Poema Infinito (344): Espiral de vento
Aprendi a imaginar o futuro através do passado. Agora recordo a chuva, as crinas dos cavalos ao vento, de chapinhar nas poças de água com os sapatos novos da primeira comunhão, dos desenhos escondidos e de palavras ditas por crianças que me partiam o coração em pequenos pedaços de gelo. Espantavam-me as noites estreladas, o riso sério da Lua, o cheiro das cascas das tangerinas, as bonecas de porcelana nas montras, os olhares fixos dos cavalos, as tardes enevoadas em que o meu avô talhava com a sua navalha animais e alfaias em madeira. O tempo fugia da cozinha misturado com o fumo pelo interstício das caleiras. A ternura invade-me os olhos. Tento esquecer as sombras. Os rapazes sonhavam com os seios das mulheres e rolavam pelo chão como corços, entre as giestas do vale. O rio nascia em sete fontes distintas. A porta do quarto dava diretamente para os astros e o lume dos olhos vagueava pelos outeiros. Logo de manhãzinha, as rodas dos carros deixavam sulcos fundos na humidade dos caminhos e tropeçavam nas pedras. Chiavam muito quando os carregavam com molhos de centeio ou com sacos de grão ou de batatas. Aves dispersas sobrevoavam os céus. O sol nascia junto ao musgo dos carvalhos. Os olhos reparavam no frio voo das corujas, nos carros de bois carregando carquejas, tojos e fetos, nas molhelhas, nos jugos, nos estadulhos e nos chavelhos. Agora arrastam saudades, angústias e segredos. O tempo afoga-se na espera, recorda as palavras redondas e brancas como os seixos do rio. As mãos que talhavam a terra e os escanos, agora parecem lagartos quietos ao sol. As avós já não segam o feno. A sua beleza deixou de fecundar as histórias. Os filhos foram-se embora pelo caminho da cidade. No rio já não brilha a luz terna dos sonhos, os meninos já não se embrulham em cobertores enfeitados de estrelas, os olhares já não possuem a profundidade dos oceanos, as lágrimas já não correm lentamente à procura de felicidade, o sol já não nasce dentro dos poemas e os minutos são cada vez menos infinitos e os frutos já não rimam com os lábios. O ritmo transferiu-se para os retratos onde as mulheres espelham os decotes e os sorrisos. A infância é uma espécie de espasmo que se agarra às saias das mães. O rosto dos homens parece cinzelado pelo escopro árduo das mãos de um ferreiro. Dentro da velha arca ainda soa o canto dos grilos, a voz estridente dos pássaros, os segredos escondidos debaixo das almofadas, a voz dos piratas que navegavam em cascas de nozes. Nas paredes, junto ao crucifixo, permanecem invariáveis os silêncios atordoados. As ausências são imensas e as recordações assemelham-se a sombras. O lume ainda está aceso, as mãos ainda estão guardadas no colo. O regresso a casa ainda possui o mesmo som. No entanto, os versos são agora mais transparentes. No seu seio nascem as tempestades. O vento ainda assobia quando passa pelas searas a caminho dos outeiros. Ainda me lembro das adivinhas, dos contos, dos romances e das festas. Ainda mantenho no meu sangue a seiva dos tojos, das giestas, dos pinheiros, dos carvalhos, das pavias e das maçãs. Ainda retenho nos olhos os vaga-lumes, as andorinhas e os lírios e os poemas de amor escritos na lousa preta. E a nostalgia das cerejeiras e as neblinas e os palheiros e a minha mãe e o meu pai e a minha avó Fonseca e a madrinha Augusta e o tio Manuel e o José das Bandas de Lá e as casas cheias de fumo. E, sobretudo, a espiral de vento que agora teima em me levar todos os sonhos.