Poema Infinito (350): Invocação
Invoco as escadas e os caminhos ainda por percorrer. O tempo fez de mim um poeta confuso que passa pela vida com a limpidez da corrente dos ribeiros. Os meus olhos são feitos de película de água onde a luz se contorce e onde as linhas secretas do voo dos pássaros se expandem. Até ao céu, a escada é altíssima. O horizonte possui a profundeza das lâminas. Os deuses continuam a exigir sacrifícios, a invocar a violência, a multiplicar as cheias, a descoordenarem os ritmos, a serem incapazes de descanso. Deles nasceu a inquietação perpétua, os seres feitos de chamas, o desejo intacto dos gestos, as imprecações descontínuas e as auroras locais. São as pequenas imprecações que nos enfraquecem a voz. A respiração modifica as paisagens, as almas correm através da luz que se escapa pelas portas. Já perdidos estão os pensamentos, os objetos e os corpos. Os cães fogem porque farejam a dor. Tudo o que passa nos modifica o pensamento. As paisagens são frágeis e os cânticos diferentes. Evoco as terras mais remotas, as tempestades mais assombrosas e a beleza mais adversa. Os estorninhos coroam-nos com os seus voos assombrosos. A gravitação vai abrindo o firmamento, a densidade aumenta, os sinais são cada vez mais longos. O tempo teima em desmontar o espaço. Os amigos são outra forma de arte. O silêncio desce sobre as macieiras. Os muros estão cada vez mais tristes. Os homens aproximam-se da sua solidão. As árvores parecem obstáculos à harmonia da paisagem. Na estrema dos campos demoram-se os animais. Alguns levantam-se devagar e assustam as aves. A tarde começa a fechar as flores. As abelhas zumbem em redor das cores, dos aromas e dos pólenes. As divindades mais breves regressam às matas, repovoam os cerros, sopram as paisagens e põem-se a cintilar no interstício dos arbustos. O crepúsculo é uma bem-aventurança, uma melancolia perfeita. No tanque, as folhas tocam a água límpida. Este é o momento exato em que se tocam o silêncio e a solidão. O voo das andorinhas vaticina a melancolia desaparecendo a caminho do sul. Sossego no pátio das traseiras onde começam a morrer as pétalas das hortênsias. Os frutos abandonados apodrecem no chão. A força das sombras acentua o declínio do tempo. O esplendor teve a duração das vindimas. A saudade é cada vez mais lúcida. Ainda me lembro dos jardins cheios de gente, das bebidas frescas, dos risos inebriantes, do sussurro das brisas nas tílias e nas bétulas e nos cortinados imponderáveis das janelas. As raparigas brilhavam sentindo o desejo dos rapazes. O verão era perfeito vestido com o seu calor. Nessa altura já a minha sombra procurava a tua. As árvores mais altas têm tendência a inclinar-se ligeiramente. Amávamos o bairro, apesar da sua luz triste. Aprendi então a linguagem inerente ao desejo dos pássaros. Não mexíamos o corpo, apenas as nossas mãos voavam, desciam e subiam, incendiavam-se de paixão e prazer. Nas ruas agasalhávamos a solidão. A alegria era outra forma de imperfeição humana. Depois, os anjos começaram a escurecer, a inventar muralhas de água, a tingir de escuro as tardes, a educar as portas fechadas, a insistir nas pequenas violências, a estruturar a respiração, a modular as velocidades, a ascender ao deserto da exatidão. A luz expôs então os ferimentos da desilusão. Será que tudo pode acontecer de novo?