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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Ago17

Poema Infinito (369): A mecha do tempo

João Madureira

 

 

Hesito autoritariamente entre as vibrações que o ar faz dentro de mim. Imagino a casa, os cheiros, a inclinação das paredes, o redemoinho da luz, o tempo dos usos e as horas dedicadas à memória. O tempo está reduzido à sua própria sombra. As horas ficam mais leves e saltitam entre emoções. O espírito dos anos lambe a acidez do silêncio e do vazio. Aos poucos reencontro a entrada do tempo, o gosto diáfano das perguntas, o vestígio dos antigos painéis, o cheiro das árvores, a cor do fogo, a pressa da ansiedade e a amável hospitalidade da noite. Os fantasmas começam a enfraquecer, dissipando as sombras, revelando a serenidade. As horas ficam mais abertas e os passos das pessoas ficam mais ligeiros do que os bichos. Lembro-me então do apego à terra, do motivo do seu esquecimento, do vulto engrandecido dos conspiradores. As begónias continuam a crescer junto às janelas e insistem no seu sofrimento. Os pombos continuam a namorar nos telhados e a angústia dos gatos continua a revelar-se em janeiro. Oiço contar as mesmas histórias antigas eivadas de justiça e incoerências. Os sonhos revelam-se como fotografias analógicas e empalidecem. As meninas são como memórias largas, inundadas de enxovais e de namoros, com sexos alinhados e seios rijos. O vento sopra-lhes todos os sustos e todos os cuidados e todas as finuras e todas as utilidades dos seus corpos e, ainda, todo o fervor do seu sangue. Os rapazes aprendem depressa a distinguir com clareza os momentos do dia, o grau conveniente do humor e da prudência, a arte dos jogos e do galanteio, os enredos amorosos, a ronda das manhãs e a adaptação aos intrincados hábitos domésticos. Sentem o silêncio como uma nova forma de perturbação. As manhas da sedução continuam a obedecer a regras severas. A inteligência, nestes casos, é indiferente. Mesmo de forma discreta, as feições dos rostos ganham cintilações obscenas. A raiz da juventude é dissipadora. O futuro move a confiança do destino dos homens, assusta o tempo, transtorna os sonos, dita os laços de família. A chuva miudinha torna os jardins intemporais. Enche-os de verde e de nomes, dita-lhes a transparência, sossega-lhes as noites. A chuva mais grossa bate nas vidraças, amedronta o sono leve das crianças e abafa o pó das folhagens. Os teus dedos ficam cintilantes quando dizes adeus, são como canções inquietas. O destino enrola-se aos nossos corpos e faz-nos sentir culpados. A minha miopia torna as mulheres mais loiras, os ramos das árvores mais difusos, a literatura mais imaterial, o idealismo mais humilhante, o humor mais melancólico, as cabras mais desequilibradas e as vénias mais habilidosas. A alegria nasce em mim como se fosse raiva, destituída de adereços. O tempo não me dá sossego nem me traz pardais. Apenas fio com ele a memória dos meus pais. O tempo é cada vez mais um movimento indistinto, como uma sombra dentro de outra sombra. É como uma divindade cega, como o jogo do desespero. O vazio preenche o espaço da divindade. Os corpos distendem-se. Contemplo-lhes os pormenores, o seu pesado crepúsculo. Depois fecho os olhos. Novamente o tempo reedita a determinação em envelhecer. Nos montes continuam a crescer giestas, carquejas e tojos. Os estábulos estão frios e os caminhos ocultos. O freixo já não indica o atalho para casa. Os terreiros estão definitivamente silenciosos. O único som que se ouve ao redor é o dos nossos passos.

28
Ago17

356 - Pérolas e diamantes: Compaixão pelos buracos da estrada

João Madureira

 

 

 

Contento-me com a ideia de que os amigos que me restam podem não ser os melhores do mundo, mas sei que são os meus melhores amigos no mundo, apesar de por vezes me mentirem para não me apoquentarem. Eles sabem que por vezes me pareço com Maquiavel, mas que, definitivamente, não sou maquiavélico.

 

Rendi-me ao sistema filosófico mais simples: já não quero mudar o mundo, tento somente mudar a vida, começando por mim próprio. Já não alinho em seitas ideológicas. Deixei de ser sectário.

 

Não há seres humanos eleitos, nem perfeitos.

 

Esses ditos que tais contentam-se com as roupas e os privilégios. Conheço-os pelos indícios. São os que dizem sempre que sim. Afirmam-se sempre dispostos a discutir tudo porque nunca discutem nada. Os que os rodeiam tocam-se de ombro e proclamam: Olha que postura!

 

Depois do teatro da propaganda e do quererem acordar quem nunca adormeceu na formatura, deixam de revelar interesse em fazer as coisas e até de se interessarem se as conseguem fazer bem.

 

Apenas se preocupam em deixar a imagem de que são ágeis, oportunos, que estão sempre prontos e, evidentemente, sem discutir, sem pensar, sem criar problemas.

 

Querem fazer de nós papalvos, para que se diga deles que são bons rapazes, dignos de confiança, e outras balelas que se pronunciam por conveniência. É tudo engano.

 

A fé já não basta para aceitar a humanidade. O mundo já não é eterno e muito menos estratificado, onde os bons estão no céu, os regulares ocupam o purgatório, os maus se estorricam no inferno e os inocentes, como eu e o estimado leitor, ou leitora, pois para o caso tanto monta, vagueiam pelo limbo, apesar de termos feito as nossas concessões, pensando que a alma é como um saco transparente cheio de virtudes e boas intenções.

 

Há os que com apetite comem do bom e do mau porque, dessa forma, assim manjam duas vezes. Pois que lhes faça bom proveito à barriguinha e ao peito.

 

Esses lembram-me pérolas falsas, também chamadas “pérolas de lúcio”.

 

Aprendi no livro Sangue Azul Gelado, de Iúri Buida, que se podem fazer das escamas da espécie mais comum do citado peixe (Alburnus lucidis, que abunda nos lagos e rios locais lá da Rússia). Misturam-se diminutos cristais de guanina com uma solução de gelatina, vidro líquido ou celuloide, depois injeta-se a substância conseguida numas bolinhas de vidro manufaturadas em pequenas fabriquetas e o resultado final são uns colares de pérolas baratos para as mulheres do povo.

 

Deles devemos fugir e sussurrar, antes de adormecer, a oração infantil: “Vem-te deitar perto de mim, anjo meu, e tu, Satanás, afasta-te de mim, das janelas, das portas, do meu leito.”

 

É da natureza humana a inclinação para o mal, porque o mal não requer nenhum esforço. O bem sim.

 

Eles transformam-se em atores. Vivem as vidas das criaturas imaginárias, transformam o seu aspeto, falam com vozes alheias. São mentirosos, bruxos ou magos que violam a lei natural das coisas ou, então, convertem-se noutras pessoas, mesmo que por um curto período de tempo.

 

No seu futuro existe cada vez mais passado. Não possuem nem ideais nem ideias, somente o desejo de alcançarem o poder, para, aí chegados, encherem a pança e tratarem de adormecer.

 

Transportam sempre consigo o cinismo, a hipocrisia e a irresponsabilidade. Evitam qualquer tipo de esforço intelectual ou emocional. E isso agrada às massas. A cultura, dizem eles, não tapa os buracos da estrada.

 

Tomaesta Ivánovitch, antes de falecer, confidenciou que a compaixão pelos pobres, humilhados e ofendidos nunca se deveria transformar em sentimentalismo, porque os humilhados e ofendidos não são nada melhores do que os que humilham e ofendem. E acrescentou: “Mas isso não significa que não mereçam compaixão.”

24
Ago17

Poema Infinito (368): A extensa eficiência do quotidiano

João Madureira

 

 

Entro depressa na noite porque está impregnada de quotidiano. Durante o dia, o sol foi eficiente. E extenso. A sua luz proporcionou-nos uma festa e alagou as casas. Encheu cântaros, bacias e alguidares, abrilhantou o calçado, orientou o olhar das crianças, pôs reflexos novos nos vidros das janelas. A faca cortou o pão, o vizinho agregou o conduto, a loucura ficou mais acessível. Ninguém ficou indiferente. O sol veio de longe e foi iluminando os sítios, a pressa da gente dos bairros e as penas das galinhas, dos patos e dos perus. Renasceram-nos os olhos na praça. Todos os regressos foram lembrados e celebrados. O tempo acompanhou o voo dos pássaros. Depois as estrelas morreram no poente e os rostos estalaram enquanto as palavras começaram a planar sobre o manto da inquietação. Foi então quando o teu sorriso desceu dos montes até chegar ao rio. Dizem que é dessa forma que os corações desaguam. Foi em Jerusalém que os homens aceitaram a morte, onde as mulheres começaram a dizer adeus com os lenços, onde os sinos desfolharam o tempo, onde o silêncio do sudário de Cristo tomou o lugar no passado. Também foi lá que a música preencheu as almas e abriu novos espaços. A cruz de Jesus foi sempre pouco funcional, quer para os torturadores, quer para o torturado. A verdade espalhou-se pelos jardins, as mãos dos fiéis ficaram tristes de tanto saudar. Desfraldaram-se colchas, saudaram-se as feridas dos condenados, bebeu-se paixão como se fosse amor. Os donos do mundo olharam para o sofrimento e pensaram que ele serve para purificar os outros. Os seus rostos parecem versos pintados de fresco. A voz do poder justifica a arquitetura incondicional da fé. A chuva, quando vier, cantará nas ruas o desgosto dos homens. Os pecadores confessam-se e agradecem o milagre de estarem vivos. Aprenderam a esperar pelas estações, a conviverem silenciosamente nos dias de jejum, a tornar submissas as mãos das crianças, a esquecerem os sonhos e a condição do arrependimento e também o elogio triste da imortalidade. Pensam renovar a vida desenhando o sinal da cruz, exigindo sacrifícios aos olhares, esperando a obediência, antecipando o tempo das injustiças, tornando a caridade uma profissão, clonando as barbas de Abraão, plantando hortênsias nas manhãs de domingo, desertando da alegria, tornando-se o brilho fugitivo do olhar dos deuses, instalando a sua camilha num recanto do céu. A tarde acompanha a curvatura da terra e propaga a primavera pela órbita das oliveiras. Escolhem-se os pensamentos, acendem-se no regaço das mães os lírios do tempo, saltitam nos olhares os sorrisos da infância. Enchemos as mãos de vento. As ausências são como resina brilhante, cheiram como os cedros, brilham como o destino. Envolvemo-las em palavras. Escutamos o seu silêncio junto com o canto pontiagudo dos pássaros de arribação. O tempo equilibra os mares e os caminhos, pressente a chuva, adivinha os gestos e orienta os pensamentos. Repouso os meus versos na boca do dia e lavarei os pés no primeiro orvalho. As coisas gloriosas guardo-as dentro de ti e transformo as lágrimas em lindas metáforas. O tempo rouba as horas mais domésticas. Os teus lábios arredondam-me de prazer o pénis. Estou à beira do abismo. Cubro-te o corpo de dádivas. Longe de Jerusalém, os corpos voltam à vida. O Senhor sente as folhas que morrem. Erguem-se as estações como se fossem braços. Três gestos decisivos libertam as mãos e desenham no universo os desejos mais antigos.

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