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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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01
Set16

Poema Infinito (318): crescimento, redenção e desaparecimento

João Madureira

 

 

Edifico-te a voz, o corpo e o pensamento sílaba a sílaba, como se a primavera entrasse numa árvore pelos ramos e não pela raiz. Depois os pássaros cantarão por breve tempo dentro de ti e irão povoar novas solidões. O teu silêncio é branco e nele deixo impresso o rosto do meu desejo. Cruzamos as esquinas para preencher os espaços enquanto a tarde de domingo consente as frases do abandono. Abrem-se as ruas. Os sítios amados ficam demasiado precisos. O tempo veste-se com as linhas sinuosas do voo dos pássaros. Habitamos a ilha onde Deus guardou o seu silêncio. Os ventos agitam as estações, os rios correm fora das margens. Num pequeno reduto, as pegadas mais primitivas do divino desvanecem-se. A grande humildade dos homens transforma-se na pobre grandeza da humanidade. As palavras mais sinceras correm o risco de se desvanecerem no mar do tempo. Os amigos abandonam o cais e edificam uma nova babel do remorso. Somos todos caminhantes em busca de um lugar de peregrinação. Temos saudades da curva dos dias. Todos os poetas fitam a morte depois de sorrirem. Não acreditam em Deus mas sim na teoria geral da sua presença. Gostam de olhar sem serem olhados. Ensaiam os gestos do dia-a-dia, seguem as marcas que outros deixaram, sorriem quando as manhãs lhes parecem inocentes, complicam a tarde para não repetirem a noite. Por vezes, os sábados parecem não ter fim. Os meus passos caminham em direção à tua ausência. Nos campos, as searas amadurecem, os pombos arrulham, as cerejeiras florescem. A tua linguagem alcançou o idioma das giestas. Todos estes caminhos vão dar à infância. Se repararmos bem ainda conseguimos identificar a marca indelével dos teus pés. Não me lembro da tua partida, mas não consigo esquecer-me da tua ausência. Cada vez há menos lugar para nós na primavera. No paul dos malmequeres, os grilos repetem as noites. O outono já traz no bico o seu novo álibi. O céu ainda é o mesmo da minha infância. As estrelas ainda possuem o mesmo peso, as histórias ainda se escrevem percorrendo as mesmas ruas e os autocarros continuam a transportar a mesma lonjura e o mesmo pedaço de tempo. Defendo-me disso tudo, recolhendo-me no teu olhar. Os mistérios esgotaram os seus melhores enigmas, alguém deixou distraidamente abertas as gavetas que os guardavam. As linhas dividem agora a beleza do teu rosto. O teu olhar é mais exposto. As sombras são mais domésticas e os segredos mais ínfimos. Há sempre novos olhos abertos nas paredes do tempo. O mar dá volta à terra. Sobre a superfície do mar, Deus expande o seu olhar. Por isso a sua água é salgada. Crescemos dentro de casa à medida que a aldeia ia morrendo. Todos os dias se abriam as janelas. Todos os dias se fechavam. A terra invadiu as ruas. A terra invadiu as casas. Os animais agora são uma outra coisa. Tudo aquilo que não nos matou, redimiu-nos. A noite já não nos adormece, desperta-nos. As manhãs varrem as memórias. Os pássaros estão mais profundos. A luz antecede os anjos. As palavras dos anjos mordem o tempo. Deus morde os anjos. Do Livro subsistem as metáforas. As parábolas ficam mais distantes. Os diálogos de Deus estão repletos de silêncios. Os olhos dos filhos procuram as mães. Perto do fim, os gestos são mais decididos na sua inutilidade. Buracos de luz iluminam os evangelhos. Os camponeses já não semeiam o pão das palavras. O caminho da partida é o mesmo do regresso. Enchemo-nos de ausência. Cortaram definitivamente os choupos do meu caminho de infância. A solidão transformou-se numa epígrafe.

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