao lume. E regressam também as ruas e as esquinas das casas e os ninhos dos pássaros e os sonhos. E regressam ainda, lá da margem do tempo, os pais e as mães, ainda com os olhos cheios de estrelas e de destino, guardando-nos no meio das brincadeiras, olhando bem lá para longe, onde ainda morava o futuro. Éramos nessa época tão transparentes como o vidro das janelas das casas onde jogávamos às escondidas. Os cães também eram pequenos e ladravam de mansinho para não nos assustarem, nem eles se assustarem. As palavras bem empregues faziam com que fossemos capazes de comer a sopa sem nos engasgarmos. Os nossos olhos conseguiam sintetizar as linhas das montanhas que guardávamos em segredo debaixo das almofadas. E sonhávamos com o canto dos grilos e com o canto dos pássaros. Pensávamos que os animais falavam. Éramos tão inocentes que metíamos os pobres bichos em gaiolas para acolhermos os sons e guardávamos as cascas das nozes para navegarmos rio abaixo. Tocávamos os tambores e atirávamos seixos para caparmos o rio e amassávamos a lama para criarmos um novo homem e uma nova mulher, como nos ensinaram que Deus fez. Guardávamos a floresta e as flores e as giestas e os gnomos e os coelhos. Viajávamos dentro dos jardins e enchíamos as mãos, as bocas e as camisolas com a tinta que retirávamos das pétalas das flores. Durante a noite, escutávamos os ruídos do crescimento e tremíamos de medo. As noites eram enormes. Os nossos olhos eram grandes. O silêncio dormia ao nosso lado. Apanhávamos as amoras nas silvas dos caminhos. E também íamos às uvas, quando era tempo delas. Os cachos possuíam uma gravidade própria. O tempo é incansável. Agora teima em espalhar ausências, em alongar os olhares, em encher de lembranças os velhos caminhos das aldeias e os poucos bairros antigos das cidades. O tempo enche tudo de saudade e trepa pelas paredes, como heras. Os caminhantes começam a perder os caminhos. As recordações são agora devaneios. O lume aceso já não erradia a mesma luz intensa, nem possui o mesmo calor de outrora. As flores são mais descoradas e quase não têm cheiro. As arcas já não escondem tesouros. Já não nos crescem nas mãos carícias selvagens. Agora é tudo tão educado e tão previsível que nos faz chorar. Os homens e as mulheres desejam estar sozinhos. Os sorrisos são de plástico. Não surgem, nem se desvanecem. São contínuos. Algumas palavras continuam a rimar, mas já não fazem sentido. O lume continua aceso, mas apenas nas fotografias. O nosso mundo é uma galeria de imagens tão perfeitas que ninguém acredita nelas. As palavras recortam a realidade. Os poemas ficam em silêncio. A minha infância está resgatada numa bola de cristal, o céu é feito de mil palavras, os beijos furtivos continuam escondidos dentro dos envelopes, o perfume das flores tornou-se enjoativo, as maçãs amadureceram demais, o leite azedou, os espaços abertos começaram a fechar-se e os sonhos ardem dentro de outros sonhos. O amor coze ainda dentro do mesmo pote. O lume vai-se apagando aos poucos. Apagando. Aos poucos. Apagando. O vento lá fora agita os ramos do velho castanheiro. Ouço ainda borbulhar o caldo dentro do pote. Sorrio para a bola de cristal. A eternidade é uma palavra cada vez mais próxima e mais distante. O lume. A luz. A noite.

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