A exuberância do olhar
Curiosamente o meu melhor amigo de infância foi uma menina. Uma menina que gostava muito de olhar o céu deitada na relva junto ao rio. Gostava também de ouvir cantar os grilos nos lameiros, de correr atrás da sua sombra, de sorrir quando olhava para mim. E sorria com tanta calma e beleza que ainda hoje a sua recordação me acalma o espírito e me enche de doçura.
É, afinal, a única doçura que tolero.
Foi ela quem desencadeou a minha paixão pela banda desenhada. Tinha eu dez anos quando me emprestou um álbum do Astérix em encadernação cartonada e encapado com papel vegetal grosso e ligeiramente gorduroso.
Era esta menina filha de um casal amigo lá de casa. Tinha quatro irmãos e vivia na companhia feliz de uma avó amorosa e de um cão. Cheirava sempre a flores silvestres e tinha uns olhos doces como o mel. Possuía uma voz tão bem timbrada como uma viola acústica de doze cordas. Cantava muito bem e enchia o seu cão de festas. Carícias que seriam melhor aplicadas no seu amigo ciumento. Mas ela nunca misturava sentimentos. Nem regras. E, sobretudo, não era dada a bajulices.
Respirava sempre de uma maneira delicada. Andava de uma maneira delicada. Comia de uma maneira delicada. Falava de uma maneira delicada. E chorava de uma maneira delicada.
Gostava muito de desenhar linhas ténues na superfície lisa do rio enquanto olhava para mim e sorria como se não existisse maldade. Por vezes cantava em surdina canções que ela própria inventava.
Acho que nunca brinquei com ela. Só a seguia.
Por vezes dava-me a mão e corria como um suspiro a esconder-se no ar. E é aí onde hoje mora.