Poema Infinito (178): uma canção deserta
Foi a década de todas as convulsões. Uma época diferente, onde todos aprendemos que o mundo era maior do que a guerra eterna entre o bem e o mal. Aprendemos a ler coisas estranhas e fascinantes, a questionar o infinito, a ouvir as madrugadas e a tornar inofensivo o maio de 68, os beatles, os stones e o bob dylan e a buscar as mil e uma razões para salvar o mundo e a contemplar os logros e a comover-nos com os mitos europeus e a procurar o mar e o tempo que move as ondas. Encontrei-te debruçada sobre o frio de fevereiro a recolher pétalas de amores-perfeitos prensadas dentro dos livros. E os teus olhos procuravam a luz. O céu estava ainda fora do nosso tempo. Os pássaros voavam em círculos. A vida enrolava os sonhos nos labirintos das ruas. As mulheres mais secas morriam nas janelas observando o absurdo das rajadas de vento. Cá fora, as multidões abriam madrugadas e cantavam canções desertas. As palavras aprendiam a viver de novo nos teus lábios incertos. A noite era inútil. As saudades eram perpétuas. Os sonhos eram abismais. E o tempo era um rio que se repetia nas suas margens. A vontade mudava. O prazer era um novo desencanto. E nós queríamos mudar tudo o que ninguém ainda tinha conseguido mudar. Os desejos eram iguais à vontade. E a vontade enganava a esperança. E a esperança ficava fria. Nós queríamos as fantasias perpétuas. Perseguíamos a ilusão das imagens. Tudo se transformava noutra coisa. As horas eram como flores de papel. Os pirilampos voavam e acendiam a infância. E nós aprendíamos a respirar como os peixes. E a procurar a razão da vida. E o seu sentido. E deixávamos que as paixões despontassem dentro de nós e nos atravessassem com os seus golpes de destino. E o destino éramos nós e por isso começávamos a arder e a chamar as paisagens e a aproximarmo-nos rapidamente de tudo e a escrever palavras compactas que não queriam dizer nada e diziam tudo. Tínhamos orgulho no desejo e ardíamos dentro das metáforas e sofríamos com a escuridão do mundo e com as estrelas que caíam no mar e se afogavam. Então o mundo ficava escuro e os nossos sonhos naufragavam como se fossem sinais do destino. E crescemos com os anos e deciframos as máscaras da destruição. Custava-nos respirar por entre as angústias. Imaginávamos os sonhos a correr por entre as sombras e a atravessar o medo e a sintonizar a estupidez do mundo. Pensávamos que as pessoas eram feitas de vento e saudade, por isso repetiam sempre os mesmos gestos. O crepúsculo prometia salvar-nos. No fundo, as coisas eram inofensivas. Prosseguíamos o nosso caminho, regressando sempre ao labirinto onde se ocultavam as certezas. As galáxias dos nossos olhos tinham mil sóis. Por isso brilhavam muito e incendiavam as alvoradas. Toda a gente atravessava a rua à procura de sonhos e de símbolos. E os poetas não amavam. Apenas eram lúcidos. Parecia que tudo era igual. As pessoas eram automáticas e queixavam-se da inutilidade dos dias. Agora as imagens sobrepõem-se e assombram o vazio e esperam em silêncio. São como aquelas pessoas que regressam à sua solidão e choram dentro dos seus sonhos de pedra. Antes das luzes se apagarem, espero que me segredes o assombro da próxima madrugada. Se ainda for possível.