O descanso
Deixem-me descansar em paz.
Agora tudo me apoquenta. São os anos, as varizes, as artroses, a tensão alta, o colesterol, a diabetes, a ulcera, os dentes, os pulmões, o coração, a vista e tudo e tudo e tudo.
Agora canso-me por tudo e por nada. Estou perto do fim.
É a vida!
Todos os anos venho aqui visitar os meus antepassados, pôr-lhes flores nas campas, conversar um bocadinho com cada um. E tenho aqui muito com quem conversar. Quase todos os que me eram próximos já para aqui estão em silêncio, à minha espera. Mas eu teimo em ficar mais um pouco. Por isso ainda agora mesmo me sentei nas escadas deste jazigo. É túmulo de rico, mas de certeza que não se importa que uma pobre de Cristo se sente nas suas escadas.
Preciso de descansar. Eu canso-me muito. É do coração. E dos pulmões e tudo e tudo e tudo. As pernas já não me ajudam. Também se cansam, as coitadas. Elas já andaram muito, verdade se diga. É que antigamente tudo andava a pé, não é como nos dias de hoje em que anda tudo de carro. Agora só não vão de “popó” para o café porque não cabem na porta. Mas com o tempo lá chegarão.
Os que andam de carro também se cansam. Cansam-se de andar de carro e cansam-se quando se sentam e quando se levantam e quando dão dois passos.
Também, pudera, não fazem nenhum exercício físico e depois é aquilo que se vê: todos sofrem das doenças da fartura.
No meu tempo era tudo mais elegante. Lembro-me que quando andava na escola éramos todos como espetos, delgadinhos e com olhos e orelhas de rato. Havia muita fome e pouca fartura. O que antigamente escasseava, hoje sobra. Mas a vida continua complicada como sempre.
É curiosa a vida!
Antigamente sonhava-se com comida. E roupa. Todos queriam ser rechonchudos, pois a magreza era sinal evidente de pobreza, bem assim como os remendos na roupa.
Hoje não. Hoje tudo quer ser magro e andar com as calças todas rotas e coçadas e com blusas tão curtas que se lhes vê quase tudo o que não é para ver.
São curiosas as pessoas!
Quando têm a possibilidade de serem rechonchudinhas e andarem bem vestidas, preferem fazer dieta até ficarem doentes e trajarem roupa de mendigos, ou de parvos.
São curiosas as pessoas!
E agora desculpem-me mas tenho de os deixar e ir falar ali com os meus. Faço-o sempre primeiro com o meu marido, que em paz descanse. Depois vou visitar os meus pais e algum dos meus irmãos e tias e primos e alguns meus amigos e colegas.
Os que me enchem o pensamento já quase todos aqui repousam.
É este o meu território de memória.