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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

10
Nov10

O Poema Infinito (21): Criação

João Madureira

 

A invenção do Mundo custou a parir cinco dias infinitos. Logo de seguida Deus criou os seres vivos em apenas dois. E o mesmo Deus ofertou o Mundo, ainda tosco e selvagem, aos animais e às plantas e aos homens que, na sua omnisciente visão, não são nem uma coisa nem outra. Valha-nos Deus. No início, o mundo foi feito através da iluminação cega da criação e Deus transformou-se em loucura e em espada e cortou as estrelas e modelou planetas e tingiu de escuro o firmamento e pôs calhaus a voar caoticamente entre eles. Posteriormente tornou-se amargo e amassou as montanhas e condenou animais a sê-lo para sempre e deu cor à humanidade criando o pecado e o sexo para ser praticado com conta, peso e medida. Deus fez o homem do barro e a mulher das costelas dele. Deus brincou com os humanos como se fossem bonecos de plasticina. Deus gosta muito de brincar. Nisso assemelha-se às crianças. Depois purificou as fontes e as crianças e deu vinho aos reis e aos pobres e colocou carga erótica nas coxas e nas mamas das mulheres e fez-lhes de seguida um rasgo entre pernas para parirem com dor. E pôs lá pêlos. E teve coragem de criar o macaco para o homem se sentir superior e de criar os homossexuais para confundir a sexualidade de uns e de outros. Depois criou os anjos sem sexo. E ainda criou o sexo sem anjos. E chegou mesmo a criar o sexo sem sexo. A que se seguiu o celibato de padres e de freiras. E criou os pedófilos que se abrigam dentro da sua Igreja. E criou caracóis para sugerir ao homem que se quiser prosseguir na sua evolução pode muito bem foder-se a si próprio sempre que queira sem incomodar ninguém e depois pôr muitos ovos para formar descendência. E criou Darwin para nos dizer que todos os seres vivos evoluem só que uns evoluem mais do que outros. E outros evoluíram tanto que chegaram a seres inteligentes e por isso conseguem ter consciência de que Ele existe. E criou a palavra virgem para distinguir a pureza das mulheres pois já sabia que ia ter um filho de uma que o foi antes e depois da fecundação e do nascimento do seu filho que foi utilizado para sofrer e redimir os homens e as mulheres e que, apesar de ser crucificado, de nada nos valeu pois os homens continuam tão maus como dantes e o seu único filho ficou para sempre crucificado numa cruz de pau feita de prata ou ouro que o seu representante na Terra ostenta como símbolo de poder. Mas o poder de Deus num homem é uma das coisas mais estúpidas que se pode conceber. E Deus, ao que por aí se diz, não é estúpido. Estúpida é a economia que foi criada pelo homem para enriquecer uns e empobrecer outros. A economia é uma prostituta rica que muitas vezes é abençoada pelo Homem e por Deus. E nisso o seu filho foi peremptório atribuindo a César o que é de César. Pois à mulher de César, que agora sabemos chamar-se Economia, não lhe basta ser séria também tem de parecê-lo. E finalmente criou o foguetão e enfiou lá dentro três homens que foram à Lua e um deles deu um pequeno passo para ele, disse ele, mas um grande passo para a Humanidade, disse ele também. E ninguém se atreveu a desmenti-lo. Ainda hoje se está a medir o seu tamanho e ninguém conseguiu definir com exactidão a sua extensão. São, por isso, insondáveis os caminhos do Senhor.

08
Nov10

O comentarista

João Madureira

 

Ontem pus-me a ver e a ouvir o solilóquio do Dr. Marcelo Rebelo de Sousa na TV e, devido à sua eloquência, quase adormeci de entusiasmo. O senhor comentarista consegue impregnar as suas críticas com argumentos tão credíveis e pertinentes que me fazem desconfiar que o senhor doutor não é português, porque se o fosse não conseguia dizer aquelas coisas tão bem ditas, não era capaz de transformar o que para o comum dos mortais são verdades de Lapalisse em teses argumentativas dignas do teatro de Sófocles. E ditas com aquele seu ciciar as palavras à moda dos sassamelos é enternecedor. Como enternecedoras são as suas doutas opiniões sobre os livros e sobre o governo e sobre o futebol e sobre o ténis e sobre ele próprio. O Dr. Marcelo podia e devia ser um exemplo para o país, para o governo e para o futebol e para o ténis e para ele próprio. O Dr. Rebelo tudo entende, tudo compreende, tudo explica e tudo escrutina com uma leveza digna dos maiores elogios. Não é que ele os necessite, não, para o Dr. Sousa elogios são a coisa mais comezinha que existe. E as suas opiniões também. Mas apenas são comezinhos na aparência, porque debaixo da simplicidade das suas análises reside toda uma sapiência que demorou décadas a construir. Por isso o imagino a citar Tácito em A Vida Agrícola: "Tudo quanto é desconhecido é aumentado”. Eu aprecio muito a sua brilhante verve, a sua dedicação introspectiva à crítica política sem necessitar de passar pela sua execução. Executar que executem os outros, pois para isso foram mandatados. Ele apenas tem a incumbência de alertar quem deve ser alertado. Ele vive e reflecte sobre a realidade. Nós vivemos na ilusão. Ele fala, analisa, lê, escreve, medita, nada todos os dias no mar perto de sua casa e come uma sandes ao almoço. Nós, os que o ouvimos com toda a atenção do mundo, bem o queremos imitar, mas não conseguimos. Falta-nos o apego à realidade. Portugal necessitava, necessita e necessitará de milhares de Marcelos espalhados pelas empresas, pelas universidades, pelas escolas, pelas esquadras, pelos centros de emprego, pelos hospitais, pelas câmaras municipais e pelas juntas de freguesia. E estamos em crer que mesmo assim seriam poucos. E quanto não daria a Igreja Católica para poder ter em cada púlpito e em cada igreja um Marcelo sacerdote? Em menos de um ano transformaria os templos frios e vazios em espaços a abarrotar de crentes sequiosos das suas singelas, mas sábias palavras. E era mesmo homem para, em conjunto com a palavra de Deus, nos indicar a leitura de um livro, as receitas mais económicas para a semana, o partido melhor colocado para ganhar as eleições, sem recorrer a sondagens, e de definir a estratégia e a táctica para o Benfica ganhar o campeonato de futebol dois anos seguidos. Era padre para fazer vir Cristo à Terra pela terceira vez, de ensinar o novo Evangelho ao próprio Cristo e, estamos em crer, ao mesmíssimo Deus, de o orientar na busca da verdade, de lhe explicar como devia amar o seu putativo pai e o seu Pai verdadeiro sem criar uma relação afectiva conflituosa e assim destruir o complexo de Édipo e muito mais tarde a teoria de Freud, como relacionar-se com os apóstolos sem despoletar ciúmes e traições, como tratar da sua relação com as mulheres, de lhe explicar da necessidade do novo relacionamento com os vendilhões do templo, de como fazer os milagres sem ser exibicionista, de como perdoar os pecados sem com isso pôr em causa a fé dos discípulos, da necessidade de evitar transformar a água em vinho, para dessa forma escusar dar maus exemplos que perduram desde há dois mil anos, de não secar as figueiras por vingança, de evitar multiplicar o pão e os peixes pois tais atitudes fazem descer perigosamente os preços desses produtos e põem em causa toda a economia nacional, de evitar dar a César o que é de César, porque César já morreu há uma porrada de anos e continua a receber dinheiro que não lhe serve para nada. O Dr. Rebelo podia mesmo vir a ser o novo Messias não se desse o caso de ser português. Fosse ele americano e outro galo cantaria, não o que cantarolou tão afinado e certeiro que fez com que Pedro negasse Cristo três vezes. Se o Dr. Sousa tivesse sido discípulo de Cristo é mais que certo que quem passaria à história como o Filho de Deus não seria o que hoje conhecemos e veneramos como tal, mas sim o comentador da televisão, pois, como todos bem sabemos, a progenitura do Filho de Deus continua a ser motivo de polémica. O Dr. Marcelo era mesmo capaz de fazer desistir o próprio Deus da ideia de matar o seu querido descendente para redimir e salvar os homens. Devido à sua eloquência, ao seu poder de persuasão e à capacidade de dormir pouco e ler à velocidade do Super-homem, era senhor para convencer o homem da cruz a desobedecer ao Pai e, em vez de ser morto para fundar uma religião e depois subir aos céus para fazer companhia ao seu solitário Pai, renegá-lo e seguir a profissão de advogado, ou político, que são ambas onde o poder da palavra e o dom de a usar em público são melhor aceites. E escusava a senhora de vendar os olhos para pegar na balança, pois se o seu pai fundador fosse Cristo ela nunca teria a necessidade de tapar os olhos e pesar os crimes dos homens para fazer justiça. Também é possível que se Cristo nascesse nos dias de hoje enveredasse pela carreira de comentarista político. Ou melhor, estamos em crer que se Cristo encarnasse num ser humano que tivesse o cartão de cidadão português, necessariamente teria de ser o Dr. Marcelo. E imagino-o a recitar o versículo do salmo cinquenta e sete do Evangelho segundo S. Mateus: “Levanta-te, glória minha, levanta-te, saltério e cítara: eu próprio me levantarei cedo”. Não foi em vão que por causa das promessas do senhor comentarista Cristo desceu à terra uns dias antes de o Dr. Marcelo aceitar ser presidente do PSD. Uma coisa é ser invocado em vão, outra, bem distinta, é ser citado como testemunha do Dr. Marcelo. Aí nem Cristo tem vontade de contrariar o senhor doutor comentarista. Pois uma coisa é ser amigo do Dr. Rebelo, outra, bem diversa, é ser-se seu inimigo. Ó Dr. Marcelo, nós aqui gostamos muito do senhor e assistimos sempre à sua homília dos domingos. A paz esteja consigo, porque a paciência está ainda connosco. Só não sabemos até quando.  

 

PS – Exclusivamente para senhoras. Seguindo a lucidez intrínseca das propostas do Professor Marcelo na televisão.

Para a estação fria que aí vem estão convidadas a transformarem-se numa personagem das boas séries da TVI e a desfilarem por essa cidade com a elegância levemente afectada de uma lady ou a viajarem até aos climas invernais do pólo norte, transformadas em esquimós modernas.

Gostos à parte, a nossa proposta assenta basicamente na sobriedade das cores, na subtileza do veludo e em looks que se pautam pela inspiração retro e pelo minimalismo.

E também está muito na moda neste Inverno votar no Professor Cavaco Silva. Paixões, beleza, design e preferências políticas não se discutem, seguem-se.

05
Nov10

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

36 – Quando o reco saiu da corte, os sete homens fizeram-lhe uma pega de caras como se de um touro se tratasse. E para touro só lhe faltavam os cornos. Era um bicho portentoso. O animal ia dar carne em abundância. E da boa. Alimentado em casa com batata barrosã, bolota, milho, centeio e couve-galega, até a carne gorda se comia como se fosse magra. Assada no espeto de pau, deixando cair o pingue no pão centeio, era um manjar de comer e chorar por mais. O José adorava comê-la acompanhada de cevada quentinha.

Momentos antes, a Dona Rosa fez o teatro de sempre e começou a fugir para longe tapando os ouvidos, afirmando que não conseguia assistir a um acto tão bárbaro. As outras mulheres encolheram os ombros e distribuíram-se pelos lugares estratégicos para levarem a cabo as diferentes tarefas, tais como aparar o sangue, pegar nos cestos ou fazer pequenos fachucos de palha.

Vários homens pegaram no porco pelas orelhas, outros filaram-no pelas patas e os restantes agarraram-no por onde puderam. Todos à uma, tombaram-no no chão e só depois é que o transportaram para o banco corrido onde o matador lhe enfiou o aço delicado e certeiro da faca até ao coração. Roncou que se fartou até se calar. Finalmente, os homens largaram-no. O matador insistiu em dar golpes perseverantes para o sangue continuar a correr para os alguidares de barro preto. O primeiro líquido escarlate foi dali directo para o pote. O outro foi misturado com um pouco de vinagre, para não tralhar, e mexido com paciência para vir a seu utilizado no fabrico dos chouriços de sangue e em apetitosas filhoses.

Agora todos se riam, os homens, as mulheres e as crianças. Muitas delas foram enviadas à procura das pedras para lavar o reco e andaram de casa em casa até um vizinho mais dado à brincadeira as fazer carregar com uns pedregulhos pesados enfiados dentro de um saco de serapilheira. Quando, exaustos, chegaram de novo ao terreiro, deitaram as pedras ao chão e puseram-se a olhar admirados para os homens que, agora, chalaceavam com a toleima dos garotos, enquanto chamuscavam o pêlo do animal com fachucos de palha centeia e o barbeavam com facas amoladas em pedra apropriada. Começaram a lavar o porco com rebos de granito do tamanho da palma da mão que abundavam por aqueles caminhos fora. Quanto mais observavam o olhar apalermado dos miúdos mais se riam. Muitos dos garotos não acharam muita graça a terem sido ludibriados e começaram a chorar e a proferir asneiras das grossas imitando o linguajar árduo e obsceno dos adultos.

Continuavam a rir os homens, riam agora algumas mulheres, riam muito os jovens que já tinham sido vítimas da mesma brincadeira estúpida e sádica. Mas o povo tem destas coisas, rir dos néscios, dos desgraçados e dos inocentes.

Quando o suíno ficou lavado, colocaram-no de barriga para cima mesmo a jeito de o matador o cortar com gestos certeiros e sábios. Primeiro foi-lhe retirada a pele da barriga junto com a carne gorda, depois foram sacadas as tripas e colocadas dentro de um cesto enorme protegido por um lençol de linho, com muito cuidado para não rebentarem. Mais logo serão lavadas no rio e com elas se fará todo o fumeiro necessário à alimentação da prole.

Em cima do couro liso do suíno, foi servido o sangue cozido ainda a fumegar, temperado com sal, alho e azeite. Foi ainda fornecido vinho para todos. Até para as crianças. Todos beberam. O vinho era bom e tinha a temida particularidade de emborrachar. Os homens gostavam de sentir-se bêbados. Ficavam mais descontraídos e assim a vida parecia-lhes mais suportável.

Depois de esventrado, o porco foi pendurado na trave mestra da adega e ali ficou à espera de enrijecer as carnes e de escorrer o pouco sangue que ainda lhe circulava nas veias. Dali a três dias ia ser desmanchado, o que era pretexto para tornar a convidar os amigos e para novamente se comer e se beber como Deus manda. Pelo menos é isso o que o povo diz. E o povo conhece bem Deus e os seus desmandos.

A rapaziada, cheia de força, encheu a bexiga do bicho e pôs-se a jogar a bola. Todos queriam ser o Eusébio. Mas não podiam porque o Abel, um órfão angolano que o Padre Zé tinha acolhido em sua casa durante dois anos até ir para o seminário, berrou para todos que o Pantera Negra só podia ser ele, pois era da mesma cor e tinha o mesmo jeito para jogar a bola. Os outros que se contentassem em ser o Torres, o Simões, o José Augusto, ou o Jaime Graça. O Eusébio barrosão fintava com tanta perícia que todos, em vez de jogar, se punham a olhar para ele como se de um artista de circo se tratasse. E a bola, de tão leve, teimava em pinchar sem rumo definido.

Mas foi o José quem se encarregou de terminar com o jogo que ainda mal tinha começado. Ou melhor, o seu pai coadjuvado pela Dona Rosa. Num lance mais arriscado, um dos jogadores, o filho de um cantoneiro com pouco jeito para a nobre arte do futebol, mas com forte inclinação para o mester da cacetada, avinagrado por o Abel lhe ter feito várias coxinhas seguidas e outras tantas interpoladas, num lance em que viu o José receber um passe de morte do Eusébio de Montalegre, foi-se-lhe às pernas e lesionou-o com gravidade. O guarda Ferreira, de cigarro em riste, apitou penalti. Mas foi interpelado pelo cantoneiro resmungando que aquilo nunca foi, nem nunca será, grande penalidade, que era notório que o pai protegia o filho e que, mais a mais, o futebol não é para maricas. “Tento na língua”, avisou o pai do José imbuído da sua dupla função de agente da autoridade e de juiz do assobio. E como o árbitro teimava na sua decisão de marcar pena máxima contra a equipa do filho, o cantoneiro elevou mais alto o seu desacordo e, após meter um pedaço de sangue cozido e pão à boca, e ainda depois de emborcar, de uma só vez, um copo de tinto, designado na gíria por penalti, foi-se caras ao árbitro e sentenciou: “Aqui pelo meu Coluna ninguém passa. Ele é dos valentes. O teu rapaz é que tem pouca força nas canetas. O futebol é para homens.” No momento, o Eusébio barrosão veio em defesa do seu companheiro de equipa e atacou: “O Simões pode não ser muito forte, mas finta como uma serpente.” “Cala-te preto”, avisou-o o pai do putativo Mário Coluna. “A tua opinião não é para aqui chamada.” “Ninguém chama preto ao meu afilhado preto. É uma ordem”, notificou o cabo Aníbal. “Ó Aníbal, só te pões ao lado dele porque é guarda. Que merda de valentia.” E ia para proferir mais qualquer coisa mas deteve-se porque a Dona Rosa pegou na bexiga cheia de ar e espetou-lhe o fio encolerizado da navalha que trazia sempre no bolso do avental e disse “acabou-se o jogo”. Todos se calaram no campo de futebol improvisado como se o árbitro tivesse decretado um minuto de silêncio em honra do reco morto. Como por milagre, a mulher do cabo Aníbal chegou-se à porta de casa para informar que o almoço estava na mesa. Todos esqueceram as desavenças e foram comer o cozido que cheirava estupendamente.

03
Nov10

O Poema Infinito (20): a beleza triste dos crisântemos tardios

João Madureira

 

Encontro em ti aquele repouso frio das manhãs que tanto tonificam a ironia e a alma quente da inutilidade. Por ti eu amo o intenso desânimo do conhecimento. E o mundo tem outra luz, uma luz fria que transforma a água salgada em gelo. Sinto-me uma ilha delimitada pelo longo silêncio das espadas velhas dos guerreiros, como se eles movessem os seus membros insolentes avisados pelo horror da morte. Batem os ossos e as veias nos gritos dos inimigos. Vagarosamente, a noite fulmina a poesia. Tu entoas uma velha canção de escravos: Conheço o nascer da Lua, conheço o nascer das estrelas, agora eu só quero descansar.  Eu canto ao teu ouvido uma versão aproximada: Caminho ao luar, ando debaixo das estrelas, agora eu só quero descansar. Daquilo que o espírito acende a força da tristeza silencia. Tu chamas-me agora um nome lindo e demorado. Por isso quando penso em ti sinto que posso enlouquecer eternamente. Esqueço os nossos nomes e os rostos e tomo nos meus braços indecisos o grito misterioso das palavras. Sinto o meu sexo a afogar-se no teu. Sinto os espinhos da coroa de Cristo tornarem-se infinitos. Sinto a distância de Deus multiplicada pelos espelhos. E lá está a criança que se afoga na indiferença das carícias. Todo o corpo é uma prisão. Todas as portas dos sentidos são impenetráveis. Todas as alegorias deixam as bocas húmidas. Toda a distância une. Toda a violência arde. Toda a seiva descobre a qualquer momento as folhas coloridas de morte. Toda a morte é sal na face dos homens. O teu vasto e amargo amor descobre as sombras agitadas da memória. Eu levanto o meu sexo túrgido até ao desenho penetrável do teu. Lembro-me então da beleza triste dos crisântemos tardios.  E choro.

01
Nov10

O brincalhão

João Madureira

 

Quem tem amigos não morre na cadeia. Dito de outra forma, os meus amigos são aquilo que eu sou. Eu tenho amigos de todos os gostos e feitios. E gosto de todos eles. De todos sem excepção. Eles são tão diferentes uns dos outros que muitas vezes me pergunto como é que eu posso ser amigo de todos, ou todos podem ser meus amigos, sem nos questionarmos sobre o motivo das nossas diferenças, ou indiferenças. Todos diferentes todos iguais, lá diz, com toda a sapiência, a nossa escola democrática e inclusiva. E, contrariando o José Régio, e apesar de tudo, e apesar do Dantas, do Pim, do Almada Negreiros e do Paulo Portas, eu sei que vou por aí.

 

R. é o meu amigo mais brincalhão. É um patusco. Um homem capaz de pôr uma pedra a rir, ou, o que é ainda mais difícil, pôr a Manuela Ferreira Leite às gargalhadas. Tudo o que ele diz tem o condão de provocar uma risada imediata. Até se ri de si próprio com muita galhardia e independência. Qualquer frase articulada pelo R. tem graça, mesmo quando não tem graça nenhuma. E é isso que ele gere com abundante mestria: a capacidade de, do nada, conseguir estimular um sorriso em toda a gente, quer seja amiga ou inimiga, de esquerda ou de direita, católica ou não católica, homem ou mulher, gay ou lésbica, ecologista ou inimigo da natureza, branco, mulato ou preto, rico ou pobre, transmontano, não trasmontano ou indistinto, etc.

 

A última vez que o encontrei, disse-me, sem se rir, circunstância que provocou de imediato o meu sorriso, que leu numa revista uma reportagem dando conta que a pobreza começa a ser visível em muitos sectores da nossa população. Mas que fome sempre existiu. E que ele foi uma vítima dessa senhora vestida de preto.

 

Por mor das coisas, e do estilo, aqui vos deixo a sua prosa oral em registo directo e ao vivo.

 

«A fome, no meu tempo, provocava o riso, pois os pobres até se riam com ela. E quanto mais fome mais riso. Hoje as crianças pobres queixam-se que as suas mães às vezes só lhes dão meio copo de leite. Antes meio copo do que nenhum. No meu tempo, eu, que até nem era considerado pobre, ao pequeno-almoço, em minha casa classificado como mata-bicho, comia um caldo de unto acompanhado com um naco de pão centeio mais duro do que a própria fome. E ria-me muito quando o meu pai dava um peido e dizia “com a devida licença de vossemecês”. E a fome, desde que não seja permanente, pode ser fonte de saúde. E libertar os gazes do intestino também. Pelo menos é isso o que dizem alguns cientistas. E os médicos informam que devemos comer pouco: pouco peixe, pouquíssima carne, especialmente de vaca, que é a mais cara, e dizem que a abusar nas proteínas abusemos do atum e das sardinhas em lata, que são dos alimentos mais baratos que podemos encontrar em qualquer supermercado. Hoje morre-se muito mais de fartura do que de fome. A maioria das crianças é obesa. E a maioria dos adultos também. E sofrem do colesterol, da diabetes, da hipertensão, tudo doenças provocadas pelo excesso de gordura, sal e açúcares. A pobreza pode ser uma forma de combater esses flagelos. As crianças comem menos, bebem menos, crescem menos, engordam menos, brincam menos, estudam menos e todos sabemos que crianças que estudam menos são muito mais fáceis de aturar, não têm tendência a desenvolver aquele vício irritante de estarem sempre a questionar o porquê das coisas. E os pais podem poupar porque compram menos comida, menos roupa, menos brinquedos e menos livros e cadernos e esferográficas. E os livros são um verdadeiro luxo e custam tanto dinheiro que, a existir poupança na sua aquisição, pode ser encaminhado para uma conta poupança reforma que, a ser iniciada na infância, pode vir a representar a principal fonte de sustento na velhice, pois a segurança social qualquer dia dá o berro. Escrevem por aí os jornalistas que muitas crianças relatam que às vezes querem leite, mas sabem que as mães vão logo dizer não, pois sabem que elas não podem. Se as mães não podem, que peçam aos pais. Pois eles devem servir para alguma coisa. Eu quando era pequeno utilizava muito essa táctica. Quando pedia algo à minha mãe e ela não mo dava, logo de seguida ia ter com o meu pai para ver se conseguia dali alguma coisa. Ele por vezes dava-me o que lhe pedia. Outras vezes não. No entanto nunca perdia a graça e dava sempre um peido repetindo “com a licença de vossemecês”. Era conforme o bom humor e a disponibilidade. Lembro-me que leite não pedia, nem ao meu pai nem à minha mãe, pois sabia que leite era coisa que lá em casa não se consumia. Também dizem que muitas crianças referem que vão a casa da madrinha para tomarem banho. Tomar banho na minha infância era luxo semanal, quando era. Pois no Inverno não havia banho para ninguém. E as casas eram tão frias e acanhadas que só em pensar uma pessoa em despir-se, fosse para o que fosse, podia estimular uma forte constipação ou uma pneumonia. E não havia antibióticos para tomarmos. As doenças eram curadas com o tempo e com a sorte de cada um. E muitos de nós tinham mesmo azar e batiam a bota. Algumas famílias relataram às televisões que jantam muitas vezes arroz com molho. Agora são os pobres aqueles que têm acesso directo aos meios de comunicação social. Raramente lá vemos um rico. Um pobre passa fome, lá vai a televisão a correr bater à porta do casebre para dar voz à pobreza. Ora essas reportagens apenas servem para deprimir ainda mais o país, dando uma má imagem de Portugal, das nossas instituições democráticas, do nosso Governo e, sobretudo, do Estado Social. Muitas vezes comi as batatas cozidas secas acompanhadas com azeite rançoso ou com banha de porco ou os chícharros misturados com couves cortadas sem pinga de gordura, quer fosse vegetal ou animal. E não morri. Nem ninguém foi lá a casa perguntar se tinha fome, se dava banho ou se apenas bebia meio copo de leite ao pequeno-almoço. Antigamente passávamos fome e ninguém se metia connosco, nem ninguém tinha prazer em noticiar a pobreza alheia. Quando andava na tropa e vinha de viagem até cá cima para visitar a família, muitas vezes comi uma sandes de molho de vitela. E ainda cá estou. E também ninguém me entrevistou para o jornal. Cada um vivia como podia sem disso fazer alarde. A pobreza era vivida com vergonha e todos queríamos sair dela. Hoje todos querem ser pobres para aparecerem na televisão ou nos jornais, para serem citados pelos políticos, para serem beijados, abraçados e elogiados pelo presidente da República, para fazerem parte das estatísticas, para lhes darem roupa, comida, carinho, educação e protagonismo. Ser pobre hoje é quase um estatuto. A não se ser rico, o melhor é ser-se pobre. Pois os remediados são tão pobres como os pobres mas não são tão ajudados, nem aparecem tanto na televisão, nem nos programas de apoio ao que quer que seja. Está provado que o cidadão português necessita de ser apoiado em tudo. Um pobre chegou ao pé de um ministro e pediu-lhe uns óculos porque via mal ao longe. Que teve uns mas partiu-os. Outro lamentou-se que os pais dormem nuns cobertores no chão. Uma criança pobre confessou que gostava de fazer uma colecção do Mundial mas o pai não o deixou gastar dinheiro com cromos. À primeira vista todos estes depoimentos são enternecedores. Mas se o senhor ministro desse uns óculos a todos aqueles que os partem até eu partia os meus que já estão gastos, velhos e cansados como o dono. Eu cheguei a dormir num enxergão de palha coberto por um liteiro escutando o gracioso retinir dos guizos das vacas dos meus avós. E que encanto tinha aquele tlintlintlintlim.»

 

Depois de ouvir o meu amigo atentamente, e sempre com um sorriso nos lábios, disse-lhe em jeito de remate, pois tinha de ir passear o cão: «Catarina Portas tornou a falar aos jornais do seu sucesso empresarial e disse textualmente que “o nosso atraso pode ser o nosso avanço”. Com tanto e tão bom atraso é bem possível que esteja carregada de razão. Nós só lá vamos se potencializarmos aquilo no que somos bons: pobreza, lamechice e atraso. Então avante camarada avante…», levantei-me e fui-me embora. Ele, com um sorriso maroto nos lábios, atirou-me: presunção e água benta, cada um toma a que quer…

 

 

PS – Por falarmos em apostar no nosso atraso para conseguir o progresso, aqui fica uma proposta arrojada. Neste Inverno invente e misture peças clássicas gastas, com peças novas dos saldos, dado que agora ninguém se atreve a criticar seja quem for por andar com as calças rotas, os casacos coçados e as sapatilhas sujas, pois isso é tão essencial como usar marcas de criadores nacionais. E sempre fica mais barato. As peças com influências dos anos 50 e 70 invadem as passerelles e representam uma moda orgulhosamente nacional. Por isso tente, pois é no tentar, dizem os mais criativos e empreendedores, que está o ganho.

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