Longas são as manhãs que alimentam as paisagens. Eis que quase tudo muda de lugar. Gostava de ser o espaço onde as canções de embalar dormissem a sua imortalidade fingida. A luz encurva nos teus olhos claros raiados de esperança. É preciso esperar pela alegria. Escrevo pensando em belíssimas ondas de desejo, em corpos regenerados pela memória. Escrevo escutando o barulho da noite revelada pela ironia das estrelas. O quente silêncio das tuas mãos enche a minha pele de abismos. A tua carne está iluminada de frutos. Estimaria pensar nos teus movimentos de fogo para vagarosamente os inspirar. O sossego dos teus beijos é a minha inspiração oculta. Eu queria saber da luz dos campos onde nos amámos. Da sua intensa necessidade de queimar. O tempo tudo destrói com o seu devir eterno. As imagens perfeitas espelham obsessões. Por isso te falo da velocidade do amor, do seu inquieto princípio, da sua truculência, da sua dissipação furiosa, dos seus campos magnéticos extraordinários. Toco a tua alma com uma mão sôfrega de tudo. Sinto a tua nudez a arder no tempo, o ritmo sobressaltado dos sentidos, a tua boca a exaltar a fúria do desejo. Sinto-me como um deus esmagado pela iluminação dos corpos. És a minha religião. Junto ao teu peito adormeço em paz. Pela consagração da noite erguerei a glória árdua da vida. Começa o tempo a unir as nuvens florescentes. Cantam de novo as nossas mãos de água. Cerco a minha tristeza de lágrimas vagarosas. Abrigo docemente a paixão.
10 – Quando chegaram à aldeia, estacionaram o carro junto da igreja e deslocaram-se a pé às instalações do edifício escolar. Cá fora, as mulheres rezavam e os mais jovens tinham transformado o recreio da escola numa festa de Entrudo. Dentro da sala, uma meia dúzia de homens gritavam impropérios e faziam juras de morte ao comunismo e à Rússia, terra que a Nossa Senhora de Fátima havia de converter para a salvação do mundo.
Os camaradas esclarecedores, quase todos docentes, continuavam na sua teima em falar dos amanhãs que tinham de cantar também em Portugal, tal e qual os galos que os camaradas camponeses possuíam nos seus galinheiros. Bastava de especuladores e intermediários gananciosos, de parasitas que viviam à custa do povo humilde e laborioso. O Partido, liderado pelo camarada Punhal, era o guia redentor, o farol revolucionário, a chama ardente da vontade dos proletários de todo o mundo, que em aliança sagrada com os camponeses, tinha de triunfar, custasse o que custasse.
Cá fora as mulheres, juntas a um canto, continuavam a rezar monocordicamente muitas ave-marias e pais-nossos. Os rapazes, na sua estupidez crua e profana, faziam rebentar bombas de carnaval e lançavam bichas-de-rabear para debaixo das saias das raparigas. Elas, tontas de lascívia, sorriam e davam gritinhos histéricos. Lá dentro os homens maduros gritavam alto: “Morte ao comunismo, Punhal para a Sibéria”. Os camaradas esclarecedores teimavam na sua ladainha revolucionária. O camarada da aldeia era o único que ouvia com atenção a arenga retirada, palavra a palavra, com vírgulas e tudo, do editorial da “Verdade”. Os maneirismos de linguagem eram uma imitação barata e triste da musicalidade do discurso do camarada de cristal.
Dentro da sala, o ambiente estava a tornar-se pesado. Os camponeses olhavam para as meninas comunistas com ar de quem não se importava mesmo nada de abocanhar mulheres tão tenras e fáceis. No fundo, o comunismo era isso mesmo, igualdade, fraternidade… e amor livre.
Os camponeses, com os olhos postos nos seios das meninas camaradas e no traseiro generoso da companheira mais madura, acusavam o Partido de querer-lhes roubar as terras, as casas, os animais e a religião. Ou seja, Deus. E a Nossa Senhora também. E os santos. Substituindo-os por imagens de Lenine, Marx, Engels e Punhal. Isto apesar de Punhal afirmar que detestava o culto da personalidade. Dele não havia fotografias em nenhum centro de trabalho do Partido. O único que circulava era os seus desenhos de prisão, com homens possantes, mulheres de pés descomunais e seios como os pães da padeira de Aljubarrota. Apesar de famintos e paupérrimos, os retratados nos desenhos do líder comunista, eram todos bem constituídos, a irradiar saúde e esperança no povo do qual faziam parte integrante, quase como anjos magnânimos, insensíveis à dor e às necessidades humanas primárias.
“Ai Jesus, vem aí os guerrilheiros!”, gritou aflita a beata mais beata das beatas da aldeia.
“Sem dúvida, a melhor parte do meu corpo são as coxas. Não sei se são trabalhadas ou genéticas, mas são quase comicamente musculadas, o equivalente aos braços do Popeye. Durante anos, fartei-me se der elogiado pelas minhas coxas. Era parado na rua por estranhos. Mas tudo isso mudou com o surgimento dos implantes. Agora, quando as pessoas olham para as minhas pernas, sinto que ficam a pensar por que raio não terei aproveitado para arranjar ao mesmo tempo o rabo. Deve ser assim que se sentem as mulheres com peitos naturalmente bem desenhados – roubadas e furiosas.
Quando andava no liceu, comprei uns sapatos de tacão alto, em parte porque andavam na moda e em parte porque queria parecer mais alto. Não quer dizer que ansiasse por ter mais altura – nunca me passou pela cabeça que uns centímetros a mais resolvessem todos os meus problemas. Era apenas uma questão de curiosidade em saber como é a vista do segundo andar. Os sapatos que comprei eram de camurça encarnada com uma sola bem grossa. Teria ficado menos ridículo se usasse tijolos amarrados aos pés, mas, claro, na altura não percebia isso. Os outros rapazes ficavam bem com aquele tipo de saltos, mas em mim davam um ar de desespero. Usei-os no dia da minha formatura no liceu e estabeleci um pacto comigo mesmo: se conseguisse atravessar o palco e chegar a casa sem cair, aprenderia a aceitar-me como sou e a ser grato por aquilo que tenho. Nas histórias para crianças, este tipo de lições aprendem-se para a vida inteira, mas, no mundo real, necessitam de ser relembradas de vez em quando.
O que nos leva até meados dos anos 90: a minha maior preocupação física não era com a minha altura nem com a cara, mas com o facto de não ter rabo. Havia membros da minha família bastante bem providos nesse departamento, mas o meu rabo era pouco mais que um pêssego mirrado. Já me tinha resignado a usar casacos compridos e camisas por fora das calças quando me deparei com um anúncio que dizia: «Está Farto de Calças Que Não Lhe Assentam Bem?» Não me lembro do nome exacto do produto, mas, no fundo, era um rabo falso almofadado, com umas nádegas sintéticas cosidas ao tecido de umas generosas cuecas. Coloquei-as na minha lista de Natal e recebi-as de presente da minha amigo Jodi, que esperou duas semanas antes de confessar que me tinha oferecido um rabo de mulher.
E assim era. Mas isso não me impediu de o usar. Apesar de ter forma de pêra, o meu rabo artificial tinha um certo charme. Restituía-me a confiança que tinha perdido há anos e servia de desculpa para comprar calças justas e casacos pela cintura. Quando ia até à mercearia ou aos correios, acabava sempre por ser ultrapassado por alguém que julgava estar a seguir outra pessoa: a Miss Janeiro ou um duplo da Palmela Anderson.
O meu rabo mantinha-me quente no Inverno e no início da Primavera, mas, quando chegava o tempo quente, tornava-se um inferno. O problema era o estofo de nylon, que, em conjunto com as altas temperaturas, funcionava como um aquecedor eléctrico, o que fazia desfazer em suor o meu já pequeno rabo. Ficou tão gasto e ossudo que, no início de Junho, parecia uma ranhura de moedas ferrugenta.
Foi divertido enquanto durou, mas percebi que, a menos que fizesse um grande esforço, acabaria por depender de próteses para o resto da minha vida. Depois de um último passeio pelo bairro, guardei o meu rabo num caixa dentro do armário do corredor. E ali ficou, a chamar por mim, como uma sirene, até ter recebido a visita de uma mulher alta e de aspecto triste que comparou o seu rabo, de maneira não muito favorável, a uma frigideira.
– Tenho uma coisa para ti – disse-lhe.
Não tinha intenção de lho dar, mas, depois de o ter experimentado, e de ter visto como a deixava feliz, como poderia não o fazer? Essa mulher ficou em nossa casa durante uma semana e, apesar de ter detestado que se fosse embora, adorei vê-la pelas costas.”
Diário De Um Fumador – David Sedaris – Contraponto
Chegava o frio à velocidade lenta da luz dos campos. A tua imagem atormentada batia no ar minuciosamente. Eras uma linha ríspida multiplicada no vazio.
Também eu fui magnífico. Também eu chorei quando a noite respondia ao toque fino da tua pele.
Eu sei que as luzes e as armas antigas inspiram violência. Eu sei que as palavras matam. Eu sei que os rostos espantados ardem deitados na inocência do amor. Eu sei da brutalidade da paixão e da experiência dos corpos fascinados.
Toda a insinuação pergunta pela ausência das promessas. Prometeste viver para sempre e não cumpriste.
Aqui nesta cripta ouvem-se os gritos dos mortos. O sol negro da ferocidade respira a dor dos bichos fascinados.
Vi o teu corpo ser lançado à terra. Pus então os dedos na imagem do teu rosto. Evaporaste-te nas mãos do vento. Agarrei-me ao silêncio das tuas lágrimas.
Todos os minutos sobressaltados que viveste aconteceram num tempo nu.
Em tantos anos apercebi-me dos teus gritos mudos. Choveu-me a tua morte no coração mudo de raiva. Eu lembro a aguda alegria dos teus beijos. Os teus olhos levantados pela ilusão.
A vida é impotente perante a morte.
Imagino que te debruças sobre o meu rosto de criança e ressuscitas um minuto para me dares um beijo.
Absorve-me a tua falta. Quando penso em ti o silêncio é ainda maior que o mar. Os longos sons da tua ausência atiram-me dardos de dor.
Tu bem sabias. Agora também eu sei: Nascemos para o sono. Nascemos para a morte. Nascemos para a ausência.
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