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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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28
Jul16

Poema Infinito (313): a onda expansiva da criação

João Madureira

 

 

Sinto-me como um nómada imóvel, fixando a terra e misturando tudo aquilo que é absoluto. Toda a ignorância é imponderável. O vento ora sopra na direção do mar, ora sopra na direção do deserto. Incendeia-se a letargia dentro da nossa sombra. Escutamos o canto dos pássaros enquanto debicam os frutos mais maduros. A vida nunca se repete. Por detrás dos arbustos invisíveis, os animais impregnam-se de lucidez e abandonam a sua condição. A sabedoria é uma espécie de distração ambivalente. Já não se tecem os olhares delicados de antigamente. O silêncio já não consegue ser tão absoluto. Apenas a inocência inicial é vestida com os mesmos tons de branco. No entanto, a sua limpidez é mais concreta, a sua essência é mais leve e o seu aroma é tão rápido como o tempo do amor e do desejo. Ondulamos dentro de uma alfombra transparente. A nossa paixão é exata. Os gestos mais ternos consomem-se na sua própria subtileza. A sua cortesia é breve. O nosso tempo equilibra-se, como se fosse um navio sulcando a substância das coisas. Dos livros mais antigos saem agora as nuvens mais densas carregadas de água que embriaga os pássaros. A vida é o espaço que medeia entre o júbilo e a agonia. Os livros, sei-o agora, não se completam, complementam-se. Os livros possuem os seus próprios terraços e os seus próprios abismos. A sua claridade por vezes ofusca. Por vezes adormecemos dentro deles. Por vezes abrimos as suas janelas e observamos os corpos que latejam, as palavras que vibram, os meteoros que os atravessam, as anémonas que os sulcam, o ardor que os possui, as estátuas que se elevam no seu interior, a forma que os deforma, os seus movimentos mais ingénuos e o alvo puro da sua incerteza. Dentro deles arde o desejo, pulsa o silêncio, suspendem-se os nomes, misturam-se os caminhos, a água desliza por dentro das sombras, a nudez adquire um aroma próprio, a luz fica mais redonda, a terra enlaça todos os prodígios, a alegria passa a ser uma fábula real. Os jogos adquirem som. Dentro do silêncio fazem eco as palavras interiores. Os olhares geram a sua própria ausência e choram e adquirem a forma de céus oblíquos. As metáforas inventam as figuras, a intensidade do nosso desejo, o sopro subtil da violência branca dos espaços, as sílabas que compõem o firmamento, as árvores de onde brotam os poemas mais cintilantes, a onda expansiva da criação, o reconhecimento e a orientação definitiva dos ventos, os vocábulos que pousam na erva logo pela manhã misturados com o orvalho. Deus criou a origem da nossa própria origem e depois perdeu-nos. A nossa memória vai-se apagando e transforma-se numa longa incoerência. Acolhemos as sombras que mais tarde nos hão de acolher. Vivemos no equilíbrio das evidências mais serenas, na perfeição monótona dos céus. Aprendemos a escrever com o fogo e com a água. As nossas bocas descobriram o sabor perfeito dos frutos vermelhos, a expansão da sua blandícia. Agora as distâncias são mais longas, as palavras possuem outra memória, a terra é mais incoerente. Os excessos e os impulsos são como feridas. As palavras aprenderam a sua substância mais noturna, o seu significado mais secreto, a sua densidade mais concisa, o seu eco mais melancólico e mais lúcido. As palavras começam a vibrar de uma outra forma. Falam no vazio. Animam-se no silêncio. O seu rumor cria uma nova distância e um novo caminho. As palavras iluminam os campos abandonados e depois fundem-se.

25
Jul16

Como se escreve um haiku

João Madureira

 

Tenho uma vida tão ocupada, mas gosto tanto de poesia, que a leio em voz alta enfiado no carro enquanto as escovas cilíndricas da lavagem automática fazem o seu serviço. Leio Herberto Helder, Al Berto, António Ramos Rosa, Fernando Echevarría, Fernando Pessoa, etc., tendo como música de fundo os sons mecânicos da estrutura metálica que vai e vem fazendo chuva e depois insiste novamente soprando forte ventania na chapa metálica do meu bólide. Pode não parecer logo à primeira vista, mas um carro a brilhar também tem a sua poesia.

 

Mas não é de lavagens automáticas que vos quero falar hoje. A bem dizer, hoje não sei bem do que vos quero falar. E seguramente também não é do meu carro. Podia falar-vos de política, mas não tenho vontade. O que por aí abunda mais são comentaristas políticos, chorões e aldrabões. As televisões estão cheias deles. Há muito quem comente e pouco quem faça. E nas lavagens automáticas também se comenta muita coisa, mas faz-se pouco. São as máquinas quem faz o trabalho árduo. E essas possuem a rara virtude de nada comentar. Limitam-se a fazer o seu serviço com qualidade. Nas estações de serviço comenta-se o futebol, o preço da gasolina e o tempo. Podemos mesmo dizer que Portugal é um país de comentaristas e pessoas que lavam os seus carros nas lavagens automáticas.

 

As pessoas que vão às estações de serviço gostam muito de comer bolos e beber café. Gostam especialmente de natas, mas também se deleitam com queijadas, croissants, madalenas ou bolas de berlim. As pessoas quando comem, sobretudo bolos, ou bolachas, ou torradas sem manteiga, também têm muita poesia. Especialmente as que comem muito e não engordam. Essas são pessoas afortunadas. Por isso podem ler poesia à vontade pois não lhes provoca efeitos secundários. Não sei se sabem, mas a poesia provoca muitos efeitos secundários. Sobretudo a boa. A outra dá ressaca ou provoca azia.

 

Quando vou a uma lavagem automática, por vezes ponho a música alto para experimentar o som da aparelhagem do meu bólide. E ela tem um som que inebria. Eu comprei o meu bólide, que é um carro sport cheio de genica, por causa, sobretudo, da aparelhagem. Aquela aparelhagem tem muita poesia, é a modos que um poema do Al Berto repleto de vitalidade e sublimação. Depois também gosto de contemplar as gotas de água a deslizar pelo vidro traseiro do meu bólide. Muitas vezes pego na minha Nikon de bolso e fotografo o vidro pejado de linhas sinuosas desenhadas pelas gotas de água sopradas pela maquineta.

 

A minha Nikon de bolso também tem muita poesia. Comparo-a aos poemas haiku. E aqui vos deixo um de minha autoria: No carro sujo / a água / escreve. E é disto que hoje vos vou falar, da poesia haiku e da nobre arte de a escrever.

 

À primeira vista o poema de apenas três versos parece pequeno. E é pequeno. Todos os poemas haiku são pequenos. Têm todos apenas três versos. Mas isso não quer dizer que não deem muito trabalho a escrever. A poesia é um trabalho árduo. O seu resultado pode parecer singelo, mas não é. Chamo no entanto a vossa atenção para o facto de que o que a seguir se dá conta pode ser o resultado (e foi) de muito mais trabalho do que aquilo que parece. Posso dizer-vos, sem comprometer a minha discrição, que fiz dezasseis cortes, dois acrescentos e cinco revisões.

 

Agora, se estão dispostos à explicação, façam o favor de me seguir. Para escrever o meu haiku comecei por: O meu carro preto e sujo / quando está na lavagem automática a apanhar com a água / fica como se tivesse sido escrito. Convenhamos que assim não fica lá grande coisa. É muito extenso. Há palavras a mais em todos os versos. Então temos de o trabalhar.

 

Desfazemo-nos logo no primeiro verso do pronome possessivo e do primeiro adjetivo, pois os dados relativos ao proprietário da viatura e à sua cor (não a cor da proprietário, bien sûr, mas sim a do bólide) não interessam ao leitor, nem importam à qualidade do poema, nem aproveitam à excelência da linguagem poética, por isso vão fora. O primeiro verso fica então: O carro sujo

 

No segundo verso decido-me por um corte radical (ou melhor será dizer, uma barrela) e fica apenas o nome final que é o elemento fundamental. Então ficamos apenas, e só, com o artigo definido e o nome: a água… Mais um pouco e era harakiri (腹切り) puro, ou Seppuku (切腹). Mas a arte está em saber o que cortar e quando parar.

 

Relativamente ao terceiro verso decido-me mesmo pelo Seppuku (切腹), ou harakiri (腹切り), por isso vai todo à vida e substituo-o pela forma verbal escreve. Sendo assim temos: O carro sujo / a água / escreve.

 

Ficando deste modo, o artigo definido “o” do primeiro verso tem de ser combinado com a preposição “em” para dar lugar à preposição mais artigo “no”.

 

Sendo assim, a versão final fica desta forma: No carro sujo / a água / escreve. 

 

Podem os amigos leitores comentar que o único adjectivo também podia ir à vida. E até podia, sim senhor. Mas para a água escrever algo que se veja, o carro, na minha perspectiva, tem de estar sujo. E essa foi a razão por que deixei na terceira posição o adjetivo a adjetivar o que tinha de ser devidamente adjetivado.

 

E por hoje é tudo. 

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