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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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18
Jan16

273 - Pérolas e diamantes: o ardil da cultura

João Madureira

 

 

Quando lemos livros, muitas das vezes iludimo-nos. Outras, desiludimo-nos. É o ardil da cultura. E, por muito que nos custe, só nos desiludimos porque primeiro algo, ou alguém, nos iludiu.

 

Desta vez enfunei-me como uma vela panda ao vento.

 

A primeira desilusão surgiu-me quando alguém alvitrou a hipótese, consistente por acaso, de Os Lusíadas, de Luís de Camões, serem um plágio da Eneida, de Virgílio.

 

Amuei. Mas continuei a ler ambos os livros sem me importar, por aí além, com a insinuação. A dúvida é legítima. Mas não foram só obras ou gestos dos outros que nós tentámos copiar. Também fomos exemplo.

 

De certeza que se lembram dos principais factos relativos aos primeiros anos da nossa história enquanto nação.

 

Lembram-se, com certeza, que a rainha D. Urraca era a regente do Condado Portucalense, nominalmente dependente de Leão e Castela. Após a sua morte, em 1127, sucede-lhe no trono Afonso VII, intitulado “imperador de toda a Hispânia”. De imediato procurou a vassalagem dos demais reinos e também do Condado Portucalense, que desde há algum tempo evidenciava inclinações autonómicas ou mesmo independentistas.

 

Em 1128, o nosso querido e estimado Afonso Henriques, então com o sangue todo na guelra devido aos seus 20 anos, foi eleito chefe dos Barões, grupo de interesses que temia a influência galega sobre Portucale. Diz a história que o receio foi tanto que o futuro rei se viu forçado a batalhar contra as forças da sua própria mãe, Teresa de Leão, na altura perdida de amores por um nobre galego. Estou em crer que o complexo de Édipo teve alguma coisa a ver com a nossa independência, mas essa já é outra história que aqui agora não cabe.

 

O jovem Afonso Henriques vence as tropas dos seus adversários nos campos de São Mamede e assume a liderança política do condado, manifestando desde logo a firme intenção de lutar pela sua independência. E até alargar as suas fronteiras.  

 

Preocupado com esta situação, Afonso VII decide fazer um cerco a Guimarães, na altura sede do condado, exigindo da parte do seu primo Afonso Henriques um juramento de vassalagem. Este decide então enviar o seu aio Egas Moniz como mensageiro para comunicar ao imperador que Afonso Henriques aceitava a submissão.

 

Por várias razões, em 1131, Afonso Henriques decide mudar a sua capital para Coimbra. Não só muda de capital como muda de ideias. Cheio de força, resolve anular os laços que o ligavam a Afonso VII. Em 1137 invade a Galiza e trava a batalha de Cerneja, da qual saem vitoriosos os portucalenses.

 

No meio de tudo isto, está um homem que preza a sua palavra acima de tudo. Como Afonso Henriques não cumpriu o acordado, segundo reza a lenda, Egas Moniz desloca-se a Toledo, então a capital do Império, descalço e com uma guita ao pescoço. Acompanhado pela esposa e respetivos filhos, colocou ao dispor do imperador a sua própria vida e a dos seus, como garantia da manutenção do juramento realizado nove anos antes.

 

O imperador, impressionado com tanta honradez, perdoou-o e disse-lhe para voltar em paz a Portucale.

 

Este episódio é recontado por Camões no Canto III dos Lusíadas (estrofes 35-40).

 

Pois lendo o hilariante A Vida e Opiniões de Tristam Shandy fiquei a saber que o gesto de Egas Moniz foi seguido, aquando de um cerco a Calais, por Eustace de St. Pierre, que num gesto de bravura, foi o primeiro a oferecer-se como vítima para salvar os seus concidadãos, elevando assim o seu nome à fileira de heróis.

 

Na rendição de Calais, em 1347, após um ano de cerco levado a cabo pelo monarca Inglês Eduardo III, os habitantes foram salvos de um massacre pelo tal Eustace, que se apresentou perante o rei descalço e de corda ao pescoço.

 

Foi com o aio do primeiro rei de Portugal que aprendemos a ser pobres mas honrados.

 

Aprendemos isto na escola, na altura em que, como escreveu Jorge Luis Borges, qualquer casa era um candelabro onde ardiam as vidas dos homens como velas isoladas.

 

E é citando o escritor argentino que termino por hoje: “Felizmente, o copioso estilo da realidade não é o único; há também o da recordação, cuja essência não é a ramificação dos acontecimentos mas o perdurar de aspetos isolados. É esta poesia a natural da nossa ignorância, e não vou procurar outra.”

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