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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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04
Mai17

Poema Infinito (353): O esplendor da lucidez

João Madureira

 

 

A rainha das fadas perdeu-se no meio da metafísica indistinta. Agora as suas emoções mais sinceras são uma espécie de acessório. O tempo é uma impressão feita de realidades mistas. O tempo é como um sonho longínquo. O tempo é doloroso. O sol entra pela última vez através da janela da casa abandonada. Acorda a penumbra. A criança que por lá dorme ainda acredita que pode compreender o mundo. No seu sonho o palhaço ri do bobo e por isso tinem as campainhas na sua cabeça. A raiva faz-se dos cansaços. Vamos reconstruir a imaginação. Os deuses permitem que o que não existe de súbito se ilumine. Nos ilumine. A impressão das ruas, a perturbação das encruzilhadas, os caminhos abstratos, a imaginação concreta, os riscos irregulares que atravessam as montanhas, as ilustrações que compõem a nossa vida quotidiana, tudo aquilo que a alma sonha, os enigmas visíveis do tempo, os símbolos esotéricos. As estrelas começam a pestanejar por causa do frio. Vemo-las através da janela da infância, sentados nas cadeiras da sala. E ali estão os castelos e os cavaleiros, as paisagens do norte, a neve, as névoas, os livros coloridos, a monotonia, a força de tudo aquilo que é diferente. A lucidez. Vários bocados de sonhos. A força monótona da existência. E as cores. E as velhas angústias. E as lágrimas verdadeiras guardadas em antigas vasilhas. Dormimos sossegados sob o nosso teto provinciano. A casa defronte parece feliz. Nas sacadas brincam crianças entre os vasos de flores. As suas vozes são eternas. Os vários andares estão em silêncio. O som de um portão fecha-se sobre nós. Vemo-nos ao espelho e reparamos que a criança que trazemos dentro não mudou em nada. Por detrás da máscara, a personalidade é uma linha. Queremos ir devagar. Mas queremos ir. Queremos sentir os passos e soletrar os verbos que constroem a realidade. Debruçamo-nos sobre as invocações. A água torna-se resplandecente. A alma transforma-se num desejo. As flores ficam finalmente abstratas. Assim gosto delas. Balouçamos deslumbrados pela sensação das ondas. A minha juventude é perpétua. Os campos da minha infância fazem-me compreender a sua essência, as flamulas coloridas, a realidade dos abismos, os sorrisos involuntários. As mulheres continuam a chorar baixinho, cheias de individualidade, como anjos isolados, como esculturas de catedrais com os braços estendidos para o céu. As suas almas fundem-se durante a noite. Emprestam a sua humanidade aos homens e às pedras. Pela manhã beijam as crianças, transportam o universo ao colo, movimentam as suas sensações, enternecem-nos com o seu sossego, com os seus sorrisos de lírio, com a sua essência de amor. Conseguem transformar a dor em algo de inútil. Consolam-se de presente. Sentem a tristeza mesmo de olhos abertos. Conseguem marchar vertiginosamente em torno de si próprias. Toda a realidade é excessiva. A vida corre em todas as direções. A monotonia transforma o tempo numa fatalidade. O problema da infância é não ter futuro. Agora enfiamo-nos na poltrona da melancolia, vestidos como liberais deprimidos, defendendo várias opiniões sociais. Convertemos as convicções em marchas fúnebres. Como Marinetti, acabaremos académicos, festejando o crepúsculo e os focos elétricos da dinâmica. Como os bons marinheiros portugueses, transformaremos as estrelas em abismos e a lua em mostrengo. Esse é o esplendor da nossa lucidez.

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