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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

08
Fev07

A nave de pedra

João Madureira

 

 

 

A nave de pedra não navega, desliza. Desliza no tempo, no seu tempo de história imensa. Na consumação dos séculos.

Contempla o rio, o vale e o céu sempre iguais e sempre diferentes.

As pessoas olham para ela e admiram-na. Ela apenas lhes devota indiferença.

 

Homens vão e vêm, chegam e partem, nascem e morrem, mas o céu é perfeito. Eu sou do céu onde me farto de azul.

Eu não gosto dos homens, gosto do vento, do vento que acaricia todas as noites as pedras que me constituem.

O vento é meu amigo, faz-me cócegas.

 

Eu sonho ainda que alguém irá cantar ópera nas minhas ameias. Lembrando batalhas, heróis e bruxas. Homenageando cavalos alados ou reis magos ou princesas encantadas.

Sou um castelo de granito cheio de ilusões. Adorava ouvir de novo o ribombar dos canhões, o tilintar das armas, os gritos dos guerreiros, assistir às batalhas.

 

Como devem perceber, um castelo não gosta de paz. Não foi feito para a paz. Um castelo é guerra. Guerra de homens e não de máquinas.

 

Sinto que gostava de ser útil. Útil de novo, não monumento inválido e reformado, uma inutilidade prática, um símbolo obtuso.

Abomino a simbologia.

 

07
Fev07

O desenho das horas

João Madureira

 

Por favor, desenha-me as horas. As tuas horas. As minhas horas. As horas. Todas as horas.

Desenha-me as horas, por favor!

Desenha-me as horas que levo a chegar até ti. As horas que te não tenho. As horas de espera. As horas de tédio, as horas de riso, as horas de desespero.

Desenha-me o desespero das horas, das horas dos outros que também chegam, que também partem e também esperam. E desesperam.

Desenha-me as horas do início do Mundo. As horas da Criação. As horas de tudo e as horas de nada.

Desenha-me o tempo antes das horas e as horas antes do tempo e as horas depois das horas.

Desenha-me, por favor, o infinito das horas infinitas. As horas da tua vida, do teu tempo. As horas das horas das horas.

Desenha-me as horas frias, as horas arrefecidas pelo gelo e pela neve, as horas molhadas de chuva, de nevoeiro ou de orvalho.

Desenha-me as tuas horas nas minhas horas. Desenha-me as horas todas. Todas as horas.

Desenha-me a passagem das horas, a sua lenta passagem quando cruzam os montes.

Desenha-me a seguir a pressa das horas quando nos amamos.

Desenha-me o passar das horas sobre o teu corpo e sobre o meu. O inexorável passar das horas sobre os nossos corpos.

Por favor, desenha-me as horas livres, as horas de liberdade, as horas libertas, as horas libertadas. As horas todas em que te não vejo.

Desenha-me as horas amargas, as horas de tédio, as horas do crepúsculo. As horas da morte e as horas da vida.

Desenha-me todas as horas do Mundo, o mundo das tuas horas, as horas todas.

Desenha-me as horas, por favor.

 

06
Fev07

O ângulo de Deus

João Madureira

 

 

Depois das janelas, a luz, a tua luz combustível, os teus frémitos animais.

 

Depois da luz, o desejo. O meu desejo, que é igualmente teu.

 

Depois das mulheres, os homens. E depois dos homens, Deus.

 

As mulheres.

Os homens.

Deus.

 

O Deus dos homens. E das mulheres.

 

Mas é especialmente a luz o que se incendeia nos vidros espelhados das janelas. Das tuas janelas. Dos teus olhos.

 

São os olhares vulcões activos quando encantados de ânsia.

 

Tens o desejo dos vulcões prontos a ficarem eruptivos.

 

Sinto que me acendes quando Deus passeia pela brisa da tarde.

 

Também as sombras me sugerem a tua luz, lá rente ao chão, onde as lagartixas se aquecem.

 

As folhas caídas incendeiam-se de aspectos quando estão quase a desaparecer.

 

Tenho os nervos das folhas impressos na pele. Essas folhas agitadas pelo vento nostálgico de Outono.

 

Tenho os nervos fixos na água das lágrimas frescas do orvalho quando os teus olhos se expressam na sinuosidade dos filamentos.

 

Quando o dia principia a descansar nas janelas da casa grande, desço as escadas e vou de encontro ao teu ângulo incendiado.

 

05
Fev07

Plang, ping, plong, pung, plang, peng, plong, pang, plang…

João Madureira

 

 

Plang, plong, plang, plong, plang, plong, pling, pleng, plang, plong, plang, plong, pling, pang, pong, plong, plang, plong, pling, pang, pong, pang, pong, ping, plang, plong, plang, plong, plang, peng, pang, pong, pang, pong, ping peng, pang, pong, ping, pang, pong, ping, pang, pong, plang, plong, plang, plong, plang, pung, ping, pang, pang, pong, ping, plang, plong, plang, plong, plang, peng, pang, pong, pang, pong, ping, plang, plong, plang, plong, plang,  peng, pang, pong, ping, pang, pong, plang, plong, plang, plong, plang,  ping, pang, pong, pung, ping, pang, pong, ping, pang, pong, pung, plung, plung, plang, plong, plang, plong, plang, plung, plung, plung, plung, plung, plang, plong, plang, plong, plang, plung, plung, plung, plung, plung, plung, plong, plang, plong, pling, pang, pong, pang, plang, plong, plang, plong, plang, pong, ping peng, pang, pong, pang, pong, plang, plong, plang, plong, plang, ping, peng, pang, pong, ping, pang, pong, ping, pang, pong, pung, ping, pang…

04
Fev07

A epifania das pedras duvidosas

João Madureira

 

 

Olho para as pedras e tenho dúvidas. Dúvidas existenciais. Tenho dúvidas, muitas dúvidas, sobretudo dúvidas existenciais. E outras. Ou outras? Sobretudo dúvidas. Muitas dúvidas.

Cada paralelo um dúvida. Ou mais que uma. Talvez duas. Talvez três. Ou quatro… dúvidas. Sim, dúvidas. Dúvidas existenciais e outras. Ou outras. Quantas dúvidas tenho!? Dúvidas existenciais.

Olho para as pedras e tenho dúvidas. As tuas e as minhas. Dúvidas, muitas dúvidas. E muito existenciais.

Eu tenho dúvidas. E muitas.

Tenho dúvidas sobre o rigor das pedras, ou sobre o seu alinhamento. Dúvidas sobre o alinhamento, sobretudo das pedras. Ou sobre o rigor das dúvidas.

Uma boa dúvida requer rigor, muito rigor.

Tenho dúvidas sobre o alinhamento, sobretudo sobre o alinhamento das pedras. E também tenho dúvidas sobre as pedras. Sobre o seu rigor. Sobre as suas rigorosas dúvidas.

Tenho ainda dúvidas sobre as dúvidas, ou sobre o seu alinhamento, ou, até, sobre o rigor das dúvidas das pedras duvidosas. Isto partindo do princípio de que as pedras têm dúvidas, do que eu duvido.

Por isso olho para as pedras e duvido da minha dúvida com a certeza que ainda duvidarei mais da existência.

 

03
Fev07

Tenra é a noite

João Madureira

 

 

Terna é a noite quando a luz se desfaz de encontro à tua idiotice. Ou à minha, tanto faz. A tua idiotice, ou a minha, já que tanto faz, de encontro à noite é tão terna como a luz, já que a luz é inversamente proporcional à escuridão. Ora tudo que é inversamente proporcional à idiotice é luz. E sendo luz reluz como a noite no hemisfério norte. E antes tal norte que tamanha sorte. Só que a sorte é aziaga. Exceptuando a noite polar que não é noite mas sombra lunar. É por isso que adoro a noite porque gosto de coisas ternas. A tua terna noite ou a tua tenra carne?

Ser ou não ser, eis a ambição terna, porque a noite é tenra.

 

02
Fev07

Há dias assim

João Madureira

 

 

Há dias assim. Há árvores de pé. Há folhas que caem, mulheres que choram, homens que conduzem, cães que ladram, formigas que trabalham, nuvens que voam de encontro às montanhas, olhos que se abrem e fecham com regularidade, bocas que falam, lábios que beijam, pés que andam, rios que correm para o mar, peixes que nadam sem pensarem ser pescados, ondas que vão e vêm, vento que sopra, ervas que crescem, dedos que apontam, gemidos que se expandem, tiros que matam, reuniões inconclusivas, jantares de solidariedade para com os esfomeados, florestas que ardem, homens que sonham, mulheres que sofrem, músicos que tocam fora de horas, horas que se lamentam fora dos relógios, relógios que se fartam de medir o tempo. E também há crianças que sorriem e outras que choram, operários no desemprego, fábricas cheias de carros, carros cheios de gente, gente farta da outra gente e pneus cheios de ar. E ainda há o ar gasto dos doentes, o sopro esforçado dos deuses, os legumes viçosos e muito saborosos mas impregnados de partículas químicas prejudiciais à saúde, pessoas que lêem até enlouquecer, pessoas que fazem que lêem até ficarem cheias de ideias feitas, cavalos de corrida que descansam nos estábulos, mendigos que se esforçam por desenvolver as suas boas práticas e assim atingirem a excelência para poderem progredir na carreira, polícias que se fartam de passear. E depois ainda há a lenta viagem dos buracos negros em direcção ao absurdo da matéria, macacos a aprender a ser gente, gente a aprender a imitar e a amar os macacos e os cães e os gatos e as espécies em vias de extinção, tais como as baleias, o lince da Malcata e os homens honestos e as cegonhas de bico preto e asas brancas e de patas altas e de asas com dois metros de comprimento por um de largura, ou coisa que o valha. E também existem pessoas que se manifestam pela igualdade de oportunidades e a favor do aborto e contra o aborto e contra a pena de morte e contra a morte da pena e contra a pena propriamente dita e contra o governo e contra a oposição e contra a co-incineração no Outão ou em qualquer outro sítio e contra a fome de uns e contra a fartura de outros e contra o Ocidente e contra a América e contra o negócio de papagaios loiros de bico amarelo e asas azuis que falam muito e depressa e contra as pegas que escrevem devagar discursos políticos e contra os políticos que escrevem sempre as mesmas idiotices nos jornais e contra os directores de jornais que não escrevem aquilo que os leitores querem e contra os que são contra os que se manifestam contra tudo e contra nada.

Há dias assim, que são contra. Mas também há dias assado e que são a favor. Hoje o dia é assim, contra, muito contra. Amanhã poderá ser a favor, por isso assado. Ou asado. Ou azarado. Ou talvez não. Ainda não sabemos. E essa é a maravilha a que chamamos futuro.

 

01
Fev07

Beleza demagógica

João Madureira

– Que lindo pôr-do-sol! Vou buscar a máquina e fotografá-lo. Gosto de ver o sol a pôr-se por entre as cores fortes do anoitecer. Não te seduz esta beleza?

– …

– Não é belo?

– …

– Não é lindo de morrer?

– Não. Não é.

– Achas que não é belo o pôr-do-sol?

– Considero que é apenas uma beleza estúpida.

– E porquê?

– Porque é excessiva. Porque é frequente, corriqueira, banal. Porque é apriorística, rotineira. Não tem subtileza nenhuma. Não é uma beleza trabalhada. É uma beleza que acontece, uma beleza frequente, normal, lógica, redundante.

– A beleza do pôr-do-sol sugere-me Deus.

– O pôr-do-sol Deus! Essa é boa. Se fosse o nascer do sol ainda se percebia. Tinha a sua lógica divina. O pôr-do-sol é como a sua própria antítese.

– Achas que o pôr-do-sol é a antítese de Deus?

– Eu não acho nada. Limito-me a raciocinar segundo os teus cânones. A mim tanto se me faz. Nem o pôr-do-sol é belo, nem Deus existe. É tudo uma ilusão.

– Não te entendo. Cada vez te entendo menos.

– Olha, eu também. Cada vez me entendo menos.

– Mesmo contra a tua opinião, vou fotografá-lo. Acho-o deslumbrante. O pôr-do-sol põe-me eufórica. Sinto-me plena de infinito.

– Balelas! Tu limitas-te a ser demagógica. No fundo, o pôr-do-sol é uma beleza demagógica. É uma beleza que se repete, que enfastia como um bolo demasiado doce, como um beijo demasiado prolongado, como uma cópula contemplativa.

– És estranho! Deves fazer muito esforço para conseguires dizer que não gostas do pôr-do-sol. É impossível não se gostar do pôr-do-sol. É impossível não se ser sensível à sua beleza cromática. És um casmurro.

– Sim, eu sou isso tudo e mais alguma coisa. Sou a tua coisa. O teu factor estranho. A tua sombra cinética. A tua desilusão metafórica. Sou o teu “incomplemento”. Mas, apesar disso, e da tua máquina fotográfica, não gosto do pôr-do-sol. Nem da sua ilusão. Não é a contemplação que faz a beleza, é a tensão, é o rasgo simbólico, a atitude, o desequilíbrio. Sim, a beleza é desequilíbrio sensorial. É fractura, apelo, tensão...

– Clic… já está!

 

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