Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

21
Jun13

O Homem Sem Memória - 165

João Madureira


165 – A reunião iniciou-se num ambiente tenso. As circunstâncias assim o exigiam. Os dados estavam lançados, para o bem e para o mal. Com o país dividido em dois, a revolução ficava com duas caras, com a do triunfo a Sul e com a da luta, a Norte.


A ocasião era desesperante. No fundo, na região Norte os comunistas eram francamente minoritários, mas em Trás-os-Montes eram ultraminoritários. Fazer a revolução com meia dúzia de gatos-pingados era uma enorme toleima. Mas parece que era isso o que o Partido já tinha decidido.


Reuniram-se numa sala sem qualquer janela, o que conferia ao evento um clima ainda mais claustrofóbico. Fora da casa dois camaradas de caçadeira ao ombro faziam segurança como se estivessem a guardar um milheiral de um ataque de javalis.


O camarada funcionário transmitiu aos presentes o que o Comité Central tinha deliberado: resistir no Norte e consolidar no Sul. Quando alguém perguntou como é que iam resistir sendo apenas meia dúzia de camaradas que não sabiam mais do que colar cartazes, pintar paredes e vender jornais partidários, o camarada funcionário respondeu-lhes com as sagradas palavras de Alberto Punhal: revolucionários, ou valorosos ou mortos.


“Ora foda-se”, exclamou o Graça. “Isso deve ser uma piada de mau gosto. Como é que vamos resistir sem armas, sem treino e sem chefes experimentados?”


O camarada funcionário explicou que estava para chegar um grupo de camaradas experientes em guerra de guerrilhas que lhes ia ensinar a todos a suprema arte da revolução armada proletária e socialista. 


“Proletária?”, perguntou o José. “Não enxergo neste grupo um único proletário.” “É uma maneira de dizer”, desculpou-se o camarada funcionário. “Dos que estamos aqui, pode ninguém ser proletário, mas nenhum de nós tem dúvidas de que defende a revolução proletária. Ou será que tem?” Ao que o José respondeu: “Posso não ter dúvidas disso, mas também não tenho certeza nenhuma de que o caminho definido pelo Comité Central seja o que melhor corresponde à grave situação política atual. Fazer uma guerra de guerrilhas em Trás-os-Montes parece-me um suicídio. O melhor será tentarmos chegar ao sul e, a partir daí, arranjar um exército militante capaz de invadir e libertar o Norte das garras da reação.”


“A revolução do Norte não pode depender da gente do Sul. Cada povo tem de libertar a sua terra. Pátria ou morte, venceremos,” disse o camarada funcionário. E o José: “Então agora já fazemos parte de um outro país? Já não somos portugueses?” E o camarada funcionário: “Sim, ainda somos portugueses, só que do Norte. “O camarada Alberto Punhal, secundando a proposta do Comité Central, considera que é melhor implementar o socialismo em metade do país, a parte Sul, onde existe uma classe operária consciente e organizada lutando contra patrões ricos e exploradores e trabalhadores agrícolas reivindicativos e sem terra que desejam cumprir o seu sonho de expropriar os latifundiários, do que retardar a revolução motivado pelo facto de o Norte estar atrasado, inculto e ser pasto da propaganda da reação. O Comité Central também decidiu dividir-se em dois, enquanto esta situação durar. O Comité Central do Sul, chefiado pelo camarada Alberto Pinhal, e o Comité Central do Norte, chefiado pelo camarada Alberto Fiscal, comandados superiormente pelo camarada secretário-geral unificado Alberto Punhal.


O José, vendo o caminho a que esta postura os ia conduzir a todos, propôs que a decisão do Comité Central fosse a votação. O camarada funcionário foi aos arames. “No Partido quem manda é o Comité Central.” “Qual”, perguntou o José. “Agora é o do Norte”, respondeu o camarada funcionário. “E o CC do Norte decidiu o mesmo que o CC do Sul?”, perguntou o José. “Não, não teve de o fazer, porque a decisão já tinha sido tomada ainda antes da divisão. E essa decisão não pode ser contrariada. As decisões do Comité Central Unificado não podem, sob pretexto algum, ser postas em causa pelos Comités Centrais derivantes. O camarada Alberto Punhal não o permite.


“Então são os outros que decidem em nosso nome se devemos matar ou morrer em nome da revolução. É isso, camarada funcionário?”, perguntou o José. Mas o camarada funcionário não lhe respondeu.


Todos os camaradas presentes não conseguiam sequer articular palavra. Estavam ali como se estivessem num funeral. Ou melhor, como se estivessem no seu próprio funeral. Alguns começaram a chorar. O Graça, inteirando-se da real situação, levantou-se e proferiu, levantando o punho direito: “Desesperar jamais.” E começou a entoar A Internacional. Todos os outros o seguiram. Perdão, todos não, o José manteve-se sentado e em silêncio.


Definiram que os doze constituiriam uma brigada revolucionária móvel que atuaria preferencialmente na zona da Serra do Brunheiro e na do Cambedo. Seria também aí que seriam contactados pelo Partido e treinados por dois camaradas guerrilheiros, antigos combatentes do Ultramar.

 

Esta brigada podia ainda dividir-se em duas ou em quatro, conforme a necessidade. Comeriam do que o povo lhes desse e tentariam, dentro do possível, esclarecer e organizar a população para lhes prestarem apoio e para recrutar os mais esclarecidos e corajosos e levá-los a aderirem ao Exército Revolucionário de Libertação do Norte, ERLN.

 

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

blog-logo

Arquivo

    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2016
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2013
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2012
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2011
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2010
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2009
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2008
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2007
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2006
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2005
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

A Li(n)gar