Pérolas e diamantes (69): entre a alegria e a mudança de pelo
A minha melhor banda sonora mistura um sussurrar no fundo da casa com um rumor calmo de palavras ensinadas aos meus filhos e o frigorífico a ronronar, a panela da sopa a borbulhar, a colher do Axel a bater no prato, a água a correr para encher a banheira, a publicidade idiota na televisão, a tagarelice dos meus dois filhos, o sorriso da mãe. E eu ali a escutá-los, a rir embaraçado com um misto de felicidade atrapalhada e a pedir que aquilo perdure para sempre. Que nunca acabe.
Sinto que possuo um tipo de alegria kafkiana. Por vezes corto as memórias e as palavras de maneira abrupta. Um amigo disse-me que, por vezes, quando falo, perturbado por algum acontecimento recente, corto o ar de tal maneira com as mãos que se sente de imediato a outra metade a cair do outro lado da espada.
E isso acontece-me mais a cada dia que passa, neste país que reserva alguns mistérios por desvendar, tais como pagar mais às pessoas quando estão desempregadas do que quando trabalham, de retribuir melhor os pedreiros que os professores, de andarem por aí almas caridosas a angariar fundos para acudir às vítimas das cheias em Moçambique quando a maioria dos nossos pensionistas vivem da esmola do Estado.
Ou ainda por viver num país onde a segunda figura da Nação, militante distinta do PSD, está reformada desde os 42 anos e recebe 7000 euros mensais, por 10 anos de trabalho no Tribunal Constitucional, enquanto a quase totalidade dos portugueses no ativo ou não terá reforma ou só a conseguirá usufruir quando estiver mesmo com os pés para a cova.
Ou ainda por habitar numa cidade onde António Cabeleira, por manobras mirabolantes, indo contra a lógica política, e contra toda a palavra dada, conseguiu um acordo de governação, que, a meu ver, não passa de uma manobra de diversão e de uma carta de intenções tão vaga quanto demagógica.
Não sei porquê, mas lembrei-me de Tom Sharpe, mais concretamente do seu livro “Uma Mancha na Paisagem”, onde sobre uma sua personagem escreve: “Privado de dignidade, pretensões, autoridade e razão, Dundridge estava quase humano.”
Tenho a certeza que quando determinadas pessoas disseram aquilo que disseram em defesa do acordo de governação entre o PSD e o cidadão eleito pelo MAI sentiram que a língua lhes pesou dentro da boca.
Todos sabemos que a felicidade é sempre prematura. E quando o fim da vigência do acordo estiver para acontecer aí é que os eleitores se vão rir. É que tristezas não pagam dívidas e muito menos as da Câmara de Chaves.
Já sinto as dúvidas de muitos leitores questionando-me sobre o porquê da minha zanga. Mas olhem que não estou nada zangado. Sobre o assunto já emiti a minha risada antibiótica. Afinal qual a razão por que havia de estar zangado? Pelo contrário, eu devia estar feliz, não é?
Mas caros amigos, Robert Evans, um produtor de filmes da Paramount, escreveu um dia: “Há sempre três lados em cada história: o teu… o meu… e a verdade.”
Mas qual verdade? Pergunto eu. E será que é a verdade o que nos interessa saber?
De facto houve gente que tentou tratar os eleitores flavienses como companheiros. Outros trataram-nos como clientes. Mas talvez levados pela vaga liberal, a maioria dos flavienses preferiu os segundos.
Ficou mais uma vez provado que os políticos são cada vez mais atores que representam interesses alheios.
Por vezes encolhem os ombros e, quando questionados sobre alguns assuntos mais melindrosos, gostam de dizer: Perdido por cem… e depois calam-se para que sejamos nós a concluir o raciocínio. E nós, como bons aprendizes de maus mestres, lá fazemos avançar o pensamento.
Mas, caros leitores, o que esses senhores não dizem, mas pensam, é “perdido por cem… ganho por mil.”
Ou seja, todas as verdades são reversíveis.
Charlie Chaplin, por exemplo, acreditava que a força da arte é efetivamente mais poderosa do que as doutrinas políticas. Mas isso, estou em crer, apenas acontece nos filmes e nos livros.
Pensando ainda mais uma vez no acordo autárquico realizado por António Cabeleira e João Neves, lembrei-me do adágio popular que diz que as raposas podem mudar de pelo mas nunca mudam de hábitos.