Poema Infinito (211): a dor e a forma
Todas as aves migratórias vêm de países pálidos, cruzando as constelações austrais. Hoje passeei pelos caminhos estreitos da minha terra e neles desenhei o meu itinerário e a minha concordância. O horizonte parece um cálice divino. Os lagos são como recipientes boreais. Transformam a luz azul em silêncio. O crepúsculo transforma-se num utensílio vivo e incendeia as margens do rio. O tempo fica curioso e impregnado do seu desígnio. Esses são os alicerces do tédio. A planície é um vestígio de auras vocabulares. Nos sulcos correm murmúrios. Os homens invocam bebedeiras obsessivas e reconstituem os fragmentos indecisos da infância. As suas brincadeiras tumultuosas, as tardes revestidas de insinuações e desejos, os silêncios antigos da morte, a cintilação das terras aradas, a música luminosa dos abismos, a embriaguez dos caminhos, os assobios de quartzo e os incêndios matinais. E para ali ficam de olhar fixo observando o pintor que lhes fixa a segurança das mãos como se fossem feitas de carvalho. Também eles têm a sua metafísica própria. Por vezes o calor de verão perturba-os e eles sentam-se nas varandas rezando vontades. Têm medo da sua instabilidade religiosa. Por isso repetem as suas experiências incaraterísticas e deixam que o tempo lhes domine o entusiasmo e lhes apague o caráter. Alimentam o seu desencanto enquanto dormem. Os seus sonhos estão cheios de tempestades. Durante os pesadelos estabelecem contacto com a necessidade do apaziguamento. Por vezes conseguem sobrepor-se aos aspetos e estabelecem contacto com a alegria. Ficam iluminados. E desenham os pretextos da respiração dos filhos, a linguagem obediente das serras, a geometria do vento que agita as árvores, a música indecisa do tempo, a disponibilidade para o sofrimento, a segurança solitária das dúvidas, a claridade abstrata da justiça, o esquecimento, a metáfora dos murmúrios, o delírio seco da ignorância, o movimento caligráfico do medo, a inspiração antiga, o imponderável voo dos melros, a rigorosa imobilidade das paisagens, a realidade e as suas sombras, o tempo que chega e o tempo que parte. Agora sentem todo o volume dos corpos e neles guardam todas as suas tradições. Observam-se. Pensam na cor trágica dos dogmas e como seria bom beber as estrelas aos golos. Os montes são agora espaços simbólicos onde florescem várias e distintas metáforas vegetais. O destino é construído com rimas alcoólicas. Por isso é tão fixa a sua indecisão. Sentem a amizade como um pressentimento luminoso. E lamentam as paisagens abandonadas e os horizontes soluçantes que ensombram a razão. Por isso o seu olhar é tão incerto e tão silencioso. Nas suas cabeças as promessas ficam cada vez mais solitárias e tão ácidas como os poemas trágicos. O mundo é uma vocação formal. A eternidade possui os limites interiores dos mares onde o tempo é um ritual incerto. Oiço o vento e os móveis antigos que repousam inúteis espalhados pela casa. Oiço os quartos e os anos guardados dentro das arcas. Todo o meu corpo estremece. As sombras vagueiam pelo chão e pelas paredes. As aranhas transformaram-se em relíquias. Apenas a chuva recita poemas. Lá ao fundo a dor espreita preenchendo com rigor todas as formas de pensamento.