Poema Infinito (357): Onde tudo começa e acaba
Nunca sabemos como tudo começa. Lembramo-nos apenas de uma certa forma de cegueira. Como quem fixa o olhar nas sombras. Depois levantamo-nos pelas manhãs e reparamos na direção a tomar. Exageramos sempre mais um pouco nos princípios. Fiamo-nos nas memórias. Sufocamos dentro dos fatos, enrodilhados dentro da música. Brincávamos a bem e a mal. Gostávamos do pão doce e dos mimos. Evitávamos a velhice e o sal do suor e das lágrimas. Fugíamos dos invernos e dos desgostos. A infância apertava-nos o coração. É áspera a solidão. A espessura da vida confere peso ao conhecimento. Distinguimos as sereias e as estrelas mortas. As distâncias são vagas. As cores perdem nitidez. O tempo continua a irradiar a sua eterna ameaça. Não se cansa. Demoramos a olhá-lo. Por vezes parece uma caixa chinesa, ou um relógio apressado. A sala ficou deserta. A poesia é efémera. Movemo-nos num jogo indistinto de sombras. A caligrafia tornou-se preguiçosa. As frases estão cada vez mais descontínuas. Por vezes apanhamos o rasto da memória e sorrimos. O passado é um enigma. Enquanto passeávamos levantou-se um pouco de vento. Falámos de Zaratustra, como se tivesse importância. Sabemos que as coisas ficam sempre mais vagas, que os sonhos são viciosos, que os medos são sempre interiores. Os animais atravessam sempre as sombras sem se assustarem. Admitimos os corpos e apaixonamo-nos pela sua vulgaridade. Inventamos então pretextos e desgostos e caminhos de acesso. As alucinações iludem sempre os outros. Entendemos o conhecimento e o medo que provoca. E as almas longas. E também os desejos. Distendemos então o corpo ao sol. O jardim tingiu-se de tons sujos. O casario em redor provoca dor. Em volta parece só haver deserto. O azul do céu continua estonteante. Talvez eu tenha já esquecido o caminho de casa. Sigo o rumo das aproximações, imitando os círculos num tenteio de pássaro. Dos lados dos caminhos crescem as giestas. Nas cortes, as vacas ruminam. Sente-se um cheiro a feno. O estranho é não haver gritos de crianças. As árvores parecem pesadas, feitas de bronze e abandono. O ar mal estremece. Tudo parece arder por dentro. As flores pontilham as bermas de alguma exuberância. Os olhares por detrás das janelas são sombrios, quase hostis. Avisto com alívio a casa ao longe. Por perto, ainda crescem malmequeres e algumas couves. A prudência e a paciência sempre a habitaram. Reconheço-a pela sua secreta identidade e porque me consegue devolver alguns prazeres da infância. A imagem da minha avó começa a tremer dentro da sua nitidez. O mundo era então feito de remendos e buracos. E pequenas aflições. Num pequeno banco continua sentada a imagem densa do meu avô. Sério na sua doença. Manco no seu amor. Escondendo dentro de si açudes e medos. E as cartas que nunca conseguiu escrever desde Angola. A minha avó descansa aconchegada pela sua serventia e pelo seu asseio. Repete certas palavras várias vezes para que ganhem algum valor. Sorri como se fosse um pormenor, mexendo ao mesmo tempo as mãos como se tivesse a ideia perfeita do contentamento. Sinto novamente o fascínio da febre e da beleza. A sua ausência desliza sobre as paredes e as telhas da casa. A sua recordação parece uma memória atravessada pelo brilho da desarticulação. Alguém estende o medo em cima dos lençóis de linho com que compõe a cama. A casa faz imaginar os cheiros. A poeira e as horas são mais delicadas. Sinto o ar a vibrar. Algo brilha no escuro e desaparece como se fosse um inseto. Nunca sabemos onde tudo acaba.