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TerçOLHO

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10
Mai13

O Homem Sem Memória - 159

João Madureira

 

159 – Ao contrário dos seus camaradas, o José era um militante do Partido Comunista que se dava muito bem com os esquerdistas, com alguns socialistas e, mais recentemente, com os retornados que tinham chegado das colónias portuguesas. Ou seja, era um PC deveras estranho a atípico.


É que apesar dos esquerdistas serem também comunistas, quem diria, eram, sobretudo, oportunistas e, por isso mesmo, muito diferentes dos militantes do seu partido, que eram rígidos nos princípios e excessivamente zelosos da sua superioridade revolucionária e da sua fidelidade ao marxismo-leninismo e, sobretudo, à União Soviética. Além disso, não possuíam uma réstia de sentido de humor. Levavam tudo a sério, até as brincadeiras e as piadas. Desvalorizavam os socialistas, que para eles eram a escória da esquerda, os traidores de serviço, uns palhaços que tinham o descaramento de se afirmarem marxistas. E os retornados, para os militantes do Partido, eram os mais reacionários dos reacionários, eram todos colonialistas, racistas e fascistas.


Para o José, os retornados eram apenas pessoas diferentes, com hábitos diferentes e até com um linguajar diferente dos portugueses da metrópole, que eram uns acanhados, incultos e ressentidos. Os retornados vestiam de forma distinta, comportavam-se de maneira diversa, ouviam música esquisita e fumavam cigarros muito diferentes dos nossos.


Fez-se amigo de muitos. A um deles convidou-o a dirigir um atelier de modelagem, pois o rapaz revelava uma habilidade manual para construir objetos em barro, ou em plasticina, que a todos deixava encantados. A sua inclinação ia para a modelagem de naves espaciais, pois era fã de ficção científica e também de fumar liamba que cultivava em casa com muito empenho. Modelava extraterrestres com surpreendente imaginação e todos diferentes uns dos outros. Moldava ainda planetas, plantas e animais estranhos e carros futuristas. Quanto mais fumava os seus cigarros esquisitos, e com cheiro adocicado, melhor as naves e os extraterrestres lhe saíam. Durante algum tempo foi um dos melhores animadores do FAOJ. A rapaziada adorava vê-lo trabalhar, pegar numa massa informe e dar-lhe as formas mais bizarras e extraordinárias.


A biblioteca foi aumentando o seu número de obras, tornando-se num excelente divulgador do romance, da poesia e de livros de teoria política tão ao jeito dos tempos que então se viviam. Os romances eram todos revolucionários, a poesia era toda subversiva e os livros de política enalteciam, todos eles, o marxismo-leninismo como a ideologia redentora da Humanidade.


Com o aumento da requisição dos livros, a biblioteca começou a amealhar algum dinheiro recolhido das quotas dos leitores. Passados alguns meses, o pecúlio já atestava um frasco de cevada. Teve de se designar um dos dirigentes para guardar o dinheiro em sua casa, pois começaram a dar-se conta de que, a partir de determinada altura, o dinheiro em vez de crescer começou a diminuir. Andava ali mão de ladrão. Perante o triste facto, a célula revolucionária do Partido resolveu agir. O camarada Joaquim ficou encarregue de arranjar a maneira de descobrir o biltre contrarrevolucionário.


No ínterim, chegou o aparelho televisivo ainda a tempo de se verem os Jogos Olímpicos. A rapaziada delirava com alguns dos desportos. E as suas preferências eram muito diversas. À falta de atletas portugueses de qualidade nos jogos, apoiavam-se outros. De preferência os melhores, os que tinham nome nas revistas e nos jornais. Os norte-americanos, por incrível que pareça, eram os que recolhiam mais adeptos.


Os militantes e simpatizantes do Partido torciam invariavelmente pelos atletas do Bloco de Leste. E, de entre eles, elegiam preferencialmente os desportistas soviéticos. O José não era exceção. Para os comunistas, os atletas dos países socialistas eram os embaixadores da ideologia científica do marxismo e os divulgadores da superioridade do homem comunista. Eram o símbolo do triunfo da vontade e da ideologia libertadora que tinha vencido no Leste e que, em breve, conquistaria o mundo inteiro.


Foi nessa altura que o José engraçou com o boxe. Para ele passou a ser, apesar de um certa brutalidade, um desporto onde a superioridade era mais evidente. Então quando o combate acabava em KO era o clímax perfeito. Ali não restavam dúvidas. O tipo que levava o murro nas trombas ia ao tapete e tudo acabava.


Nesses jogos apareceu um pugilista cubano que demonstrou, para quem ainda tinha dúvidas, a superioridade do socialismo científico e da pátria de Fidel Castro, o barbudo da Sierra Madre. A todos os que lhes calhava a sorte, ou melhor, o azar, de lutarem com o cubano, era certo e sabido que iam ao tapete antes mesmo dos três assaltos terminarem. Escusado será dizer que ganhou todos os combates por KO. Os pugilistas que entravam no ringue para combater contra o gigante, em vez de enfrentarem o Golias, punham-se a dançar em seu redor, na tentativa vã de não serem atingidos pelo golpe fatal do brutamontes. Uns, para não serem muito massacrados, mal entravam no ringue davam um ou dois passos em frente, dois para o lado direito, dois para trás, dois para o lado esquerdo, três para trás, e, com o rosto encoberto pelos punhos, tentavam continuar a bailar em redor do adversário até que o gongo tocasse. Mas a grande maioria, ao décimo segundo, já estava no chão a ouvir os passarinhos a chilrear, como nos desenhos animados. E com cara alegre, pois tinha sido murro e queda. O tormento, apesar de doloroso, era breve, como quem toma uma injeção de penicilina. O que resistiu mais foi um russo, que chegou ao segundo assalto. Mas, corajoso como era, e outra coisa não seria de esperar de um pugilista comunista nascido e educado na pátria do socialismo científico, quando foi ao tapete, tinha a cara como o chapéu de um pobre de um país capitalista.


Aos vários pugilistas que foram passando pelo ringue para defrontarem o Golias cubano, bastou um gancho da direita para os lançar ao tapete como se fossem sacos de batatas. Mas ao russo, o King Kong da América Latina teve de dar três murraços nos queixos. Com o primeiro, o russo corpulento ficou a olhar para o negro caribenho como se não tivesse entendido bem o recado. Ainda estava a levantar os punhos para se proteger novamente quando levou o segundo murro. Depois de uma hesitação, em vez de atacar, começou a andar para trás como se estivesse a ser empurrado pelo vento. Quando se encostou às cordas ficou estático à espera que algo de bom lhe acontecesse. Mas não aconteceu. O gongo continuou caladinho e foi então que o camarada de Fidel lhe pespegou o terceiro e definitivo murro que o fez deslizar, deslizar, deslizar até ao canto do ringue e aí escorregar até se sentar definitivamente no chão com cara de quem não sabia onde estava e, muito menos, quem era Marx, Lenine, Estaline ou Brejnev.


O José celebrou efusivamente. Mas foi durante pouco tempo, pois os camaradas informaram-no que a um comunista, do Partido Comunista, é bom lembrar, não ficavam muito bem esses festejos dado que, afinal, mesmo sendo o vencedor um camarada cubano, o derrotado era um camarada soviético. Era preciso respeitar as hierarquias. Isso não se fazia em público, pois era evidenciar sentimentos mesquinhos e perigosamente pequeno-burgueses contra a pátria de Lenine. Pois a pátria de Lenine era, por muito que a pátria de Fidel quisesse ser, superior. Não se podia esquecer que sem o apoio da União Soviética, Cuba continuaria a ser o casino e o bordel dos Estados Unidos.


Ainda estava o José aos pulos e aos berros perante o olhar estaliniano dos seus camaradas e do ar de gozo dos esquerdistas, esses oportunistas, quando se ouviu no andar de cima um estrondo enorme. Todos correram escadas acima, com o José à frente. Líder uma vez, líder para sempre. Quando chegaram ao andar superior observaram o camarada Joaquim com cara de caso a vir em sentido contrário. “Que aconteceu, camarada?”, perguntaram os seus camaradas. “Descobriste finalmente o ladrão? “Não. Esse reacionário filho de uma cadela burguesa é mais inteligente do que eu pensava. Estourou-me a bomba nas mãos quando fui ver se o mecanismo ainda estava a funcionar. O que vale é que era de carnaval.”

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