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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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03
Mar16

Poema Infinito (292): a lei da ocupação dos espaços

João Madureira

 

 

Sinto nos pés o frio das estações que nos chega num tempo sucessivo como se fosse o mar, ou a alma da tarde, ou o vento que adotou a linguagem das casas de granito. A alegria chega a determinadas horas e demora-se apenas uns minutos. Repara que temos corpo e que a sua sombra lhe advém da luz que não deixa passar. A lei da ocupação dos espaços leva-nos até à rua. Os homens caídos levantam-se. As mulheres descem solenemente os arruamentos desdenhando a arquitetura do destino. Os lugares interiores tornam-se mais definitivos, as bocas mais ousadas e os olhares mais arrojados. O dia começa a vir à superfície. E morde. A manhã transforma-se numa catedral de esperança. Os homens são como sinais na paisagem. Os anjos descem à terra transportando novas possibilidades, pensando que são diferentes daquilo que são. Lembram-nos que Pedro traiu Jesus e que os judeus prometeram matá-lo e que a promessa ficou por cumprir. Por isso os homens agora juntam-se e organizam grandes manifestações de protesto. Uma leve voz sobe à superfície do tempo e lembra-nos os nomes dos países e a lógica infinita das religiões e os rumores do mar e a comoção das paisagens e os gestos esquecidos que inauguram as memórias e as memórias das memórias. E aí permanecem. Precisamente aí onde se desmorona a infância, as praias que a habitam e os sonhos de partida. Abrem-se os portões da quinta por onde entra o vento da vida e os rouxinóis que cantam a leveza dos seus voos e o movimento cirúrgico das suas asas. Os anciãos contam as inconcebíveis aventuras da voz humana. Ouve-se então descer o silêncio pelas vertentes da tarde. A noite está para chegar. Os versos lavram as páginas feitas de terra. Sinto nos nossos passos a firmeza da determinação e a mesma forma do caminhar com que íamos para a escola conduzidos pelo imenso olhar das mães. Os gestos das crianças são sempre decididos. As loucuras cabiam-nos na concha das mãos. As folhas das árvores descreviam os ventos. Acreditávamos que toda a pobreza é transitória. Dirigíamo-nos ao tempo sintetizando a ambiguidade dos campos. Estendíamos as ideias como se fossem mantas onde nos sentávamos. Escondíamos os sonhos em vários lugares para na volta os irmos resgatar. Os homens construíam laboriosamente os muros que dividiam as terras. Os anjos edificavam organizadamente as paredes das tardes antigas. Os deuses criavam as muralhas dos templos bíblicos e definiam a dor e o prazer, a alegria e o choro, a necessidade e a abundância e mandavam calar os pássaros que julgavam inúteis e os homens e as mulheres que só sabiam rezar.  A luz andava de janela em janela tentando decidir-se por onde entrar. As tardes pareciam nunca acabar. O sol fechava-se atrás das nuvens. E nós víamos pontualmente partir as horas e arredondávamos o som das palavras definitivas e abríamos as portas à esperança. Os pastores guardavam o rebanho dos seus pensamentos, os camponeses semeavam batatas e palavras. Todo o caminho feito é na esperança do regresso. Por isso os deuses das viagens orientam as estátuas que nos servem de bússola. A virtuosa solenidade da preparação para as grandes viagens está de regresso. As linhas do teu rosto recompõem-me o mapa mental. Os velhos sinos tocam a rebate. A atmosfera é doméstica, a paisagem quotidiana. Estou repleto de ausência. Pego então nas breves palavras que me deixaste, olho o céu azul e parto. Disseste-me: Quem parte fica sempre com responsabilidade de chegar.

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