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Dói-me o esquecimento e dói-me o esquecer. As intenções, sobretudo as boas, são as coisas mais lisas do mundo. Todos escorregamos quando andamos em cima delas. O amor dos animais é gratuito. Valha-nos ao menos isso. Dentro do abismo, ouvem-se muinheiras. Devo estar a atravessar a fronteira, que agora parece invisível. Ouvem-se as flautas, os pandeiros e a gaita-de-foles. Os sons misturam-se com a memória da humilhação. As mulheres a gritarem de susto. As crianças a chorarem. E os homens a teimarem em beber sempre mais um copo. De vinho. De cerveja. De cidra. De aguardente. Esta “esmorga” é muito triste. Quem os ajudará na vingança? Quem? O desejo parece um saguim ao saltinhos. É difícil estar suspenso entre dois nadas. E o livro da poesia completa de Guerra Junqueiro a cair aos pedaços. O padre eterno a morrer aos bocados. Lá fora passam homens barbudos, de casacos comprimidos, filósofos talmudistas, vendedores ambulantes dos seus próprios aforismos. Persegue-os um anjo prisional que foi queimado durante a Revolução. Uma nave antiga navega a toda a vela pelos céus fora. Ouvem-se admiráveis vozes infantis. Tudo parece abstrato: Rosseau, os rapazes amestrados, os ideais filosóficos do século XVIII. Olha para mim um colecionador de pregos. Eu escondo atrás das costas um martelo. Melhor seria ter um violino. Rostos verdes em agosto. Não é normal. Mais um mistério para desvendar. Sinto o cheiro penetrante das pequenas coisas. Do vinho. Dos sorrisos. Do tempo dos verbos. Dos olhares das mulheres bonitas. Das plantas silvestres. Dos gestos. Dos sorrisos. Um poeta amigo tenta calcular a velocidade da chuva. A verdade está a esgotar-se. A paciência parece uma hélice. Sorrio no escuro, para ninguém me tomar por louco. Descalço a virtude e sento-me na borda do passeio. Gostaria de escrever coisas divertidas. Estamos já fartos de catástrofes e de pequenas e grandes tristezas. Estive numa reunião de poetas, logo depois do crepúsculo transmontano, e reparei que todos falavam baixo, bebiam tequila à maneira mexicana e recitavam poesia aos berros. Pareciam todos o Ary dos Santos, mas mais para o magro. Dizem que fugiram à chuva, a que um deles, lá mais um pouco atrás, neste poema, tentava calcular a velocidade. Muitos dos poetas parecem monges artificiais. Alimentam-se de milho transgénico e de rúcula e de canónigos. Parecem enjoados. Vivem na intersecção entre a morte e o poema. As suas palavras não lhes são fiéis. Eles bem as gritam, mas elas fogem-lhes durante a noite para outros livros. E eles, como sonâmbulos, dão voltas em torno dos seus equívocos. Dormem à beira do abismo. A poesia já não os emociona, por isso a gritam como se os que a escutam fossem surdos. Ou parvos. As suas alegorias sofrem de uma imaturidade premeditada. Vejo-os a aparecer e desaparecer atrás da tal cortina de chuva a que o tal poeta, que ficou lá atrás no poema, continua a tentar medir a velocidade. Alguém recita versos de amor em latim. Também eu agora sinto um vazio depois do orgasmo. Concentro-me para escutar a chuva a que o poeta tardio continua a querer medir a velocidade. As nuvens estão cada vez mais agudas. Sinto-as pregadas às minhas retinas. Abres então as tuas pálpebras. Eu ainda continuo aqui apesar de ter dado a volta ao mundo sem sair do teu lado.
São as lâmpadas elétricas dos presépios que simbolizam hoje o Natal, e as renas e os pais natais e os bonecos de neve e os pinheiros repletos de bolas e outras bugigangas. Não são o menino Jesus, nem a sua mãe Maria e muito menos José, o seu putativo pai. Nem os pastorinhos, nem as ovelhas, nem o burro e a vaca e o trio multicolor dos Reis Magos. A memória baralha-se com a confusão do dia a dia, com a ansiedade, com a pontualidade enviesada dos portugueses. E nós a perdermos a noção das horas e das refeições. A repetir perguntas e a trocar nomes dos muitos conhecidos e amigos. E nem sempre por esta ordem. A confundir medos e conversas normais. E a fazer backup da dor e das emoções que nos chegam em cascata. E a ouvirmos o barulho dos carros e das pessoas. E a recordarmos as correrias do Lobo Mau, da Capuchinho Vermelho e da Branca de Neve. E os anões adormecidos a ressonar. E o baile da Cinderela. A olharmos para as sombras e para os espetros infantilizados que vão e vêm, sem nos pedirem licença. E nós a confundirmos a razão pura e a razão prática. As ilusões e os enganos. A presença real e a presença virtual. A confundirmos pessoas com hologramas. A confundirmos inteligência com inteligência artificial. Uns do lado de cá a irem para o lado de lá e outros do lado de lá a virem para o lado de cá. A consultar os organogramas e os horóscopos. Todos dizem gostar de viver entre coisas bonitas e cheias de luz. Mas isso apenas é resultado da leitura enviesada de livros de autoajuda. Também se deslumbram a observar, nas revistas da especialidade, as fotografias dos décores luminosos com paredes pintadas de casca de ovo e verde-água, as cortinas de seda branca, os frisos e os frescos com desenhos à Aubrey Beardsley, os móveis Art Nouveau, os bibelôs exóticos vindos de lugares distantes. Tudo o que rufa e toca é tudo a mesma tropa. E as mulheres lindas e burguesas, decotadas, a sorrirem-nos dos quadros pintados a aguarela onde fazem festas aos galgos. Em casas cheias de coisas e vazias de gente. Esta é a transição pacífica para o nada. E por aqui andamos nós a vivermos na tal cidadezinha de província, entre boutiques, restaurantes, cafés, fiéis motoqueiros do KM 0 e caca de cão, nos jardins e nos passeios. Podemos estar à espera, mas sempre prontos, nem que seja para a guerra dos mosquitos. Afinal, esta é uma terra de guerreiros intrépidos, situada a norte deste país de intrépidos guerreiros. Por aqui, a maioria, à falta de guerra, nestes tempos de paz acantonada, vai-se esvaindo em tédio. E os poderes instituídos, quer sejam eles locais, regionais ou nacionais, a assediarem-nos com sabedoria, com paciência, com estratégia, em avanços e recuos bem pensados, usando até trunfos inesperados. Bendita seja a democracia! E quanto mais provinciana, melhor. E nós a olharmos para a acrobacia dos novos democratas. Abençoados sejam. A imaginação vem-lhes toda dos livros de introdução à filosofia, à política ou ao sexo sem tabus, mas em segurança. Ou dos cursos de filosofia zen por zoom. Mais do sexo implícito que explícito. Claro que há, no meio disto tudo, muito requinte e preparação, mas pouca concretização. É sempre mais fácil apaixonarmo-nos pelos hologramas do que pelas pessoas de carne e osso. Mas também há os platónicos, os de amor construído, que se declaram à moda antiga e até são capazes de citar versos da Ilíada à sua amada, ou vice-versa, tais como: “Vamos em nossa cama congraçar-nos: / Tal ardor nunca tive e tais desejos; / (…) / Na ilha Cranaé do amor gozámos; / Hoje mais te apeteço e mais te anelo.” A verdade é que este país perdeu a graça, mas não perdeu o apetite. Petisco a petisco, enche o português a pança. Viva então o D. Quixote português. Que é velho e solteirão. E semierudito. Anarco-conservador, liberal, pacifista e misógino. Os nossos heróis são sempre longínquos, cheios de tiradas românticas para nos infernizarem a vida. Que não é bela, nem amarela. Mas por aqui vamos vivendo, nesta democracia europeia, aparentemente laica e assustadiça. A verdade é que nos sentimos bem nesta nossa alegria doméstica. É este o nosso verdadeiro destino. Muita da nossa coragem vamos buscá-la ao vinho tinto, sobretudo os homens, e ao branco, a maioria das mulheres. A perfeição necessita de imperfeição.
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