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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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19
Jun17

347 - Pérolas e diamantes: A escrita e o anzol

João Madureira

 

  

Gonzalo Torrente Ballester escreveu, tentando responder a uma pergunta incómoda, que a génese da obra de arte aproxima-se mais do exemplo do trabalho e da persistência do que na biologia do nascimento humano. A liberdade, o acaso e a vontade conscientes são os fatores reais e decisivos. “Não creio que exista nenhuma obra de arte que não pudesse ter sido de outra maneira e obviamente melhor do que é.”

 

Afinal porque se escreve? Depois de vários projetos mais ou menos falhados, ou de alguns com sucesso, a resposta até poderá ser: para nada.

 

Para vos animar, quero desde já dizer que este “nada” não é uma resposta radical e negativa. Esses tempos já lá vão.

 

À boa maneira de uma ave canora, podia dizer que o intelectual vive enquanto pensa e escreve. Sim, é esse o seu modo de ser e de estar no mundo. “E só nisto já encontra justificação”, como afirmou o escritor galego.

 

Afinal estamos neste mundo “sem termos sido ouvidos nem achados, e, sobretudo, sem que o tenhamos pedido; mas o pior é que os outros também o esquecem e se põem a fazer exigências e a pedir justificações, até do mero existir”.

 

A justificação impõe-se por si própria. E o fado que cada um carrega para percorrer o seu caminho de pensar e escrever apenas a ele diz respeito. Os fins sublimes são mera ficção, parvoíces, tontarias. “Escrevemos porque sim, ou porque gostamos, ou porque não sabemos fazer outra coisa.”

 

Muitos procuram uma finalidade no ato da escrita. Uns proclamam razões e inconveniências. Outros choram baba e ranho em cima daquilo que escrevem. Outros, ainda, arremessam a pedra e escondem a mão. Há feitios para tudo. Muitas vezes escrever resulta num ato gratuito e num esforço inglório. É meio falhanço. E depois?

 

Como justificação relato-vos a história que contaram a Torrente Ballester de um rouxinol que um belo dia descobriu que ninguém lhe ouvia o doce canto e que, desiludido, decidiu ser carpinteiro, como o seu vizinho de árvore. Nesse ofício, obviamente, nem sequer atingiu a mediania.

 

Não é necessário perguntarmo-nos por que escrevemos, pois essa questão encaminha-nos invariavelmente para a falácia das grandes transcendências. Cada um deve fazer aquilo que tem de fazer e não lhe dar muita importância. Devemos revelar mesmo uma certa indiferença perante o ato verificável de que a voz do rouxinol não tem o público que merece. E quando chegar a hora de nos calarmos e emudecermos, aceitá-la de bom grado e em paz. Devemos fazer como aquele toureiro que após cada lide, fosse ela boa, mediana ou má, dizia invariavelmente: “Aí têm.”

 

Além disso, cada leitor de um romance lê, apesar do mesmo texto, um romance diferente, dependendo sempre da sua maneira de ver o mundo, da sua experiência de vida e não da palavra textual.

 

Gonzalo Torrente Ballester avisou-nos: “A palavra dispara setas, e muitas delas perdem-se longe do alvo.”

 

A fórmula é geral. Mesmo o Dom Quixote, que é o primeiro romance ocidental, é a história de um jogo que se escreve jogando.

 

O romancista define-se não por aquilo que é, mas sim por aquilo que escreve.

 

Devemos sempre desconfiar tanto dos mitificadores como dos desmitificadores.

 

O necessário é cada um percorrer o seu caminho pois ele leva-nos, pelo menos, ao seu próprio fim.

 

Eu ainda sou dos que acreditam que, por muito errado que um caminho possa ter sido, alguma coisa acabamos sempre por descobrir. Ninguém o percorre em vão.

 

Afinal são os poetas que tradicionalmente se dirigiam ao povo, com as histórias clássicas consideradas épicas como são o caso da Ilíada, da Canção de Rolando, Mio Cid ou mesmo Os Lusíadas, com palavras ao serviço da sua glorificação, que nos tentaram “fazer engolir sem protesto o anzol do poder”. 

 

Roland Barthes dizia que a escrita “é o lugar do político no sentido lato, ou seja, a escrita é aquilo mediante a qual ele se exprime, mesmo se o escritor não é disso consciente, o que ele é socialmente, a sua cultura, origem, a sua classe social, a sociedade que o rodeia”.

 

Antes de terminar, quero citar Laurent Binet, autor do romance A Sétima Função da Linguagem, que sabe da dificuldade de aproximar o leitor dessa função: “Quando escrevo uma cena ou uma frase, gosto que não haja apenas uma função, só psicológica ou só poética. Essa cena também serve para dar um passo em frente e jogar com os símbolos.”

 

Claro que a linguagem é um código. Mas nunca se esqueçam que toda a descodificação é uma nova codificação.

 

No campo da ficção, Roland Barthes defendeu que a linguagem é a arma mais poderosa do mundo e há quem mate para dominar o seu segredo.

 

A vida não é um romance. Os romances é que podem fazer parte da vida. Da minha fazem, com toda a certeza. E da vossa também, por muito que nos custe a todos acreditar. 

 

 

 

PS – Texto lido na apresentação do romance “O Homem Sem Memória”, de João Madureira, no dia 16/6/2017, em Chaves.

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