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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Mar17

Poema Infinito (348): A dupla porta dos sonhos

João Madureira

 

 

 

Cantam os deuses, os homens e as suas mães. As deusas da boa ventura cintilam como estrelas no céu. O meu sono profundo é um mar de tranquilidade. As mães entram nos sonhos e dissipam os seus cuidados, repousam as suas canseiras e fadigas e conduzem os animais alados até à estrela mais brilhante da noite. E dançam. E expulsam os fantasmas. Nasce dentro delas a claridade do céu, os olhares mais vivos, as auroras mais favoráveis. O seu bom augúrio combina as estações e os caminhos que têm a forma de círculos infinitos. A beleza é piedosa e os inimigos são ímpios. O senhor do mundo toca flauta, move as chamas circulares, traz a luz e as cores mais variadas. Os pais vestem-se de tempo e fecundam o universo. Estabelecem a ordem, respeitam os juramentos, honram os heróis mais ilustres, prescrevem a lei e incendeiam as divindades subterrâneas. Os pais honram os seus pais e homenageiam os amigos mais virtuosos. Bebem, comem e excitam-se como animais incomodados. Acostumam os filhos a uma vida limpa e simples. E examinam três vezes as ações do dia. Escolhem os seus males livremente, desprezam o bem que lhes está próximo. A sorte perturba-os. Elegem a discórdia como sua companheira natural e ocultam-na dentro de si como se fosse um bem. Falam de purificação e abstêm-se dos alimentos que a perturbam. Aprendem a libertar as almas dos corpos. O vento lavra-lhes as terras. Dentro das arcas guardam as lágrimas mais salgadas, as angústias mais densas, as trevas mais azuis, as ondas, o murmúrio do tempo, os mantos púrpura onde as suas mulheres repousam o rosto quando parem, as frases mais terríveis, as palavras mais atentas, a imensa exigência das mudanças, as invocações mais justas e o verbo perdoar debruado com fragmentos do apocalipse. A sua sorte é gloriosa, o seu destino honroso, o seu olhar agitado. A memória ferve em lamentações. O tempo ganhou bolor e transformou-se em epitáfio. A glória perdeu o seu valor. Os pais deixaram de ser justiceiros depois de matarem o tirano e esconderam as espadas debaixo dos ramos de mirtos. Os seus belos rapazes aprenderam a tocar liras de marfim e aprenderam a levar as moças aos bailes. Coroaram-se de flores e cantaram a alegria da sensatez. O vento sul levou as nuvens para longe. Alguém lhes disse que os deuses também nasceram e se vestem como eles, que possuem corpo e voz e desejos. E eles acreditaram. Os sábios atravessaram as cidades montados em cavalos prudentes. As filhas do sol indicaram-lhe o trilho da redenção. Abriram-lhes os caminhos da noite e do dia, ergueram uma estátua em honra da justiça implacável e abriram-lhes as portas dos palácios. As donzelas transformaram-se em vocábulos doces. Então a verdade ficou redonda e as opiniões dos homens deixaram de merecer verdadeiro crédito. Enquanto dormiam, nuvens sombrias esconderam as estrelas. Pelas ruelas deslizaram os seus inimigos, alguns deles feridos pela má sorte. A mortalidade cresceu num instante. Uma luz divina cegou-os com o seu clarão. O orgulho trouxe-lhes de novo a mortalidade, concedendo-lhes a glória efémera do envelhecimento. Os deuses enviaram-lhes desgraças insuportáveis escondidas na sua própria sombra. Aprenderam então a distinguir tudo aquilo que é agradável do que é penoso. As suas almas deixaram de aspirar à vida eterna e começaram a esgotar todas as possibilidades. Também os sonhos possuem duas portas.

27
Mar17

335 - Pérolas e diamantes: Só os burros…

João Madureira

 

 

Confesso que as entrevistas já me começam a aborrecer um bocadinho. Algumas são tão enfadonhas que dão sono logo na primeira resposta. Outras prolongam o enfado e o sofrimento até à segunda pergunta. Existem porém outras que se podem ler até ao fim. Mesmo que, por vezes, nos provoquem um abrir de boca lá pelo meio, que nós disfarçamos para podermos continuar a lê-la sem problemas de consciência ou de pudor.

 

Foi o caso da entrevista de António Barreto ao Sol. A mim avivou-me a memória, o que desde já lhe agradeço. De facto, a nossa entrada no século XXI tem sido um bocado dura. Sobre o futuro, o tempo o dirá. Mas o século passado foi um horror. E dos grandes. Foi o pior século de todos, mesmo parecendo o contrário.

 

Do ponto de vista das realizações positivas podemos lembrar a paz e a riqueza, a penicilina, a aspirina, a esferográfica, a televisão, os computadores e os telemóveis. Mas o século XX ficará na História como o século onde se desenrolaram as piores guerras da Humanidade, onde houve o maior número de mortos e torturas da Humanidade. Execuções sumárias, campos de concentração, prisões em massa, intolerâncias inimagináveis, comunismo, fascismo e nazismo.

 

Pelo menos numa coisa Mário Soares teve razão: o comunismo é o grande embuste da História.

 

Mas deixemos falar António Barreto: de tudo aquilo que o comunismo prometeu, nada realizou. “Nem o internacionalismo, nem a paz, nem a igualdade, nem o progresso científico e tecnológico, nem a democracia. Tudo isso, o comunismo destruiu. E o comunismo tem no século XX tantas responsabilidades ou mais que o nazismo… o comunismo foi uma das grandes chagas do século XX.”

 

Para não nos ficarmos só pelos pareceres vagos das palavras, passemos aos números. Na União Soviética, o comunismo foi responsável por cerca de 45 milhões de mortos. Na China o número ficou-se pelos 35 milhões. Já para não falar do vergonhoso tratado feito entre a União Soviética e a Alemanha nazi que deu de barato dois anos para Hitler invadir a Europa e incendiar o mundo.

 

Como não podia deixar de ser, os entrevistadores conduziram o entrevistado para os caminhos de confronto com o seu antigo partido. O PS acha que António Barreto é agora um bocado de direita. Ele responde que os socialistas “terão feito mais arranjinhos com a direita” do que ele. “Com a direita política, com a direita económica, com a direita financeira, com a direita cultural…”

 

E dá exemplos: tudo o que aconteceu na economia e na banca. “Houve uma grande promiscuidade entre os interesses económicos e políticos de alguma direita e de alguma esquerda do PS.”

 

Daí nasceu a “peste negra que é o BES e a família Espírito Santo”. Que coincidiu com uma “espécie de praga, a praga Sócrates. Faz lembrar uma praga bíblica”.

 

Ele há cada coincidência. É como a crença na existência das bruxas.

 

“Tudo o que correu mal em Portugal acaba sempre por pôr em realce a ligação entre o BES e o PS de Sócrates.”

 

António Barreto interroga-se, como nós nos interrogamos, de como é possível que exista um buraco de seis mil milhões na CGD, de quatro ou cinco mil milhões no BES, de três ou quatro mil milhões no BPN e ninguém saiba de nada. “Não há culpados nisto tudo? Não há ladrões?”

 

De facto, “a democracia portuguesa está penhorada e cativa por causa da economia e do sistema financeiro”.

 

Se dos processos do BES e de Sócrates, e da CGD já agora, nada resultar de substantivo, haverá “uma espécie de afundamento definitivo da Justiça portuguesa, talvez da democracia portuguesa”. 

 

Sinto que por vezes há necessidade de sermos conservadores porque há coisas do passado que é importante guardar: certos afetos familiares, alguns valores identitários, carinho pela História e por algumas tradições. Rejeitando, no entanto, as velharias bafientas e a autoridade sem sentido, nem objetivo. Mas também existe a necessidade de ser progressista, porque o futuro é uma coisa que devemos construir em comum e em liberdade.

 

Além, disso, e como dizia Mário Soares: Só os burros é que não mudam de opinião.

23
Mar17

Poema Infinito (347): A geometria da noite

João Madureira

 

 

Procuro a simetria secreta que existe na raiz da terra, os novos labirintos, a alquimia dos seres incómodos, a velocidade das galerias que abrem os sonhos, que eretam os mamilos e que tornam dóceis as vaginas. O inverno come a carne dos animais mais tenros e bate à porta do tempo. O tempo é agora um ano bissexto com idade para tudo. Dança o teu cabelo, dançam as nuvens, dança a preguiça. Os espelhos esperam pelos rostos e pelas memórias das belas cortesãs. A paciência junta os seus cordeiros. Os lobos passeiam pelas montanhas o seu deus devorador. A memória da infância possui os seus dias trágicos: o vento agreste tombando os pinheiros, as nuvens insufladas de loucura, Deus apontando o dedo mindinho na nossa direção. Todo o quadro rural encerra um mistério litográfico que pretende traduzir a voz do Criador quando a ergueu e abençoou a natureza. Depois pensou nos animais. E pensou nos livros e com as suas palavras criou Adão e Eva e toda a restante família. Seguidamente apareceram os pastores que guardavam o rebanho de Deus. As matilhas humanas corriam no inverno para apanharem o tempo. O gelo era como um punhal. Os corpos aprenderam a mentir o seu desejo. Deus transformou então a timidez em crueldade. As crianças aprenderam a rir como se fossem desertos. As mães aprenderam a chorar. Começaram a trocar os números e as noites, a esconder os anéis, a multiplicar os dedos. Os homens aprenderam a gostar do sabor amargo da aguardente. Ambos assimilaram a necessidade de se persignarem antes de baterem às portas. Aprenderam a praguejar, o ofício dos recados, o lindíssimo timbre do latim, o orgasmo lento e a ejaculação precoce. Dentro das casas assumiram os seus desígnios, as palavras ínvias e os desejos forçados. Aprenderam a solidão, a outra face da vida, a necessidade das colheitas, do frio, da pobreza, do sofrimento e o santíssimo sacramento da eucaristia. Pagaram a Deus com orações e ao padre com algum dinheiro, couve lombarda, feijão branco, batata nova e fumeiro. Agora os burros voltaram a ser selvagens, os tratores dispensaram-nos. Os campos parecem viúvas abandonadas. Ninguém repara nos domingos frescos nem nos céus carregados de nuvens. Vivem consumidos pela televisão. A vida lírica é uma coisa de velhos cujas memórias se encontram agarradas à enxada que repousa no estábulo. Os netos adquiriram uma voz que os avôs não entendem. As casas berram entre os eucaliptos. Deus decidiu refugiar-se dentro dos poemas históricos, debaixo dos versos mais explicativos, na vã tentativa de ensinar filosofia às crianças. Os bêbados sonâmbulos ainda procuram a chuva, os balcões das tabernas são o seu altar de sacrifício. Os lugares são agora mais brutos. As geadas, os ventos e o nevoeiro apenas aparecem nas fotografias. A noite fecha-se de maneira incoerente e arrasta consigo a metamorfose inútil do dia. Os espíritos não se poupam a silogismos. Os santos assustam-se com as enxertias de silicone em corpos convexos, com o sexo amargurado dos machos, com as fêmeas trágicas, com as capelas esquecidas entre pinhais e vinhas, com a polifonia das guerras e do lucro que elas geram às nações mais prósperas. Nas hortas plantam-se os ruidosos promotores da alegria pré-fabricada. Satélites sinistros rasgam o céu. A volúpia persegue os humanos. A natureza já não está no mesmo lugar.

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