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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

21
Jan07

Parábola do regaço da Isabel

João Madureira

 

 

– O que trazes no regaço, Isabel?

– São pimentos, João.

 

– O que trazes no regaço, Isabel?

– São tomates, João.

 

– O que trazes no regaço, Isabel?

– São cebolas, João.

 

– O que trazes no regaço, Isabel?

– São batatas, João.

 

– O que trazes no regaço, Isabel?

– São cenouras, João.

 

– O que trazes no regaço, Isabel?

– São feijões, João.

 

– O que trazes no regaço, Isabel?

– São ervilhas, João.

– Então mostra lá.

– Porquê, João?

– Porque sim.

 

Entretanto o chão enche-se de lindas pétalas azuis caídas do avental da Isabel. A Isabel começa a chorar. O João monta no seu cavalo alado e desaparece no nevoeiro.

 

20
Jan07

A força

João Madureira

 

 

Um olhar tem muita força: a força da verdade.

E a verdade tem muita força.

Por seu lado a força tem muita potência.

A força tem muito a ver connosco. Tem muito a ver com a vida. Tem muito a ver com tudo.

Sem força não era possível pensar, por exemplo. Ou andar. Ou amar. Ou rir. Sem força nada era possível.

A força, mesmo usada em pequenas doses, pode mudar o mundo dos outros. E até o nosso.

A força exercida no momento certo pode fazer com que uma vida se crie ou se destrua. Por isso o grande problema não está na força, propriamente dita, mas sim na sua aplicação.

Utilizar a força com talento não é tarefa fácil. Depende da energia que se coloca na intenção.

A intenção é já, em si mesma, uma força. Uma força bestial.

Quando usamos a força com agilidade podemos conseguir milagres.

Claro que o critério pode fazer com que a força se expanda ou se retraia.

Há vários tipos de força, umas delas é a centrípeta e a outra é a centrífuga.

Mas também existem forças ascendentes e descendentes, forças vivas e forças estranhas, forças relativas e absolutas, forças convergentes e divergentes.

Até existem forças ocultas.

Estas são mais de carácter esotérico, o que, em si mesmo, nada quer significar a não ser que são estranhas e pouco dadas à racionalidade.

Fora isso, até são um género de forças que fazem com que nos elevemos ao patamar da subtileza. E olhem que a subtileza só se consegue adquirir utilizando a força como se ela não existisse.

A subtileza é uma força ao contrário. Uma força que se combate a si própria. Mas que batalha quase sem darmos por isso. É a modos que uma força imperceptível que se desloca sem nos apercebermos.

Ou melhor, a subtileza não se desloca, desliza utilizando uma força que, em, si própria, se exerce de dentro para fora e de fora para dentro. Isto tudo ao mesmo tempo. É a força quântica.

Existe ainda a força dos desejos que, a acreditarmos nos livros da especialidade, é a que os homens mais procuram para serem felizes.

Só que, ao contrário da força do desejo, a força da felicidade não existe. Só existe a força de querer ser feliz.

 

19
Jan07

O préstito dos homens

João Madureira

 

 

Lá vai a procissão. Lá vão os homens atrás de Deus. E Deus cada vez lhes foge mais. Mas eles, os homens, não desistem. São teimosos, os homens. Mas Deus sempre foge um pouco mais quando eles pensam que se estão a aproximar. Por isso lá vão eles, em procissão, a segui-lo. Sempre em procissão. Milhões de homens atrás de Deus. Sempre atrás dele. Sempre em procissão. Devotos, os homens, continuam. E insistem na procura. Por isso vão em procissão. Uns atrás dos outros. E todos atrás de Deus. E Deus a fugir-lhes. Sempre à sua frente. Sempre a fugir-lhes. E eles sempre em procissão. Uns atrás dos outros. E todos atrás de Deus. E Deus que lhes foge. E a procissão lá continua contínua no seu lento caminhar, na sua crença, na sua fé de avançar atrás de Deus. Todos atrás de Deus. Os homens atrás de Deus, em procissão. Sempre atrás de Deus, sempre em procissão. E Deus a fugir-lhes. Sempre um pouco mais além. Sempre mais além. E os homens incessantemente atrás dele, em procissão, no seu lento caminhar, sempre a rezar e a caminhar, a rezar lentamente e a caminhar. Sempre em procissão, atrás dele. E ele sempre a fugir-lhes. Sempre um pouco mais à frente. Sempre além. Sempre mais além.

18
Jan07

O inevitável voo das narcejas

João Madureira

Tudo ao monte e fé na beleza.

E eu queria ter fé, nem que fosse na incerteza.

Existe subtileza no voar das narcejas.

 

Tudo ao monte, pois eu sou a tua fonte.

No monte dos vendavais fugiram os pardais.

Ao longe, as narcejas continuam a voar sem parar.

 

De encontro à morte vai o mais forte.

E essa é a sua única sorte, a morte.

Voando ao desbarato, as narcejas desmultiplicam-se em penas.

 

Se existe algo que sobreviva, esse algo é o monte.

E depois do monte, a fonte.

E as narcejas sobem e descem rasgando o ar.

 

Saltando de fraga em fraga, um lobo velho caça.

As urzes dilatam as suas cores e os seus odores.

Entretanto as narcejas chilreiam de entusiasmo.

 

Deitado numa cova da encosta, eu, o lobo, bocejo.

Uma cobra ondula pelo meio das carquejas.

E uma narceja, louca de entusiasmo, pousa ao pé de mim.

 

Um coelho sai da toca e a Alice segue-lhe os passos.

Pudesse eu comer personagens de histórias e acabava mesmo ali o País das Maravilhas.

Outra narceja, presumivelmente enamorada, repenica o canto.

 

Eu uivo forte, como lobo mau que sou.

Mas o monte não dá acordo, só ressona poeira.

Um par de narcejas levanta voo e desaparece no azul.

 

Dizem-me que a Alice já não mora aqui, que se divorciou.

Os tempos estão a mudar, e eu com eles.

A narceja que enlouqueceu de entusiasmo caiu a meus pés.

 

O eco do tiro que a matou ainda ressoa pelo sopé do monte: pum… um… um… um…

 

17
Jan07

O portão que importa

João Madureira

 

Tu és o meu portão da glória.

Eu sou apenas uma porta em branco.

Tu és o meu portão voluptuoso.

Eu sou apenas uma porta lisa e metafísica.

 

Cada vez sou mais aquela porta encolhida que já ninguém se entusiasma em abrir ou franquear.

Para aqui estou em silêncio prolongado observando a luz do poente.

 

Cada vez sou mais a porta que não importa.

 

Cada vez me fecho mais por dentro enquanto as dobradiças gemem no esforço da minha sustentação.

 

16
Jan07

A meditação do castanheiro excêntrico

João Madureira

 

 

Cai-me o céu nos braços. Nestes braços que se abrem à luz magnífica do sol, ao voo dos pássaros irresolutos, ao azul transparente do delírio.

Quanto mais vivo mais me apetece viver. Por isso multiplico os ramos. Por isso engrosso as raízes. Por isso rebento em cada Primavera na confusão verde dos gomos adventícios. E sou folhas. E sou verde e sou sombra e paz e símbolo. E falo com os gnomos. E com os bichos do monte. E com as abelhas esotéricas. E com os grilos cantantes. E com as bruxas que voam em vassouras de giestas. E com as fadas ninfomaníacas. E com os touros. E com os burros. E com os porcos. E com os cães.

Só não gosto dos homens, da sua cobiça, do seu sentido de missão, da sua religiosidade sacrificial. Da sua domesticidade imbecil.

Os homens comem-me os frutos mas primeiro tudo faço para que se piquem nos ouriços.

Gosto mais de alimentar os porcos, pelo menos esses não falam em dinheiro. Só roncam porque têm fome.

Os porcos têm sempre fome, nisso assemelham-se aos humanos.

Os humanos estão sempre a comer e a falar. A dizer mal uns dos outros, sempre a invejarem-se, sempre a competirem por coisas sem valor nenhum, como o dinheiro, ou o ouro. É curioso que eles adoram o ouro e buscam-no por toda a parte mas não conseguem comê-lo. Só o transportam ao peito ou ostentam-no nos dedos. Alguns fazem mesmo dentes com ele, mas não o comem, só o exibem. Outros escondem-no em cofres e só olham para ele à noite, com medo que lho roubem.

Mas o que eu mais gosto é de ver nascer o sol todos os dias. Todos os dias. Todos os dias.

Gosto de ver nascer o sol todos os dias. De ver nascer o sol. O sol.

Todos os dias o sol.Todos os dias.

Todos os dias do mundo, o sol a cair-me nos braços

 

15
Jan07

Plang, plong, pling, pleng…

João Madureira

 

Plang, plang, plang, plang, plang, plang, plang, plang, plang, plang, plang, plang, plang, pleng, pleng, pleng, pleng, pleng, pleng, pleng, pleng, pleng, pleng, pleng, pleng, pleng, ping, peng, pang, pong, ping, pang, pong, ping, pang, pong, pung, ping, pang, plang, plong, plang, plong, plang, plong, pling pleng, plang, plong, plang, plong, pling, plung, plung, plung, plung, plung, plung, plung, plung, plung, plung, plung, plung, plung, plang, plong, plang, plong, plang, plong, pling, pleng, plang, plong, plang, plong, pling , peng, pang, pong, pang, pong, ping, peng, pang, pong, pang, pong, ping, peng, pang, pong, pang, pong, ping, peng, pang, pong, pang, pong, ping…

14
Jan07

A árvore inquieta

João Madureira

 

Sinto-me como um leão enjaulado. Dou voltas e voltas e não me consigo lembrar da última vez que saí contigo. Agora só leio e escrevo. E dou voltas. De vez em quando espreito lá para fora mas só vejo uma pequena árvore que nunca sai do sítio, tal como eu. Sinto-me como uma árvore que está lá fora à espera de entrar no quarto e escrever. Cada vez procuro mais ser como uma árvore que espera apanhar sol e escrever com as suas raízes poemas essenciais. Não consigo ter paz, só inquietação. Uma inquietação que mata. A vida é inquietação. E por mais voltas que dê, a conclusão é sempre a mesma. Por isso escrevo em busca da resposta para o sentido da vida. Mas a vida tem essa disposição inquietante para se transformar num labirinto concêntrico onde nos perdemos de cada vez que tentamos encontrar-nos. E em cada encontro nos separamos para mais tarde nos encontramos e depois nos tornarmos a perder e de seguida nos tornarmos a encontrar. Sempre em círculos concêntricos, sempre às voltas, sempre em busca de respostas, sempre à procura de um sentido para a vida.

13
Jan07

A exuberância do olhar

João Madureira

 

Curiosamente o meu melhor amigo de infância foi uma menina. Uma menina que gostava muito de olhar o céu deitada na relva junto ao rio. Gostava também de ouvir cantar os grilos nos lameiros, de correr atrás da sua sombra, de sorrir quando olhava para mim. E sorria com tanta calma e beleza que ainda hoje a sua recordação me acalma o espírito e me enche de doçura.

É, afinal, a única doçura que tolero.

Foi ela quem desencadeou a minha paixão pela banda desenhada. Tinha eu dez anos quando me emprestou um álbum do Astérix em encadernação cartonada e encapado com papel vegetal grosso e ligeiramente gorduroso.

Era esta menina filha de um casal amigo lá de casa. Tinha quatro irmãos e vivia na companhia feliz de uma avó amorosa e de um cão. Cheirava sempre a flores silvestres e tinha uns olhos doces como o mel. Possuía uma voz tão bem timbrada como uma viola acústica de doze cordas. Cantava muito bem e enchia o seu cão de festas. Carícias que seriam melhor aplicadas no seu amigo ciumento. Mas ela nunca misturava sentimentos. Nem regras. E, sobretudo, não era dada a bajulices.

Respirava sempre de uma maneira delicada. Andava de uma maneira delicada. Comia de uma maneira delicada. Falava de uma maneira delicada. E chorava de uma maneira delicada.

Gostava muito de desenhar linhas ténues na superfície lisa do rio enquanto olhava para mim e sorria como se não existisse maldade. Por vezes cantava em surdina canções que ela própria inventava.

Acho que nunca brinquei com ela. Só a seguia.

Por vezes dava-me a mão e corria como um suspiro a esconder-se no ar. E é aí onde hoje mora.

 

12
Jan07

O esplendor da inutilidade

João Madureira

 

Sou um homem feliz. Sou um homem feliz e realizado. Estou extraordinariamente satisfeito com esta sociedade da globalização. Estou desempregado. Sou pobre e, por isso mesmo, famoso. E admirado. As pessoas de hoje encontram imensa piada aos necessitados. Consideram-nos cidadãos exemplares, pessoas íntegras, desprendidas e honestas. Celebram a nossa inteira disponibilidade para sorrir. Congratulam-se com o nosso talento para dormir ao relento. Rejubilam com a nossa incapacidade premeditada em cumprir horários. Somos pobres – os pobres –, mas honrados. E livres. Nós, os pobres, somos livres. E, em si mesma, a liberdade é uma riqueza incomparável. O mesmo se pode dizer da pobreza de espírito. Abençoados os pobres de espírito pois é deles o reino dos céus.

Só um desempregado é inteiramente livre. Não tem que trabalhar, nem sequer fazer que trabalha. Não tem que ser útil. Não tem que ser escravo da obrigação, nem mesmo servo desta sociedade mediatizada, autofágica, aerofágica e formal.

Existe actualmente um sentido libertador nos militantes da inutilidade.

Os úteis são muito úteis para a inutilidade, mas completamente inúteis para a utilidade. E o contrário, estamos em crer, também é verdadeiro.

Os úteis olham para nós com muita inveja. E os intelectuais têm por nós uma admiração sincera. E os políticos também – honra lhes seja feita. No fundo, penso que se identificam espiritualmente connosco, que partilham dos mesmos sólidos valores. Tal como nós, eles sentem-se verdadeiramente úteis na sua inutilidade funcional. São, tal como nós, uns refinados idealistas, cidadãos que apreciam a beleza da paz de espírito, do desprendimento, da introspecção, da subjectividade de princípios. E fins. Porque, bem vistas as coisas, um princípio já e um fim em si mesmo.

E o mundo é um lugar tão belo! E a vida é um valor tão absolutamente absoluto!

Agora sou livre porque não tenho que ser escravo das convenções sociais. Só cumprimento quem quero, só falo com quem me apetece, só me relaciono com quem escolho. Sou um cidadão liberto da hipocrisia. Não vivo dependente da etiqueta social, das relações obrigatórias, das mistificações religiosas, ou, até, ideológicas.

Presentemente já só me preocupo com realidades essenciais, tais como dormir num banco com vista para um canteiro de amores-perfeitos, acordar num lugar virado a nascente para desfrutar do nascer do dia, ou ser retratado por um fotógrafo amador. Em todos os sentidos.

 

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