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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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26
Out12

O Homem Sem Memória - 131

João Madureira


131 – O José saiu deste encontro a ferver, não só de impaciência como também de desejo. Quanto ao desejo teve de o meter no seu devido lugar. Já a impaciência resolveu despejá-la inteirinha no Graça. Ele que se entendesse depois com o funcionário, com o Partido, com a revolução e com o Alberto Punhal e toda a cambada de políticos profissionais que não descansavam na sua tarefa de pôr o país a ferro e fogo. Portugal na forja da revolução fundia-se melhor do que o ferro. Também aqui alguém pretendia escrever o remake do livro “Assim foi temperado o aço”. Ah valentes guerreiros comunistas! Sempre a copiarem-se uns aos outros. Mas até para copiar é necessário saber.


O José tinha uma dúvida. E ela era bastante interessante. Poderia ele aceitar o convite da Isabel para fazer parte da sua lista de independentes e, muito provavelmente, derrotar a lista unitária dos estudantes comunistas?


E foi essa sua incerteza que comunicou ao Graça. E o Graça até lhe achou graça. Mais à pergunta, claro está. Mas também ao José, convenhamos. Tanta ingenuidade num ex-seminarista era caso digno de estudo e reflexão.


O José estava em pulgas. Cada vez se encontrava mais dividido entre a revolução, o Partido, a sua toleima unitária e a sua paixão independente. A Isabel era um apelo muito forte. Mas a revolução também era um assunto sério. Mesmo muito sério. Pelo menos era disso que se queria convencer, ou deixar convencer. O que vem a dar no mesmo. Já pensar de acordo com este pressuposto era outra coisa, fazia parte de uma outra realidade. Não admitia que lho dissessem, mas trocava de caras a revolução pela Isabel. Ó se trocava! Mas se o podia admitir intimamente, admiti-lo publicamente era uma desonrosa traição à revolução, mesmo que ela neste momento fosse ainda, e apenas, democrática e nacional.


“Então, posso armar-me em menino emancipado e aceitar o convite da Isabel para fazer parte da sua lista de independentes?”, perguntou a custo o José. Ao que o Graça respondeu: “Podes.” Mas ao José custava-lhe acreditar que a situação fosse assim tão clara e simples para a direção do Partido. Por isso insistiu: “Então posso mesmo dizer à Isabel que sim?” Ao que o Graça respondeu: “Podes.” “Não estás a brincar comigo, pois não?” “Eu não brinco com a política. Um comunista não se diverte com o trabalho partidário. Isso era a sigla dos fascistas da FNAT.” “Mas já falaste com o funcionário e com a comissão concelhia?” “Não, não falei.” “E porquê?” “Pois porque não é preciso. A célula de estudantes comunistas é autónoma na sua organização, nas suas tomadas de posição e nas suas decisões.” “Vá lá, poupa-me às tuas piadas.” “Acredites ou não, neste caso quem decide sou eu. E, como te disse, tens a minha autorização para concorreres na lista de independentes do Liceu.” “Mas podemos ganhar?” “Pois podeis. Ou melhor, podemos.” “Como assim?” “Olha José, o que te posso dizer é que a lista de que vais fazer parte é capaz de ter ainda mais estudantes comunistas do que a que concorre sob a nossa bandeira.” “Eu vi logo. Então já minaste a lista adversária, não é?” “Os comunistas são os mestres do disfarce.” “Talvez queiras antes dizer os campeões da dissimulação. Os…” “Os líderes do movimento estudantil unitário, queres tu dizer.” “És um embusteiro.” “Eu prefiro pensar que sou um comunista sincero e um revolucionário consequente.” “Então e a verdade?” “Qual verdade?” “A verdade revolucionária.” “Ah! Essa. Mais importante do que a verdade é a revolução. E a revolução não se pode sujeitar ao jogo da burguesia. As eleições são uma mascarada. Nesse jogo sujo todas as estratégias são permitidas. Vão concorrer quatro listas: a nossa, a dos independentes, que também é nossa, a dos socialistas e ainda a da direita. Se apenas fossem a votos a nossa, a dos socialistas e a da direita, quase de certeza que a dos socialistas ganhava por causa do voto útil da direita na sua lista. Com a entrada na disputa da lista dos independentes, o voto de direita vai ser preferencialmente transferido para a lista da Isabel, bem assim como o da grande parte dos simpatizantes socialistas que gostam mais da tua amada do que de chocolate. A verdade é que a lista independente é constituída por militantes ou simpatizantes dos partidos da direita, dos socialistas e dos…” “…comunistas. Como estás tão bem informado és capaz de saber responder à questão que te vou colocar: Existe algum verdadeiro independente na lista dos independentes?” “Existe sim senhor.” “Quem?” “A tua amada. A Isabel.” “E eu que estava com problemas de consciência de que fosse o único infiltrado!” “Os revolucionários não têm problemas de consciência. Como o seu único objetivo é a revolução, tudo o que contribuir para a fazer triunfar é bem-vindo. Aos comunistas não interessam os meios. A nós só nos interessam os fins.” “Sendo assim, não sei se…” “Proíbo-te de dizeres disparates. Um verdadeiro revolucionário não tem dúvidas quando o que está em jogo é a vitória do seu projeto. Tudo o que nos pode colocar na senda da vitória é permitido.” “Pois que assim seja, mas eu dessa forma não sei estar.” “Se fosses tu o único infiltrado, concedias-te o direito de fazer jogo duplo e armares-te em vítima inocente ao serviço de uma grande causa. Assim como não o és, armas-te em desgraçadinho. Um verdadeiro revolucionário…” “Já não sei se quero ser um revolucionário e muito menos verdadeiro, pois ao que vejo a verdade por aqui anda mais torcida do que o rabo do porco da minha mãe.” “Ai José, José, quanto me custa a tua amizade.” “Se te custa, larga-a. Eu bem me amanho sozinho.” “Não te armes em vítima. Tu sabes bem o que quero dizer.” “Isto parece-me apenas um jogo de espelhos. Anda tudo a ver quem é que engana mais. Coitada da Isabel. A pensar que anda a fazer uma grande coisa, que anda a arranjar espaço para a possibilidade de um trabalho associativo mais independente e sério, fora das amarras dos partidos, e eis que todos lhe caem em cima como uma maldição.” “Ela apenas é vítima da sua ingenuidade.” “É ingenuidade querer percorrer um caminho de unidade, libertando o movimento associativo das garras dos partidos, permitindo-lhe ser livre e independente?” “Claro que é. O movimento associativo se não estiver ao serviço da revolução, está ao serviço da reação. E quem está de fora racha lenha. Então a menina queria vir lá da montanha para Névoa mandar no movimento associativo estudantil apregoando a independência? Mas independência de quê e em relação a quem? Ninguém é verdadeiramente independente. A independência política é uma farsa. Ou se está ao lado dos explorados ou dos exploradores. Não há meio caminho.” “E eu a pensar que era traidor.” “Um revolucionário só é traidor se atraiçoar a revolução. Tudo o resto são cantigas.”


Pela porta do centro de trabalho alguém entrou a cantar forte e seguido como um corridinho: “A cantiga é uma arma contra a burguesia tudo depende da bala e da pontaria tudo depende da raiva e da alegria a cantiga é uma arma contra a burguesia…”


“Hoje ao Mário “Camões” deu-lhe para a cantoria”, disse por dizer o José, para acabar de vez com a conversa de merda que estava a ter com o seu maior amigo. “Não é o Mário quem cantarola. Além disso está proibido pelo funcionário de entrar no centro de trabalho. Quem assim canta é o Aníbal “Goela Grande”. “Bom funcionário do Partido me saiu o gabirú do Porto, então proibiu de entrar na casa dos comunistas o comunista mais puro e decidido que por aqui havia? Isto não é um partido revolucionário, é um partido de burocratas e revisionistas. Se expulsam os comunistas que querem fazer a revolução, com quem é que a vão fazer?” “Contigo.” “Comigo?” “Sim, contigo. E com o Aníbal.” “A ser assim bem pode o bom e crédulo povo português esperar sentado pela revolução, pois ela nunca vai cá chegar.” “És um criticista. Cala-te lá, senão ainda te mando abater…” “Andas armado em Estaline. É?” “Mando-te abater dos ficheiros, para passares definitivamente a independente.” “Neste momento é o que mais desejo.” “És um romântico. Daqui só sais quando eu o permitir. E eu não to vou permitir nunca. Comunista uma vez, comunista para sempre.” “Com a verdade me enganas.” “Intelectual.” “E isso é um elogio ou uma crítica?” “Entre nós é um misto dos dois. Depende da entoação, do emissor e do destinatário.” “Então, decide-te lá. É um elogio ou uma crítica.” “Uma crítica, evidentemente. Pois apenas os intelectuais é que têm a mania da independência.” “Diz-me lá a verdade, quantos independentes há na lista da Isabel?” “Independentes só há um, ela e mais nenhum. Quatro são comunistas, um terno de simpatizantes mais tu; três são socialistas e apenas um é de direita. Ou seja, há um empate entre os comunistas e os outros. Quem desempata é a Isabel. Por isso é necessário que tu a controles. E, pelo que vejo e sei, ela só se deixa dirigir por quem gosta.”


De novo se ouviu: “A cantiga é uma arma contra…”, mas o Graça não deu ao Aníbal a possibilidade de acabar com a cantoria, convidando-o para ir beber cerveja ao bar do pai. 


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