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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Jun17

Poema Infinito (361): O sagrado coração da desilusão

João Madureira

 

 

Os anjos entortam-se ao pé da nogueira e depois morrem junto à sombra do tempo que os abraça. Os homens espiam-nos atrás das mulheres. Os seus olhos já não perguntam nada. Até o demónio fica comovido. As tardes são agora azuis e insinuam os desejos. A noite fica triste sem querer. A consolação é como um amor feito de versos. Louvar a Deus alivia o queixume e o desprezo. A alegria e a tristeza padecem da mesma moleza, andam na rua de olhos baixos. Sofrem da mesma sensibilidade. Os romeiros continuam a subir a ladeira, a picar-se nos espinhos, a contornar as pedras, a suar as suas culpas, a carregar os seus pecados, a ouvir os sinos tocar a sua pureza, a trazerem flores, prendas e rezas. A procissão vem a seguir e o vento que persegue as romeiras brinca com as suas coxas. Os homens cantam sem se cansar. Jesus expira queixoso cravado no seu lenho. É dia de festa. Os olhos dos romeiros pedem, as bocas dos romeiros suplicam, as mãos dos romeiros imploram. Jesus, exangue, desfalece sonhando com outro tipo de humanidade. Neste momento, o seu pai abandona-o sempre. Depois os poetas embebedam-se tentando deixar de compreender a divindade. O dia já nasce atrás dos quintais. Ninguém sabe se o mundo vai acabar ou não. As previdências dormem tristíssimas penduradas nos andores. É difícil encaixar tanta santidade em tanta solidão. As virtudes são agora mais científicas, as diferentes culturas são melhor assimiladas, as elites são muito mais subvencionadas. Mesmo as paixões são mais sublimes. Já não se cometem revoluções, não se promovem compromissos. A razão já não exige sofrimento. Precisamos é de esquecer os carinhos, a desilusão do amor, o gozo, as cartas explicativas, toda a providência humana, toda a nostalgia divina, os remorsos, o inferno, o sagrado coração da desilusão, o perdão, a sombra doce do pecado, o sorriso maduro das mulheres desiludidas, as carícias disfarçadas de carícias, a inutilidade dos protestos, a utilidade dos protestos, os risos provocantes, as moças casadoiras, as análises proustianas, a sombra rodada das moças penetradas, as tardes de domingo, os desejos que já morreram e os sinos que tocam a rebate fora do tempo. Com duas mãos apenas recolhe-se todo o sentimento do mundo, acaricia-se o corpo transigente, pinta-se a confluência do tempo. É necessário dispersar a fronteira da guerra, recolher o fogo e o alimento, disfarçar as memórias, encontrar o amanhecer, levantar o céu com a mão esquerda e suportar o mundo com a direita. O tempo começa a depurar-se. Antigamente as mulheres ficavam sozinhas e não se assustavam com quem lhes batia à porta. Apagavam as luzes. Dentro da escuridão resplandeciam os seus luzeiros. Tinham a certeza do sofrimento. Os seus olhos não choravam. Sustentavam o mundo com as suas mãos de criança. A vida é uma ordem. Afastamo-nos do presente para encontrar a realidade. As histórias parecem paisagens vistas das janelas, parecem cartas suicidas. No álbum das fotografias os mortos amontoam-se. Avô morto, avó morta, tios mortos, primos mortos, amigos mortos, pai morto, mãe morta. Mão morta, mão morta, vai bater aquela porta. O pó começa a amontoar-se nos olhos que foram cintilantes. Fora do álbum muitos outros mortos se amontoam na minha memória: o comboio, os pássaros, os cães, os gatos, as galinhas, os porcos, os perus de Natal, as pavieiras, a esperança, a paciência, a aldeia, os bois, o burro, os lírios, os sorrisos, os beijos, a varanda, os crepúsculos, os lobos, os pobres, todos os rostos imóveis… todos os rostos imóveis… todos os rostos imóveis…

26
Jun17

348 - Pérolas e diamantes: O efeito boomerang

João Madureira

 

 

Há pessoas que convertem em literatura tudo o que tocam. A realidade e a ficção, para eles, não têm fronteira. Conseguem montar espetáculo em qualquer lugar onde estejam, preservando uma assombrosa expressividade coloquial.

 

É tudo gente do melhor. Há uma expressão vulgar que diz que o talento de uma pessoa se mede pelo número de medíocres que o rodeiam e que o tentam lixar. Aos meus inimigos, desejo-lhes saúde. E eles quem são? Pois…

 

Isto é uma coisa do senso comum, da sageza das relações.

 

Tenho mais medo dos meus amigos. Porque dos inimigos, daqueles que conheço, defendo-me bem. Tenho já longa prática.

 

Eu até gosto dos meus inimigos. Já os elogios, suspeito mais deles do que da censura, mesmo impertinente, injustificada, invejosa.

 

Atenção, eu não quero ser original, nem engraçadinho. Para esse peditório já dei. E muito. Agora uso a minha liberdade para urinar junto aos muros, quando não há casa de banho por perto. É da idade. Da idade e da resiliência.

 

Dizem que o país mudou. Mas é engano. O que mudou foi a estupidez. Por vezes parece que há golpes de mágica e tudo muda, mas essa perspetiva não é realista. As aparências enganam.

 

Tudo tem significado. Tudo.

 

Deixem que vos conte uma anedota. Um homem regressa a casa, noite cerrada, completamente bêbado, e pelo caminho encontra uma freira com o hábito e o chapéu. Com as forças que lhe restam, atira-se a ela e dá-lhe uma sova das valentes. Depois da sova, levanta-a do chão e diz-lhe: “Mas, Batman, julgava-te mais forte!”

 

A grande lição de Semiologia (ciência geral dos signos que estuda os fenómenos de significação) de Roland Barthes consiste no apontar do dedo a qualquer acontecimento do universo e advertir que ele significa alguma coisa. Ele repetia sempre que o semiólogo, quando passeia pelas ruas, procura significação onde os outros apenas veem acontecimentos. Ensinou-nos que se diz sempre alguma coisa com a maneira de vestir, de pegar num copo, na maneira de andar, sorrir e com as insinuações disfarçadas de brincadeiras…

 

Por isso me dedico à literatura, porque não se é obrigado a fixar um sentido, mas joga-se com esse sentido.

 

Fascina-me o Japão porque é um mundo em que não conheço nenhum código. Santo Agostinho dizia que o texto da Bíblia era uma floresta infinita, por isso podia-se sempre submetê-lo a uma regra de falsificação.

 

As Mitologias de Barthes são brilhantes análises semiológicas, porque a vida está sujeita a um bombardeamento contínuo de mensagens que nem sempre manifestam uma intencionalidade direta, mas que tendem, a maior parte das vezes, por causa da sua finalidade ideológica, em apresentar-se sob uma aparente “naturalidade” do real.

 

Gramsci tem uma frase premonitória: “A crise consiste precisamente no facto de que o antigo morre e o novo não pode nascer.”

 

Laurent Binet (A Sétima Função da Linguagem), através da sua personagem Bifo, refere que “se a classe dominante perdeu o consentimento, ou seja, se ela já não é dirigente, mas unicamente dominante e unicamente detentora de uma força de coerção, isso significa que as grandes massas se desligaram das ideologias tradicionais, que elas já não acreditam naquilo em que acreditavam antes…”

 

Todos sabemos que o conhecimento de um mecanismo de manipulação não nos defende forçosamente dele. Basta atentar na publicidade, na comunicação. A maior parte das pessoas sabe como funcionam, que recursos utilizam, mas, mesmo assim, é influenciada por elas.

 

Aviso à navegação. Eu não abandono os conceitos e os princípios como se abandona um cão.

 

As pessoas querem arrebanhar tudo, tragar tudo, manipular tudo. Ver, decifrar, aprender, não os influencia. Vivem debaixo do anonimato. Atiram a pedra e escondem a mão.

Podem manipular a maledicência, propagar a intriga e estender a mentira, mas de uma coisa não são capazes: alterar as leis da física.

 

Lembro: Olhem que o efeito boomerang existe.

22
Jun17

Poema Infinito (360): A fronteira de Deus

João Madureira

 

 

Até Deus estremece quando repara no teu olhar, parece um cisne assustado, de tão belo e confuso. Depois esconde-se dentro da sua ave e voa com astúcia até ao céu. Erguem-se então as novas palavras dos profetas e os poetas têm visões gigantes que se dilatam pelo íntimo das pessoas. As grandes mãos do tempo apontam na direção da ira. Pesa-nos a consolação, a espera e os bons conselhos. Enche-se a imaginação de longínquas estrelas e do seu brilho cauteloso. Adão, cheio de espanto, sobe as íngremes escadarias das catedrais. Chora repleto de apoteose. Cresceu de repente, no meio das assombrações. Como lavrador, começou a trabalhar no jardim do Éden sem o saber. Deus é difícil de persuadir. Ameaça-o de novo com a morte, mas ele teima em partir. Quer fazer-se homem. Eva tomou posse da sua maçã e sente-se culpada da sua inocência. Depois sorri. Por fim, chora. Cresceu e pariu, cheia de dor e de amor. Saiu de dentro da roda da eternidade para vencer na vida. Era jovem como a primavera. Quando achou o seu homem resoluto, foi com ele à procura da morte. Conheceram então Deus. Irromperam cegos na cidade, depois deixaram de existir no escuro. Alimentam-se do reflexo das coisas, extasiam-se com os obstáculos, expulsam o tempo do templo de Deus. Fazem perguntas amedrontadas e perdem-se no meio dos pensamentos. O vento mais velho sopra do mar, o verão sussurra, as figueiras rebentam ao luar. A impaciência tornou-se realidade. Deus cruzou as mãos. Lê o seu livro mais longo. O ar cheira a jasmim e a ofensa. O destino de tudo continua indescrito. Até o tempo está destinado ao declínio. O céu espelha-se nos lagos, as flores abrem-se descuidadas. O espaço interior transborda. Fecham-se os dias e os sonhos saem da frente dos espelhos. Os gestos ficam mais cansados e os sorrisos mais lentos. O silêncio bebe as imagens. Deus bebe a crítica. As horas ficam mais tardias. Cada um procura o seu caminho. Os anjos gritam a sua angústia e abalam as tempestades porque têm de recolher os fragmentos do apocalipse. Os mais doirados acreditam que Deus é russo e ortodoxo e os outros sabem que ele é apenas o seu alimento inesgotável. Pretendem somente um pouco de eternidade. A sua circunstância é feita de murmúrios. Tem medo das palavras dos homens, do seu sentido de jogo e de não entenderem qual é a fronteira de Deus. As horas começam a ampliar-se, a ficar mais largas e a preencherem o fundo do tempo. Nenhuma coisa é perfeita antes do nosso olhar. Deus chama os pintores e esboça-lhes os sonhos. Depois mancha tudo de escuro. Os pintores desenham o espaço e o tempo. Os anjos entoam canções tristes. Os pintores retratam então a luz. Depois desfalecem. Deus sorri de agradecimento. Gosta de se distrair com a Criação e de conter o espírito dos artistas. Escreve os séculos com canetas de vento. Avisto então o rosto da minha mãe, as primeiras palavras que não compreendi, a aresta dourada dos sentimentos, o teu e o meu espaço, as primeiras emoções, os símbolos expulsos do paraíso, os monólogos circulares do tempo, as horas abruptas, a presença ilimitada das melodias, o fogo que faz ferver os pecados, o crepúsculo dos deuses, a luz ténue da saudade, a palidez dos anjos, o gigante que devorou Miguel Ângelo, a inacessibilidade de Deus, a beleza e o pavor da última palavra do adeus. Sinto a nossa gravidade a afundar-se. Dá-me a tua mão.

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