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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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15
Jun17

Poema Infinito (359): Chuva de enigmas

João Madureira

 

 

Dá a impressão que os pássaros se beijam apenas uma vez na vida. Por isso ela é tão curta. E rápida. E cheia de música. As sombras não fazem parte do seu amor. O luar intenso da noite tornou as romãs anémicas. A sua doçura é quase misericordiosa. As suas bagas pétreas são dádivas de sangue. Neste jardim crescem agora as flores e os cantos convulsos. Os amantes duvidam das suas próprias mãos. Por vezes, morde-os a chuva. As estrelas enganam-nos. Eles pensam em suicídios lentos, imolam as uvas, fazem o tempo sair da sua linha. Crescem os anjos entre agosto e dezembro, fingem que nasceram através de um código secreto e que escrevem o seu amor com tinta invisível chinesa. As geadas mataram as fadas temporãs e as que resistiram vão ser sacrificadas em agosto. As fadas mais velhas perderam o seu viço e o seu brilho, qualquer abraço as pode matar. Sem elas, janeiro será um mês absurdo onde os verbos mais compridos serão cortados como cabelos. As acácias do jardim foram seguindo a orientação normal do Sol. As fadas alagam-nas com a luz roubada à Lua. Nos canteiros mais centrais foram feitos sulcos em forma de véus e depositadas as sementes e os segredos. A alegria foi disseminada no pouco espaço disponível do quintal. Os sentimentos mais raros foram concentrados junto ao poço. As silhuetas humanas começam a invocar os deuses mais ténues. É do hábito. Depois abandonam a estrada e os seus rostos parecem o de ninguém. Beijam-se como se fossem pequenos deuses e abençoam-se como quem espera morrer em breve.  A sua divindade é invertida. Parecem facas que queimam. Acreditam que podem cair na água do poço e apanhar a lua. Escrevem os lugares e mudam frequentemente de ilusão. As suas memórias são frias. A bela adormecida continua na floresta afogando-se no seu sonho de desejo. Todas as maçãs do quintal nascem agora possuídas pelo elixir da maldade. Os pêssegos perderam o odor. Não houve nenhum tormento, nem vai haver. As curvas dos gestos não são mortais. O tempo ganha novo ânimo. Não sabemos se isso é bom ou mau. A ilusão do salvamento dura apenas alguns minutos. A dor de escrever não para. Os analgésicos já não produzem efeito. Imagino florestas mágicas desenhadas por Paula Rego onde as árvores mais altas e frondosas exibem os corpos de lindos príncipes e princesas e duendes pendurados pelos pés como se fosse dia de matança. Começo a entender as tardes de dezembro, o caráter acidental do musgo e do azevinho e de toda a simbologia do barro transformado em figuras do presépio. É como ler a morte em vida. Começam então os espasmos de sol. O mar revolta-se por causa das horas. Os magos parecem cobras a silvar. Abraço-me ao teu tempo. Quero libertar-me do meu. Os segredos são como espelhos, como folhas de chá, como os olhares que passeiam de forma errada. O tempo passa mais depressa, batendo as suas asas como se fosse um colibri. O menino continua sentado junto da porta envidraçada que dá para a rua. Os seus olhos parecem círios no meio da escuridão. Durante o dia começou a compreender a beleza e a bondade. Começa agora a importar o medo. Os nomes das coisas mudam de lugar. Os sonhos ficam lassos e com enormes lances de escadas. As rosas dormem emanando o seu odor e exibindo os seus espinhos. Debaixo dos seus pés arde o tempo. A tranquilidade arrepia. As memórias escondem-se sempre no nosso passado infantil. O meu riso já não consegue mentir. As infinitas partículas do amor continuam a espalhar-se pelo chão.

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