Ontem à noite fui ao café como frequentemente o faço, sentei-me na última mesa do lado direito, pedi um café e uma Água das Pedras natural e quando olhei para a praça notei que estava vazia. Habitualmente a praça está vazia, mas desta vez reparei que o vento agitava com mais intensidade as poucas folhas mortas caídas no chão. Por isso parecia ainda mais vazia. E não era só a praça que estava vazia. O café também estava vazio. O empregado lá ao fundo limpava o balcão com um pano húmido e olhava a televisão como se ela estivesse tão vazia como a praça. Pareceu-me que o empregado estava, também ele, vazio. Felizmente que a chávena de café que o patrão me serviu à mesa não estava vazia. Para falar verdade, a chávena não veio vazia mas pouco faltou. Ali servem uma bica tão curta que pouco mais traz do que um dedal de água engrossada com cafeína.
Quando olhei de novo para a televisão fiquei com a impressão de que as imagens que ela transmitia também estavam vazias. Vazias de ideias, de bom gosto, vazias de qualidade, vazias de esperança. Apesar de estar cheia de imagens de pessoas que riam e batiam palmas, pareceu-me vazia. A televisão sugeriu-me uma lâmpada atrapalhada. Iam-se sucedendo imagens repetidas até à exaustão. De repente reconheci o Papa a sorrir evidenciando o seu típico olhar de rato de laboratório. Pareceu-me um homem vazio. Um homem seco onde as ideias de Cristo não fazem sentido. Pareceu-me um homem vazio de sentido, de humanidade. Senti-me ainda mais vazio.
O vazio de Deus cria um abismo na humanidade. A ideia de Deus é, também ela, um imenso vazio. O café caiu-me mal. Por isso bebi a água com algum desfastio. Atrapalhei-me com os meus pensamentos. Muitas vezes imagino que pensar ajuda a compreender o mundo. Outras vezes sinto que é precisamente o contrário. Quanto mais se pensa menos se percebe o mundo. Então quando me dizem que o Homem foi concebido à imagem e semelhança de Deus e reparo na merda que as suas imagens causam encho-me de vergonha e acabo o dia a pontapear as pedras do caminho antigo que me leva a casa.
A vida actual, aparentemente agitada, é uma vida gasta em cumprir rituais que cada vez nos deixa mais vazios. Trabalhamos para ganhar a vida e a vida esvazia-se todos os dias mais um dia como se ficasse feliz em nos aproximar do dia da morte. O trabalho mecânico pode encher as prateleiras do supermercado, as lojas, os centros comerciais, os restaurantes e os contentores do lixo, mas esvazia-nos a vida, que é um acto único, um milagre quântico. E depois ninguém pensa no resto.
A modernidade e o progresso foram pensados para nos esvaziar de sentido. Trabalhamos cinco dias, descansamos dois e depois a roda da sorte faz-nos voltar ao mesmo. A nossa vida é uma sucessão de fotocópias dos interesses dos outros. As nossas ideias são outra sucessão de fotocópias das ideias dos outros. Deixamos que a vida nos atravesse como se fossemos placas de vidro. Mas ninguém consegue viver sem trabalhar. E trabalhar para ganhar dinheiro deixa-nos cada vez mais vazios. O emprego dá-nos a capacidade de sobrevivência para nos afogar na rotina. E a rotina é ainda outro vazio que cada vez se amplia mais à medida que envelhecemos.
Envelhecer é um terrível vazio. Quando olho para os meus filhos aflijo-me com o seu sentido. Os meus filhos são os principais responsáveis por ainda não me ter afogado no imenso vazio da minha vida. Mas quando penso no vazio que lhes transmiti sinto-me mal. E também me aflijo quando olho para a minha mulher e reparo no trabalho e no carinho imenso que ela coloca na tentativa de preencher o vazio enorme das nossas vidas com imensos fragmentos de vazio. Os pequenos pedaços de vazio todos juntos tornam mais suportável o imenso vazio de uma vida humana.
Ao nível molecular a matéria é preenchida por vazio. Mas quando todo esse vazio se junta forma-se tudo aquilo que é sólido. Apesar disso o vazio está lá para suster os átomos e as suas trajectórias erráticas. E também por ali andam, naquele espaço infinitamente pequeno, os protões, os electrões e os quarks.
Mas agora atentem no que a ciência nos diz. Na nossa dimensão, ou seja no universo visível, os acontecimentos são definidos, os objectos têm limite fixo, a matéria sustenta-se na energia, o espaço é tridimensional e perceptível aos cinco sentidos, o tempo flui numa só direcção, as acções físicas são finitas, mutáveis e sujeitas à extinção, todas as coisas têm princípio e fim, os organismos nascem, desenvolvem-se e morrem, tudo o que vemos acontecer é previsível, as causas e os seus efeitos são estáticos.
Ao nível do universo quântico manifesta-se a criação, existe a energia, começa o tempo, o espaço encontra-se em constante expansão desde a sua origem (se é que existe origem pois já há cientista que afirmam que o espaço e o tempo sempre existiram), os factos são incertos e impredizíveis, as ondas e as partículas alternam-se umas com as outras, só existe a possibilidade de medir probabilidades, o nascimento e a morte sucedem-se à velocidade da luz, a informação está imersa em energia, somos informações frequenciais comandadas pela mente, somos partículas vibracionais de um todo unificado, somos eternos.
E é na eternidade que bate o ponto. Ou seja, a eternidade é um imenso vazio preenchido por outro vazio onde flutuam umas partículas de energia eterna. Agora, sabendo isto, pensem no sentido que tem em irem trabalhar amanhã. Agora, sabendo isso, pensem no sentido da vossa vida. Pensem no sentido do dinheiro, da casa, do carro, dos pasteis de nata, no sentido do café e das Águas das Pedras e da praça e da bandeja do patrão do café e no gesto do empregado a limpar o balcão ou no sentido da televisão, ou, pior ainda, no sentido do Papa que é um senhor velhinho que anda pelo mundo fora a falar de um Deus que nem sequer se manifesta a um nível cognoscível. Deus pode ser misterioso, mas tanto também não. E para quem tem tantas e tamanhas qualidades até lhe fica mal.
PS – O aconchego de um olhar, de uma carícia, de uma palavra, ajudam muito a vestir de beleza a alma humana, quer o ser que a acolhe seja jovem, velho, ou de meia-idade. Isto partindo do principio de que a alma existe. A não existir, apenas a sua ideia já é reconfortante. Se Deus não nos pode valer, valha-nos ao menos a sua alma, que é a modos como um cachecol que nos aconchega o pescoço numa manhã fria de Dezembro enquanto descemos a Rua de Santo António para irmos comer um pastel de carne acompanhado por uma meia de leite a fumegar ao Biquinho Doce e deparar com a qualidade dos seus produtos e com os sorrisos esbeltos das suas funcionárias.