340 - Pérolas e diamantes: A luz do público
Sim, houve tempos em que se passava no adro para ir para a escola; em que as crianças andavam descalças ou de socos, fato de cotim e que traziam no saco de pano um naco de broa e uma sardinha, ou um pedaço de toucinho, que lhe dava para todo o dia; em que uns poucos usavam sapatos e outros não; em que a maioria dos largos eram de terra batida; em que a estratificação social era grande; em que os filhos dos operários e dos outros pobres não iam para o liceu; em que cada estação do ano tinha os seus jogos; em que se jogava ao botão, ao pião, à bilharda, ao espeto; em que se jogava futebol com uma bola de trapos.
Até existiam reacionários e revolucionários, comunistas e fascistas. E havia pintores, como Júlio Pomar, que pintava quadros do almoço dos trolhas, com as suas lancheiras e as mãos cheias de calos.
Agora há nostalgia. E crise. E uma coisa chamada lifestyle, que é uma forma de anestesia social. Houve uns tempos em que se comia nos restaurantes, agora leva-se de novo a lancheira para o emprego, muito dele precário e a recibos verdes. As lancheiras são, contudo, personalizáveis. E estilizadas, querendo sugerir uma alimentação saudável, prenúncio de uma escolha individual.
A crise funciona como uma inversão em termos de estatuto social. Até a esquerda mais radical e utópica surge como “conservadora”, pois passou a reivindicar o inamovível Estado Social. Parece que as classes socias desapareceram. Já ninguém questiona nada. Mesmo o PCP se transformou num partido social-democrata, abandonando a luta de classes para apenas reclamar a reposição de empregos de longa duração e de salários.
Agora os licenciados trabalham em centrais telefónicas e os investigadores de pós-doutoramento mendigam uma bolsa que mal lhes dá para sobreviver.
Os ricos buscam a antiga aura das elites e refugiam-se nos solares espalhados pela província. Apenas o galo de Barcelos ganhou dimensão. A autenticidade portuguesa, à maneira de Joana Vasconcelos, reduz-se a um galináceo com cinco metros de altura. E a virilidade lusa viu-se enfiada num invólucro de croché.
O combate ideológico é apenas aparente, pois onde não existem ideias não pode existir ideologia.
A verdade é que o capitalismo triunfou porque tem a capacidade de tudo integrar. Até a esquerda. Maria do Céu Guerra definiu essa situação: “Pode ser-se de esquerda e ter práticas, processos, que são de direita”.
A televisão acaba por ser o grande uniformizador nacional. As elites, sejam de esquerda ou de direita, veem os mesmos canais e o povo segue-lhes as pisadas, pois, sendo de direita ou de esquerda, partilha os mesmos hábitos, gostos e práticas.
As elites leem o livro Mindfulness. Atencão Plena, enquanto meditam com a ajuda dos dois CD incluídos no pack. Já o povo, na sua versão masculina, lê A Bola, e na versão feminina, aprende as frases mais relevantes d’A Terapia do Tricot para citar a caminho da missa de domingo.
A História aprende-se agora nos inúmeros romances históricos nacionais e estrangeiros que enchem os escaparates das livrarias. Muitos deles apenas se preocupam com a vida amorosa e sexual de figuras famosas do passado, enfatizando as façanhas lascivas de reis e rainhas, príncipes e princesas, e os emblemáticos cavaleiros. Realçamos dois: Reis que amaram como Rainhas e Os Amores Proibidos de Suas Majestades.
Em 2014, segundo um artigo de Alexandra Campos, no Público, os Portugueses consumiram 91 496 345 de doses de alprazolam e 65 851 064 de lorazepam. Entre 2010 e 2014 aumentou substancialmente o consumo de antidepressivos, ultrapassando mesmo o de tranquilizantes.
Segundo um relatório da DGS, de 2015, as crianças portuguesas até aos 14 anos consomem mais de 5 milhões de doses por ano de metilfenidato, um psicofármaco usado para tratar a hiperatividade e o défice de atenção.
As cidades são, afinal, a nossa prisão. A paisagem dominante é a dos shopping centers, onde a boémia é disciplinada e obedece a horários e obrigações laborais. Na província, a gente ressente-se do abandono e vai para casa jantar tristonha e depois submete-se disciplinadamente à lei genérica da idiotice televisiva.
Paradigmático é o livro dedicado a João Manuel Serra, o Senhor do Adeus, que relata as noites passadas pela criatura a acenar aos automóveis de Lisboa, na Zona do Saldanha.
Vivemos num sistema de moda e publicidade que Heidegger definiu de forma categórica: “A luz do público obscurece tudo”.