Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

25
Dez13

Poema Infinito (178): uma canção deserta

João Madureira

 

Foi a década de todas as convulsões. Uma época diferente, onde todos aprendemos que o mundo era maior do que a guerra eterna entre o bem e o mal. Aprendemos a ler coisas estranhas e fascinantes, a questionar o infinito, a ouvir as madrugadas e a tornar inofensivo o maio de 68, os beatles, os stones e o bob dylan e a buscar as mil e uma razões para salvar o mundo e a contemplar os logros e a comover-nos com os mitos europeus e a procurar o mar e o tempo que move as ondas. Encontrei-te debruçada sobre o frio de fevereiro a recolher pétalas de amores-perfeitos prensadas dentro dos livros. E os teus olhos procuravam a luz. O céu estava ainda fora do nosso tempo. Os pássaros voavam em círculos. A vida enrolava os sonhos nos labirintos das ruas. As mulheres mais secas morriam nas janelas observando o absurdo das rajadas de vento. Cá fora, as multidões abriam madrugadas e cantavam canções desertas. As palavras aprendiam a viver de novo nos teus lábios incertos. A noite era inútil. As saudades eram perpétuas. Os sonhos eram abismais. E o tempo era um rio que se repetia nas suas margens. A vontade mudava. O prazer era um novo desencanto. E nós queríamos mudar tudo o que ninguém ainda tinha conseguido mudar. Os desejos eram iguais à vontade. E a vontade enganava a esperança. E a esperança ficava fria. Nós queríamos as fantasias perpétuas. Perseguíamos a ilusão das imagens. Tudo se transformava noutra coisa. As horas eram como flores de papel. Os pirilampos voavam e acendiam a infância. E nós aprendíamos a respirar como os peixes. E a procurar a razão da vida. E o seu sentido. E deixávamos que as paixões despontassem dentro de nós e nos atravessassem com os seus golpes de destino. E o destino éramos nós e por isso começávamos a arder e a chamar as paisagens e a aproximarmo-nos rapidamente de tudo e a escrever palavras compactas que não queriam dizer nada e diziam tudo. Tínhamos orgulho no desejo e ardíamos dentro das metáforas e sofríamos com a escuridão do mundo e com as estrelas que caíam no mar e se afogavam. Então o mundo ficava escuro e os nossos sonhos naufragavam como se fossem sinais do destino. E crescemos com os anos e deciframos as máscaras da destruição. Custava-nos respirar por entre as angústias. Imaginávamos os sonhos a correr por entre as sombras e a atravessar o medo e a sintonizar a estupidez do mundo. Pensávamos que as pessoas eram feitas de vento e saudade, por isso repetiam sempre os mesmos gestos. O crepúsculo prometia salvar-nos. No fundo, as coisas eram inofensivas. Prosseguíamos o nosso caminho, regressando sempre ao labirinto onde se ocultavam as certezas. As galáxias dos nossos olhos tinham mil sóis. Por isso brilhavam muito e incendiavam as alvoradas. Toda a gente atravessava a rua à procura de sonhos e de símbolos. E os poetas não amavam. Apenas eram lúcidos. Parecia que tudo era igual. As pessoas eram automáticas e queixavam-se da inutilidade dos dias. Agora as imagens sobrepõem-se e assombram o vazio e esperam em silêncio. São como aquelas pessoas que regressam à sua solidão e choram dentro dos seus sonhos de pedra. Antes das luzes se apagarem, espero que me segredes o assombro da próxima madrugada. Se ainda for possível. 

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

blog-logo

Arquivo

    1. 2025
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2016
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2013
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2012
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2011
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2010
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2009
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2008
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2007
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2006
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2005
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

A Li(n)gar