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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Nov10

O vazio

João Madureira

 

Ontem à noite fui ao café como frequentemente o faço, sentei-me na última mesa do lado direito, pedi um café e uma Água das Pedras natural e quando olhei para a praça notei que estava vazia. Habitualmente a praça está vazia, mas desta vez reparei que o vento agitava com mais intensidade as poucas folhas mortas caídas no chão. Por isso parecia ainda mais vazia. E não era só a praça que estava vazia. O café também estava vazio. O empregado lá ao fundo limpava o balcão com um pano húmido e olhava a televisão como se ela estivesse tão vazia como a praça. Pareceu-me que o empregado estava, também ele, vazio. Felizmente que a chávena de café que o patrão me serviu à mesa não estava vazia. Para falar verdade, a chávena não veio vazia mas pouco faltou. Ali servem uma bica tão curta que pouco mais traz do que um dedal de água engrossada com cafeína.

 

Quando olhei de novo para a televisão fiquei com a impressão de que as imagens que ela transmitia também estavam vazias. Vazias de ideias, de bom gosto, vazias de qualidade, vazias de esperança. Apesar de estar cheia de imagens de pessoas que riam e batiam palmas, pareceu-me vazia. A televisão sugeriu-me uma lâmpada atrapalhada. Iam-se sucedendo imagens repetidas até à exaustão. De repente reconheci o Papa a sorrir evidenciando o seu típico olhar de rato de laboratório. Pareceu-me um homem vazio. Um homem seco onde as ideias de Cristo não fazem sentido. Pareceu-me um homem vazio de sentido, de humanidade. Senti-me ainda mais vazio.

 

O vazio de Deus cria um abismo na humanidade. A ideia de Deus é, também ela, um imenso vazio. O café caiu-me mal. Por isso bebi a água com algum desfastio. Atrapalhei-me com os meus pensamentos. Muitas vezes imagino que pensar ajuda a compreender o mundo. Outras vezes sinto que é precisamente o contrário. Quanto mais se pensa menos se percebe o mundo. Então quando me dizem que o Homem foi concebido à imagem e semelhança de Deus e reparo na merda que as suas imagens causam encho-me de vergonha e acabo o dia a pontapear as pedras do caminho antigo que me leva a casa.

 

A vida actual, aparentemente agitada, é uma vida gasta em cumprir rituais que cada vez nos deixa mais vazios. Trabalhamos para ganhar a vida e a vida esvazia-se todos os dias mais um dia como se ficasse feliz em nos aproximar do dia da morte. O trabalho mecânico pode encher as prateleiras do supermercado, as lojas, os centros comerciais, os restaurantes e os contentores do lixo, mas esvazia-nos a vida, que é um acto único, um milagre quântico. E depois ninguém pensa no resto.

 

A modernidade e o progresso foram pensados para nos esvaziar de sentido. Trabalhamos cinco dias, descansamos dois e depois a roda da sorte faz-nos voltar ao mesmo. A nossa vida é uma sucessão de fotocópias dos interesses dos outros. As nossas ideias são outra sucessão de fotocópias das ideias dos outros. Deixamos que a vida nos atravesse como se fossemos placas de vidro. Mas ninguém consegue viver sem trabalhar. E trabalhar para ganhar dinheiro deixa-nos cada vez mais vazios. O emprego dá-nos a capacidade de sobrevivência para nos afogar na rotina. E a rotina é ainda outro vazio que cada vez se amplia mais à medida que envelhecemos.

 

Envelhecer é um terrível vazio. Quando olho para os meus filhos aflijo-me com o seu sentido. Os meus filhos são os principais responsáveis por ainda não me ter afogado no imenso vazio da minha vida. Mas quando penso no vazio que lhes transmiti sinto-me mal. E também me aflijo quando olho para a minha mulher e reparo no trabalho e no carinho imenso que ela coloca na tentativa de preencher o vazio enorme das nossas vidas com imensos fragmentos de vazio. Os pequenos pedaços de vazio todos juntos tornam mais suportável o imenso vazio de uma vida humana.

 

Ao nível molecular a matéria é preenchida por vazio. Mas quando todo esse vazio se junta forma-se tudo aquilo que é sólido. Apesar disso o vazio está lá para suster os átomos e as suas trajectórias erráticas. E também por ali andam, naquele espaço infinitamente pequeno, os protões, os electrões e os quarks.

 

Mas agora atentem no que a ciência nos diz. Na nossa dimensão, ou seja no universo visível, os acontecimentos são definidos, os objectos têm limite fixo, a matéria sustenta-se na energia, o espaço é tridimensional e perceptível aos cinco sentidos, o tempo flui numa só direcção, as acções físicas são finitas, mutáveis e sujeitas à extinção, todas as coisas têm princípio e fim, os organismos nascem, desenvolvem-se e morrem, tudo o que vemos acontecer é previsível, as causas e os seus efeitos são estáticos.

 

Ao nível do universo quântico manifesta-se a criação, existe a energia, começa o tempo, o espaço encontra-se em constante expansão desde a sua origem (se é que existe origem pois já há cientista que afirmam que o espaço e o tempo sempre existiram), os factos são incertos e impredizíveis, as ondas e as partículas alternam-se umas com as outras, só existe a possibilidade de medir probabilidades, o nascimento e a morte sucedem-se à velocidade da luz, a informação está imersa em energia, somos informações frequenciais comandadas pela mente, somos partículas vibracionais de um todo unificado, somos eternos.

 

E é na eternidade que bate o ponto. Ou seja, a eternidade é um imenso vazio preenchido por outro vazio onde flutuam umas partículas de energia eterna. Agora, sabendo isto, pensem no sentido que tem em irem trabalhar amanhã. Agora, sabendo isso, pensem no sentido da vossa vida. Pensem no sentido do dinheiro, da casa, do carro, dos pasteis de nata, no sentido do café e das Águas das Pedras e da praça e da bandeja do patrão do café e no gesto do empregado a limpar o balcão ou no sentido da televisão, ou, pior ainda, no sentido do Papa que é um senhor velhinho que anda pelo mundo fora a falar de um Deus que nem sequer se manifesta a um nível cognoscível. Deus pode ser misterioso, mas tanto também não. E para quem tem tantas e tamanhas qualidades até lhe fica mal.

 

 

PS – O aconchego de um olhar, de uma carícia, de uma palavra, ajudam muito a vestir de beleza a alma humana, quer o ser que a acolhe seja jovem, velho, ou de meia-idade. Isto partindo do principio de que a alma existe. A não existir, apenas a sua ideia já é reconfortante. Se Deus não nos pode valer, valha-nos ao menos a sua alma, que é a modos como um cachecol que nos aconchega o pescoço numa manhã fria de Dezembro enquanto descemos a Rua de Santo António para irmos comer um pastel de carne acompanhado por uma meia de leite a fumegar ao Biquinho Doce e deparar com a qualidade dos seus produtos e com os sorrisos esbeltos das suas funcionárias.

26
Nov10

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

39 – Naquele sábado de manhã encheu-se de desenhar. À tarde foi aos níscarros. Mas só depois de uma grande pega com os pais.

O José gostava de ir aos níscarros para os pinhais, para junto dos salgueiros e das linhas de água. Iam em grupos pequenos apanhá-los mas não para os levar para casa. Ele adorava vislumbrá-los ao longe e aproximar-se sorrateiramente para nenhum outro colega se antecipar. Descobria-os com o seu olhar atento de caçador furtivo e disfarçava tão bem que raramente os seus companheiros se apercebiam. Apanhava os fradelhos, boletos, cantarelas, amarelos, sanchas, tortulhos e míscaros brancos, furava-lhes o caule e enfiava-os numa galha fina de giesta. Gostava da sua forma em guarda-chuva, da sua textura aveludada, do seu aspecto redondo e elegante. Deleitava-se a acariciá-los. Muitos deles tinham uma semelhança discreta com um pénis arregaçado. Não os levava para casa porque não apreciava o seu sabor. Preferia vendê-los a clientes certos que lhos adquiriam a um preço razoável. Com o dinheiro comprava chocolates ou, mais recentemente, cigarros. O seu grupo costumava ir fumá-los para as traseiras da escola da Vila. Apenas compravam marcas recentes, todas elas publicitadas na televisão: Kart, Negritas ou Ritz. Nunca adquiriam SG filtro pois era a marca dos cigarros que o professor fumava nos intervalos das aulas numa calma exasperante, ele que era tão lesto e rápido a bater nos alunos. O SG punha os dedos amarelos e deitava mau cheiro. Também não compravam maços de Português Suave, que eram os cigarros sem filtro que o guarda Ferreira fumava, pois ainda punha os dedos mais amarelos, cheirava pior e, quando se travava o fumo, fazia com que os pulmões ficassem tão intoxicados como quando engoliam o fumo das giestas nos dias em que o vento não o deixava sair pela chaminé da cozinha.

O José era mau fumador. As suas chupadelas no cigarro provocavam-lhe sempre tosse. E o sabor era horrível. Normalmente as coisas que os homens faziam eram para ele um grande mistério. Fumavam e isso era penoso de se fazer com a frequência com que os adultos o faziam. Bebiam vinho e o seu paladar era muito desagradável. Ingeriam cerveja que era azeda como o rabo do gato. E sorviam aguardente que queimava as goelas. E fodiam, o que provocava dor, pois muitas vezes ouviu a sua mãe a gemer alto como se lhe doesse o dente do siso e o seu pai a lamentar-se como se o Porto tivesse perdido um jogo frente ao Benfica. E quando olhava para os cães depois da cópula, vomitava por os ver com os sexos pegados e vermelhos como se fosse uma ferida infectada.

Quando chegou a casa ficou admirado por ver os pais em cuecas e camisola interior de alças e a depilar-se debaixo dos braços. Aquele ar de intimidade primeiro provocou-lhe estranheza e de seguida estimulou-lhe uma náusea interior próxima do desconforto. O guarda Ferreira e a Dona Rosa comportaram-se como se estivessem vestidos com a farpela de sempre. A pele dos braços e das pernas, de um branco leitoso, provocava enjoo. O pai, de sorriso nos lábios, cortava com a sua lâmina da barba os pêlos dos sovacos da mãe com um certo desembaraço. A Dona Rosa soltava timidamente pequenos trinados como se fosse uma jovem virgem à procura do primeiro beijo na boca. Estavam ambos ligeiramente corados, felizes, desenvoltos, como se fossem pássaros a dar banho num charco de água.

Agora fazia sentido a sua insistência para que deixasse de ler os livros que o senhor Carvalho da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian empenhadamente lhe aconselhava e fosse apanhar sol. “Estás tão franzino, filho”, disse a mãe. “Estás tão enfezado, José”, repetiu o pai como se fosse uma câmara de eco. E ele: “Não me apetece. Prefiro ficar em casa a ler do que ir ter com os parvos dos meus colegas. Eles não me deixam jogar à bola. Estão constantemente a chamar-me frangueiro. Já não os suporto. São uns ignorantes. Só estão bem a dizer asneiras, a insultar-se e a bater uns nos outros.” “Tens uma cor muito amarela, precisas de apanhar ar puro. Vai brincar, que te faz bem”, tornou a Dona Rosa a insistir. E a câmara de ressonância do pai: “Vai brincar, que te faz bem. Precisas de apanhar ar. Tens uma cor tão macilenta!” E ele teimoso: “Gosto mais de ler. Este livro é muito interessante. Vou passar a tarde a ler. Os meus amigos combinaram ir aos níscarros. E eu não gosto deles.” “Gosto eu”, disse a Dona Rosa. “E desde quando é que gostas dos meus colegas? Tu detesta-los”. E a Dona Rosa: “Eu gosto é dos níscarros. São muito bons. Nem de propósito, tenho ali um quilo de vitela de estufar que vai muito bem com os tortulhos. Vai a eles, José.” E de novo a câmara de eco do pai se fez ouvir: “A carne de vitela que a tua mãe comprou combina muito bem com boletos. Os níscarros que tu apanhas são uma delícia. Vai a eles, meu filho.” E a mãe de novo: “O Virtudes levou os teus irmãos a passear até ao rio. O Leão foi com eles. Só tu é que não queres ir apanhar sol. Andas tão enfezadinho meu filho!” E o pai: “Vá lá José, andas tão definhadinho e…” E o José: “Já disse que não me apetece ir aos níscarros. Prefiro ficar em casa a ler. Estou a habituar-me à vida de clausura. Afinal sempre vou para o seminário, ou não?” E a mãe: “Então não és capaz de fazer um favor aos teus pais e ires apanhar cogumelos para o jantar. Nós cá em casa adoramos cogumelos com carne. E os teus irmãos também.” E o pai: “Os teus irmãos mais pequenos apreciam comer míscaros brancos guisados com carne de vitela e…” E o José: “Já disse que…” E a mãe: “Se não vais a bem vais a mal”. E o pai: “Toma atenção ao que diz a tua mãe.” E o José: “Ainda não entendi bem porque razão quereis que eu saia de casa. Parece que…” Nesse momento o guarda Ferreira pôs-se de pé pegou no porta-moedas, abriu-o e disse: “Como já és crescido aqui tens dez escudos para gastares como quiseres. Vai e diverte-te.”

Como toda a teimosia tem um preço, o José, mesmo contrariado, pegou no dinheiro e foi aos cogumelos.

24
Nov10

O Poema Infinito (23): a tensíssima inevitabilidade

João Madureira

 

Escuto a unidade profunda do silêncio e sofro o seu domínio como se a alegria da dádiva acolhesse a extensão vagarosa do tempo pois sei que é por isso que o tempo deduz o espaço e apaga os seres vivos que se acolhem na renovada fronteira dos conceitos e depois lá dentro amplifica a fala e as palavras e o pensamento repousado dos anjos provisórios que estendem a infância até à transparência do orvalho e até aos bichos que olham o santíssimo sofrimento do trabalho apesar de a infância ocultar o brilho do espanto e o ímpeto do espírito e o silêncio do vento e a origem da vida e do universo como se tudo isto fosse o júbilo santíssimo da privação e da glória de deus e da surpresa que se desenvolve inadequadamente na acomodada sujeição da opulência tendo como pano de fundo a pobreza que empolga os demagogos sempre obedientes aos ditames da vacuidade e por isso também sei que a seguir é a felicidade quem toma conta da mentira e do disfarce e é por isso que escuto o rigor da fala e da língua que serve como o luminoso rumo do exílio e é por isso que a luz vinga a matéria embora a palavra se expanda para lá do jubiloso sossego das águas e por isso continuo a escutar o ritmo agudo do pensamento que ilumina os textos apócrifos pressentindo o cântico excelso das almas ociosas que se vão abrindo e rompendo os objectos bíblicos vinculando preces e maldições à liturgia sossegada dos ateus que estudam aprofundadamente o custo imperioso da maldade e rezam as palavras esquecidas pelo criador do universo e das partículas incrivelmente pequenas que deram origem ao cosmos sabendo que a língua de deus vai sofrendo com os adjectivos polícromos da ignorância e com a condição analítica do amor e do ódio e da ordenação vingativa do espaço ainda que a paciência se esgote na infinita impaciência do criador que continua atento ao fim do tempo e à perseverança dos átomos e à loucura brilhante das estrelas e ao eco íntimo da origem da vida e ao sítio azul da água e ao fulgor específico dos indícios divinos e à beleza inútil dos desertos e à ausência pacífica da eternidade e à imagem limpa do desejo e ao conflito eterno dos dias e das noites e à imagem do tempo que ultrapassa o big bang e a gravitação negra do desespero como se tudo pudesse vir a ser nada ou como se a ascensão de cristo fizesse sentido na era dos foguetões ou como se a carne de deus fosse casta ou ainda como se a virgem maria fosse mulher e por isso rezo penitências lentas inscritas nas paredes dos centros comerciais e recito os poemas encriptados nos manuais de instruções dos electrodomésticos e declamo alto os preços dos relógios de ouro e prego o júbilo incandescente dos frangos de churrasco e enalteço o fulgor das casas de banho automáticas e limpas e desinfectadas das estações de serviço e escrevo inconclusivas teses sobre as receitas tradicionais e sinto que deus se regozija com a total inutilidade do sacrifício humano como se fátima fosse um filme de animação e por isso sei que a iluminação das igrejas serve para jogar no totoloto divino e sei que o sinal perpétuo da desilusão toma conta de mim e por isso oiço o tempo de tréguas que se desperdiça no afecto infinito da luz e por isso também continuo a indigitar a razão a quem criou o infinito equívoco da natureza esperando lentamente pela tensíssima inevitabilidade da morte.

22
Nov10

A crise e a lapidação

João Madureira

 

Ai como os jogos de crianças ganham tanta importância na hora de os jogar! Consomem as nossas capacidades inventivas. Todas as nossas energias. Mas quando crescemos e deixamos de os praticar, parece que nos desaparecem do espírito.

 

O que nunca me vai desaparecer do espírito é a sensação de rejeição sempre que queríamos jogar à bola. Quando chegava o momento de escolher as equipas era uma dor de alma. Ali ficava eu à espera que desta vez não fosse o último a ser seleccionado. Pois quando se é a última opção é porque não conseguimos ser opção nenhuma. E a história repetia-se permanentemente.

 

O mesmo sucede ao nosso país. Quando se põe na fila para jogar nunca ninguém o escolhe como parceiro. É um pouco como o engenheiro Sócrates quando se dispôs a dançar o tango do orçamento. Ou dançou só ou fá-lo agora com um parceiro que não quer bailar. Faz-me lembrar quando, na minha juventude, dançávamos sheik em vez de slow pela simples razão de que não havia par disponível.

 

A vida tem destas coisas, a maioria das vezes somos escolhidos, quase nunca temos oportunidade de escolher. Mesmo que por vezes sejamos invadidos pela sensação contrária.

 

O tempo que nos toca viver está a transformar-se numa autêntica tempestade eléctrica. Todos estamos em estado de choque. Os bancos, os economistas, os comentaristas, os políticos, os patrões, os empregados, os sindicalistas, os comunistas, os socialistas, os bloquistas, os bloguistas, os sociais-democratas, os partidários de Paulo Portas, os fadistas, os benfiquistas, os sportinguistas, o povo, as elites, o governo, a oposição, o Alberto João Jardim, etc. E olhem que este estado de coisas tem tendência para se agravar.

 

Desde criança que os relâmpagos me assustam. Apesar de afirmar o contrário. Sou mesmo capaz de troçar das mulheres e pôr-me com ar de chalaceiro a recordar que só nos lembramos de Santa Bárbara quando trovoa. Mas quando a seguir ao ribombar do trovão se lhe segue o magnífico dardo de um relâmpago o meu coração acelera para níveis preocupantes. E eu sou hipertenso. Os hipertensos sofrem muito com as crises. Os hipertensos e os tesos. Então se os hipertensos forem igualmente tesos aí ficam mesmo à beira de um ataque de coração, asma ou ansiedade. Com esta crise, que mais do que nacional é internacional, mesmo a Igreja e o Santo Padre estão apreensivos.

 

Isto não está para brincadeiras. Apesar de sentir que quase todos nós tentamos disfarçar o melhor possível a inquietação que nos atormenta.

 

A princípio pensei que a crise porque passamos fosse a modos que uma trovoada. Logo a seguir ao céu negro, ao barulho do embate das nuvens carregadas de água e do dardejar dos relâmpagos, sobreviria a bonança do astro rei e do céu azul. Mas esta trovoada tem-se revelado contínua e permanente e os céus não há meio de ficarem despejados. Pelo contrário, a cada trovão seguem-se milhares deles sempre em crescendo como uma ribombante sinfonia de Beethoven. E então que dizer dos relâmpagos! Se não fossem fruto da ficção para me ampararem nesta prosa um pouco angustiada, eram suficientes para produzirem mais energia eléctrica do que os aerogeradores que o engenheiro Sócrates semeou pelo cocuruto das serras do nosso país.

 

Por isso penso que a crise não é uma trovoada, é antes a guerra. E uma guerra ninguém a consegue vencer. Somos todos vencidos por ela. Apesar de, por vezes, ficarmos com a sensação do contrário. Na guerra mesmo os vencedores são vencidos.

 

Esta crise tem-se mostrado pródiga em orfandade. Ninguém parece responsável. Ou, pelo menos, responsável directo. E os zelotas apontam todos o dedo ao pecador que, na sua ilusão momentânea, pensam ser o actual primeiro-ministro, qual prostituta evangélica. É claro que também ele não está isento de culpa. Mas quem não tiver pecados nesta situação que atire a primeira pedra. Se for capaz. Pois, se por qualquer acto de Deus, os culpados fossem atingidos por uma carga divina de pedras, estamos em crer que nenhum dos que tanto criticam Sócrates se salvava de morrer lapidado.

 

Esta crise serve na perfeição como um laboratório experimental para se aquilatar da imensa hipocrisia, demagogia e irresponsabilidade que atravessa o nosso tecido político e social. Portugal é, pelo menos ouvindo os interlocutores políticos nacionais, um país de autistas. Ou mesmo de irresponsáveis. Sendo que no primeiro caso os interlocutores são inimputáveis aos olhos da Ciência e no segundo são criminosos aos olhos da Lei.

 

Mas o que mais nos fere é a insustentável leveza da visão da extrema-esquerda parlamentar, e ao seu actual compagnon de route, o putativo pai dos pobres, dos velhinhos, dos pensionistas, dos polícias e dos submarinos, o maior demagogo que apareceu no país após o 25 de Abril, o jornalista e reputado evangelizador Paulo Portas. Pois se a demagogia pagasse imposto, o maior contribuinte deixava de ser Herman José para passar a ser o líder do CDS.

 

E a mesma receita aplicada aos dirigentes do BE e do PCP faria com que estes mentores dos amanhãs que cantam (e meticulosos revisores históricos das noites estalinistas que dizimaram milhões de inocentes proletários e agricultores, comunistas, socialistas, democratas, independentes, católicos, ateus, islamitas, budistas, pretos, brancos, mulatos, amarelos, etc.) fossem obrigados a recorrer a empréstimos bancários que, estamos em crer, teriam dificuldade em obter, quer pela pouca credibilidade financeira, quer por causa dos incipientes negócios a que se dedicam.

 

Sim, nós sabemos que tal estratégia não resolvia toda a crise mas lá que tapava uns buracos, isso é mais que certo.

 

E como já quase todos pagaram a crise (os ricos, os pobres, os remediados, os burgueses, os funcionários públicos, os agricultores, os operários, os militares, os socialistas, os sociais-democratas, eis chegada a vez de os portugueses reclamarem aos comunistas que é chegada a sua vez.

 

Francisco Lopes, o candidato do PCP à Presidência da República, firmou que “país comunista não há nenhum no mundo. Nem nunca houve.” Partindo desse pressuposto, apelamos ao senhor deputado para que obrigue o seu partido a criar aqui em Portugal o primeiro país comunista do mundo. Nós que já demos novos mundos ao mundo podemos vir a criar o primeiro país comunista do planeta. E como vamos partir do zero, tudo é possível.

 

Agora que o país que dizem tanto amar está a tocar no fundo torna-se necessário que os marxistas-leninistas, com o seu espírito de missão, se instalem no governo para, de uma vez para sempre, provarem aquilo que valem. Eu sei que o problema será tirá-los de lá. Mas as situações desesperadas exigem soluções radicais. Prova disso é o incrível facto de Timor Leste se ter disponibilizado a comprar parte da dívida pública portuguesa. E outra prova, menos significativa é certo, mas mesmo assim paradigmática, é a intenção da China comunista mostrar apetência por adquirir títulos da dívida nacional.

 

E não são necessárias mais provas para evidenciar aquilo que afirmamos. Apenas o comunismo está em condições de salvar o nosso país.  Só os militantes do PCP estão em condições de convencerem os seus camaradas chineses a emprestarem-nos dinheiro. Urge proporcionar-lhes a oportunidade. Lá diz o nosso querido povo, que eles, mais do que ninguém amam e defendem: a ocasião faz o ladrão.

 

 

PS – Para executivos: Nunca se esqueçam que um fato deve assentar perfeitamente nas mangas, costas e calças. Tenham sempre em atenção que as bainhas devem bater na sola do sapato, sem que sobre tecido enrugado em baixo. Pormenor a ter em conta: use gravatas elegantes e discretas, fuja das espampanantes como Portugal foge do FMI. Pode, de vez em quando, optar pelas golas altas. Acompanhe tudo isto com perfume Bleu de Chanel, relógio Jumping Hour da Baume & Mercier, pasta cinza em pele Furla… e à crise chame um figo. Os comunistas que a paguem se forem os tais homens de coragem que tanto apregoam.

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