Beleza demagógica
– Que lindo pôr-do-sol! Vou buscar a máquina e fotografá-lo. Gosto de ver o sol a pôr-se por entre as cores fortes do anoitecer. Não te seduz esta beleza?
– …
– Não é belo?
– …
– Não é lindo de morrer?
– Não. Não é.
– Achas que não é belo o pôr-do-sol?
– Considero que é apenas uma beleza estúpida.
– E porquê?
– Porque é excessiva. Porque é frequente, corriqueira, banal. Porque é apriorística, rotineira. Não tem subtileza nenhuma. Não é uma beleza trabalhada. É uma beleza que acontece, uma beleza frequente, normal, lógica, redundante.
– A beleza do pôr-do-sol sugere-me Deus.
– O pôr-do-sol Deus! Essa é boa. Se fosse o nascer do sol ainda se percebia. Tinha a sua lógica divina. O pôr-do-sol é como a sua própria antítese.
– Achas que o pôr-do-sol é a antítese de Deus?
– Eu não acho nada. Limito-me a raciocinar segundo os teus cânones. A mim tanto se me faz. Nem o pôr-do-sol é belo, nem Deus existe. É tudo uma ilusão.
– Não te entendo. Cada vez te entendo menos.
– Olha, eu também. Cada vez me entendo menos.
– Mesmo contra a tua opinião, vou fotografá-lo. Acho-o deslumbrante. O pôr-do-sol põe-me eufórica. Sinto-me plena de infinito.
– Balelas! Tu limitas-te a ser demagógica. No fundo, o pôr-do-sol é uma beleza demagógica. É uma beleza que se repete, que enfastia como um bolo demasiado doce, como um beijo demasiado prolongado, como uma cópula contemplativa.
– És estranho! Deves fazer muito esforço para conseguires dizer que não gostas do pôr-do-sol. É impossível não se gostar do pôr-do-sol. É impossível não se ser sensível à sua beleza cromática. És um casmurro.
– Sim, eu sou isso tudo e mais alguma coisa. Sou a tua coisa. O teu factor estranho. A tua sombra cinética. A tua desilusão metafórica. Sou o teu “incomplemento”. Mas, apesar disso, e da tua máquina fotográfica, não gosto do pôr-do-sol. Nem da sua ilusão. Não é a contemplação que faz a beleza, é a tensão, é o rasgo simbólico, a atitude, o desequilíbrio. Sim, a beleza é desequilíbrio sensorial. É fractura, apelo, tensão...
– Clic… já está!