Pérolas e diamantes (65): Com D. Quixote no Coração
Santo Agostinho dizia que até os corações bons têm um abismo. Descobri agora que também o meu sofre da mesma sensação de vórtice. Isto partindo do princípio de que o meu coração é bom. É isso que quero crer, mas será assim?
É que corações há muitos, tal e qual como os chapéus. E para todos os gostos, feitios e medidas. E também para todas as declarações de intenção ou outras manobras de diversão ou inversão de rumo. É por isso que continuo a ser uma pessoa agreste que ri como uma criança perante os factos mais inexplicáveis que muitos insistem em tornar compreensíveis. E de coração aberto. É que para esse peditório já dei o que tinha a dar. E quem dá o que tem a mais não é obrigado.
Li algures uma coisa que me deixou a meditar de inquietação. Um homem disse que cegou quando era pequenino. Estava deitado na cama a dormir e quando acordou disse à avó para abrir a janela porque não via nada. Descobriu então que estava cego.
Confesso que também eu tenho medo de cegar de repente. Por vezes fecho os olhos para me aperceber da sensação. Então consigo compreender as palavras do artista basco Eduardo Chilila: “O espaço é uma matéria rápida. A matéria é um espaço lento.”
E também as de Churchill: “Uma mentira dá uma volta inteira ao mundo antes mesmo de a verdade ter oportunidade de se vestir.” Ou: “Uma meia mentira nunca será uma meia verdade.” Ou ainda: "Algumas pessoas mudam de partido em defesa de seus princípios. Outras mudam de princípios em defesa do seu partido."
Muitos dos que nos rodeiam parecem personagens de Beckett, pessoas sem liberdade, porque, apesar de a possuírem em excesso, não sabem o que fazer com ela.
Um dos meus livros de cabeceira, que leio para não enlouquecer, ou melhor, para tentar dar algum sentido ao mundo e àquilo que nos rodeia, é o Dom Quixote. Tenho por ele uma admiração infinita. Para mim é o livro de todos os livros. Nele está incluído o género de exaltação que os idealistas voluntariosos quase sempre nos provocam.
Hoje continua a ser mal visto, ou incompreendido, manifestar a diferença. As pessoas têm sempre medo do que os outros vão dizer. Mas, talvez por isso, não me vou coibir de citar o escritor Pedro Badarra, numa entrevista recente: “O que é que o faz amar e odiar Portugal? É muito simples e está destilado. Já destilei esse pensamento de taxista. Gosto e amo o cheiro, e a cor, e o mar, e os robalos, e a praia. E detesto gente. Não são as pessoas. A parte das pessoas que é animal, que é como os robalos, os cães, os gatos, gosto. Aquela parte que é a nossa construção social cheia de convenções, cheia de gentinha, cheia de grupinhos, não gosto. É tudo muito conservador. Somos pequenos.”
De facto, o escritor tem razão. Aqui tudo é pequeno, especialmente na província mais provinciana. Os ricos são pouco ricos e os líderes são pouco líderes. Muitos dos líderes são risíveis, quando não patéticos. Toda a gente parece que tem muito a perder porque tem pouco.
E ainda há quem divida isto ao meio, entre a esquerda e a direita. Isso é agora uma irracionalidade. Aqui ninguém fala verdade. E o discurso dos que apoiamos chama-nos estúpidos a todos.
É a pequenez. A nossa pequenez. Eu abomino a pequenez. Não é a pequenez das casas ou das aldeias. É a pequenez de espírito. É o espírito destes dias do lixo, como diz Pacheco Pereira. Estamos mais preocupados em conservar o pouco que temos do que em arriscar o que temos para conseguir mais.
Sim, nós somos bons alunos, só que de maus mestres. Já fizemos tantas vezes de Sísifo que estamos cansados. Sempre a levar a pedra pela encosta e ela, antes de chegar ao cimo do monte, cai-nos sempre e rola pela encosta.
A cidade nesta crise imensa, nesta dívida colossal, que se calcula em cerca de 70 milões de euros, e os nossos subordinados regentes apenas se mostram dispostos à politiquice e à troca de cadeiras, da busca de lugares, de tachos, de panelas e potes. Mas há pessoas que apenas aceitam o caldeirão do Astérix, mas atenção, com a poção mágica incluída para combater os romanos.
A política da verdade, do trabalho e da competência deu nisto. Nesta governação subordinada à vaidade e à prepotência de gente que não se enxerga na sua irresponsabilidade, na sua arrogância, no seu despotismo.
Por isso é que esta gestão autárquica já é irrelevante.
Hoje vou terminar com as palavras do político e intelectual brasileiro Ruy Barbosa (1849-1923), e um pouco emocionado, sabe-se lá bem porquê: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”