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31 – Em Montalegre, um GNR tanto trajava a sua farda engomada como, logo de seguida, envergava a roupa de todos os dias. Mas nem tudo o que se escreve, por mais que se queira, espelha a realidade. Ou toda a realidade. E esta é a grande virtude da ficção: o logro, a dissimulação, a alegoria, o disfarce. Por exemplo, para um militar da GNR a roupa de todos os dias era a farda. O trajar à civil é que era raro. Mas, convenhamos, um guarda não podia envergar a farda e trabalhar nos campos. Mas, convenhamos ainda mais um pouco, um guarda não podia sustentar a família apenas com o magro salário de funcionário do Estado. Por isso tinha de representar o seu papel de agente da autoridade e, ao mesmo tempo, desempenhar o mester de lavrador, que era onde residia a sua verdadeira educação. Todos os guardas, antes de o serem, tinham aprendido a nobre arte de semear as batatas e o centeio, de redrar as vinhas, de roçar o mato, de podar as árvores, de estrumar as terras, de tratar do nabal, de abater os pinheiros, de matar um cordeiro, de esfolar um coelho, de bater uma punheta.
Como continuou a nevar com intensidade durante vários dias, a comida para os animais começou a rarear. Já não havia em casa couves para os recos e para as galinhas, que as comiam misturadas com o farelo do centeio, nem erva ou leitugas para os coelhos. Por isso os porcos cuincavam na corte com a fome, dado que a lavadura era agora feita à base de água, casca de batatas e farelo. A tudo isto se misturava a impaciência dos rapazitos mais novos, a má disposição endémica da Dona Rosa e o nervosismo do guarda Ferreira. Em dias assim, não se podia sair de casa. A neve de metro impedia a circulação dos carros e provocava a imobilidade dos civis, dos animais e dos GNRs. Mesmo a vila e, sobretudo, as aldeias ficavam sem ser patrulhadas. A preocupante convicção da falta de policiamento era autêntica, mas a ficção alvitrava noutro sentido.
Mesmo sentados à lareira, os guardas eram obrigados a preencherem um boletim itinerário a confirmar a sua passagem pelas várias localidades. Tornando-se impossível fazer as patrulhas a calcantes, os guardas estavam, mesmo assim, proibidos de deixar de as fazer. Foram muitas as vezes em que a escrita hesitante do José serviu para assinar na linha destinada ao regedor. Naqueles dias, a parelha de guardas enfiava-se na cozinha da casa de um deles e passavam lá horas a beber vinho, que aqueciam ao lume, e ao qual misturavam umas colheres de mel, a fumar, a contar histórias, a falar dos tempos da guerra da Índia ou a jogar às cartas. José ouviu muita conversa de homem, como lhe confidenciavam os guardas, onde o mais notável era a conversa ser feita à base do verbo foder. Em boa verdade, aqueles rudes agentes da lei e da ordem, tanto fodiam a realidade como eram fodidos por ela. O verbo tanto era usado para descrever uma aventura de saias como para realçar as desventuras da vida, que era, a bem dizer, madrasta.
Quando se chateava da conversa, o José ia até ao alpendre e punha-se a olhar para os enormes farrapos de neve que faziam o mundo ficar em silêncio, branqueando os telhados, alvorecendo as ruas, encanecendo os pinheiros, purificando os montes, tornando tudo limpo e asseado, à semelhança da época pascal, quando se pintavam as paredes das salas para aí se receber o Compasso e beijar o Cristo na Cruz.
Nesses dias a Dona Rosa pouco falava. Um certo pudor impedia-a de ser malcriada na presença de um colega do marido. Por isso José gostava dos dias de neve. O mundo podia ficar mais frio e os animais mais famintos, mas a paz que invadia o dia-a-dia era reconfortante.
Num desses dias, como a neve não parava de cair, ele e o pai tiveram de se fazer fortes e irem buscar dois sacos de couves para a criação. Aproveitando uma aberta e, enquanto o sol raiava, esgueiraram-se como puderam pelo sulcos que havia pelo meio da neve, desceram a encosta por detrás do castelo, galgaram muros, atravessaram a ponte romana sobre o Cávado e, em menos de meia hora, puseram-se a cortar as couves pelo caule e a ensacá-las. O guarda Ferreira disse ao José para apenas mear o seu saco, pois a caminhada de volta ainda era grande. Quando tinham galgado já meia encosta, na direcção da casa do guarda Martins, o céu tingiu-se de um cinzento carregado, um vento gélido começou a soprar e a neve começou a cair com intensidade redobrada. Naquele momento, o guarda Ferreira apertou o passo, no que foi seguido pelo filho. Mas cada vez nevava mais e o vento soprava agora como se fosse a lâmina do sabre do guarda Ferreira. José nem deu conta que deixou cair o saco das couves. Já não conseguia sentir as mãos. Começou a chorar baixinho. O pai, um pouco mais à frente, olhou para ele e perguntou-lhe se aguentava. Ele disse que sim. Pegou no saco e pô-lo de novo às costas. Andou mais uns metros, mas a neve, puxada a vento, cada vez caía com mais intensidade. Deixou de ver o pai. E novamente deixou cair o saco das couves. Pôs-se de joelhos para o agarrar de novo, mas as mãos não lhe obedeceram. Começou chamar pelo pai. Mas o som ia noutra direcção. Começou a desesperar. Tentou novamente agarrar no saco. Mas novamente caiu de joelhos. Foi então que viu o pai agarrar no seu saco. Naquele momento agradeceu a força do pai, ou melhor, a sua determinação. A Dona Rosa, pressentindo-os, foi esperá-los ao portão. Agarrou no saco do José e colocou-o junto ao merouço da lenha. Depois levou-o para a cozinha ao colo. Nenhum deles tentou aquecer as mãos ao lume, pois sabiam que esse processo provocava dores horríveis. A Dona Rosa aqueceu as mãos de ambos no seu regaço, enquanto, a modinho, os incitava a esfregá-las uma na outra.
“Doem-me muito as mãos, Rosa”, disse o guarda Ferreira. “A mim também me doem as mãos, mãe”, disse o José. “Aquecei-as mais um pouco aqui no meu regaço”, disse a Dona Rosa. Até o João balbuciou algo carinhoso. Nessa noite cearam como se fosse noite de Natal. Mesmo os recos na corte se calaram e comeram a lavadura, um tentador caldo de couves, batatas e farelo que os fez engordar para aí meio quilo. Ou mesmo mais. Passava da meia-noite quando foram para a cama e dormiram um sono calmo e retemperador.
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