O Homem Sem Memória
47 - Bem avisou o agente da autoridade: “Ó senhor Martins, não me faça uma desfeita dessas. Os Pereiras foram sempre uns ranhosos. Uns cheios de fome. Agora com o contrabando lá vão comendo carne do talho de vez em quando. Mas é sol de pouca dura. São uns desgraçados. As mulheres são para aí uma piolhosas. Nada que se compare às lá de casa.”
Mas o guarda Martins nada de lhe ligar. Quando largava a presa não lhe tornava a deitar o dente. Por isso respondeu com maus modos: “Sai-me da frente, filho de uma giesta seca. Ou me largas ou nunca mais passas um saco de café que seja. Tu sabes como eu sou, abocanho e largo. Sou um caçador de boca fina.”
Mas ele voltava ao mesmo: “Ó guarda Martins, nós sempre o tratámos bem, servimos-lhe sempre o melhor pedaço de presunto, o salpicão mais refinado, a melhor galinha, o coelho do monte mais vistoso. A melhor franga…”
“Deslarga-me cabrão. Quero lá saber da tua franga. Já está muito usada. Eu gosto delas virgueiras. A tua mulher tampouco me importa. É um pedaço de toucinho amarelado com sabor a ranço. Comer carne do mesmo animal causa-me fastio. Deixo para ti os restos da porca gorda e da franga desarranjada,” replicava o guarda-fiscal enquanto tocava o cavalo para a frente.
Mas o contrabandista não se dava por vencido. Os pobres possuem essa coragem imensa de nunca esgotarem a sua capacidade de súplica. E tornou: “Ó Martins, não me troque por esse miserável do Pereira. Ainda lhe põe remédio dos ratos na comida. Até comprei uma banheira de cobre para a Rosita dar banho em água de rosas. Comprei-lhe um vestido novo e umas cuecas modernas no Gomerzindo de Xinzo.”
“Umas cuecas novas?”, admirou-se o guarda. “E para que as quer? Sempre andou com as partes ao léu.”
“É para lhe agradar”, respondeu o contrabandista. “A pombinha chama por si muitas vezes. Diz que gosta dos rebuçados que lhe dá.”
“Desses rebuçados já tu lhe deste antes de mim, meu debochado. Eu sempre gostei de as adestrar. Mas a tua Rosita já estava treinada. Por isso perdi o interesse. Podes tu voltar a dar de mamar à miúda, meu canalha. Deslarga-me filho-da-puta.”
“Está visto que não me conhece. Carne que eu não como dou-a aos cães”, proferiu cerrando os dentes o contrabandista. E pôs-se a correr pelo monte fora como um galgo. O guarda Martins tirou a pistola do coldre, fustigou o cavalo com o pinguelim e correu à desfilada disparando tiros de raiva. Mas aqueles ermos eram bem melhores de percorrer a pé que de ginete. E a cavalgadura do guarda-fiscal fora treinada para trotar com fidalguia e aprumo em campo raso. Por isso retraiu-se na hora da caçada.
Ao longe ecoou o grito de vingança do contrabandista: “Hei-de matar-te, meu filho de uma grandessíssima puta, nem que seja a última coisa que faço na vida. De mim ninguém se fica a rir.”
Os tempos foram passando. O agente da autoridade continuou na sua vida de contrabandista e pedófilo. O contrabandista perseverou na sua rotina de cabrão, cheira cus e chefe de família. Aliciou vários guardas-fiscais, outros tantos republicanos, um que outro agente da judiciária e dois pides, dos bons. Conseguiu ganhar mais algum dinheiro, distribuiu benesses, fez-se amigo do sargento e conseguiu mesmo comprar uma pistola de guerra como a que usava o guarda Martins. Mas a sua arma preferida passou a ser uma navalha de ponta e mola que afiava todos os dias. Foi também apalpando terreno, mas com muita cautela, pois sabia que o guarda Martins tinha bons e leais amigos e espiões competentes distribuídos um pouco por todo o lado.
Primeiro foi falando mal do homem que o tinha abandonado e desprezado, dizendo que ele era um debochado, um pedófilo e um traidor. Todos os que o ouviam lhe respondiam da mesma maneira: “Olha que tu!” E ele: “Posso ser aquilo que sou, mas de mim ninguém se fica a rir.” Depois começou a persegui-lo com toda a experiência de homem do contrabando. Estudava-lhe as rotinas, anotava mentalmente as horas dos passeios e sabia de cor os dias em que invariavelmente o guarda Martins ia a casa da família Pereira locupletar-se com o gado da capoeira.
Como já se disse, o guarda Martins não fumava, não bebia vinho nem cerveja, mas libava, quando saciado de sexo, um whisky velho de marca a que juntava um charuto cubano. Escusado será dizer que nesses dias, o seu sexto sentido se desvanecia e muitas das vezes era o tino do cavalo que o conduzia a casa sem se enganar no caminho.
Era noite estrelada e fria quando o cavalo e o cavaleiro, bufando ambos das ventas, viram aparecer ao longe um vulto embuçado numa capa de burel. O cavalo relinchou. O guarda Martins berrou: “Quem vem lá que faça alto senão é um homem morto.” Mas o vulto não obedeceu. O guarda Martins sacou então da pistola e, dando uma chupadela no charuto, tornou a ameaçar: “Quem vem lá que faça alto senão é um homem morto.” E mais uma vez o vulto nada de obedecer. Quando chegou mais perto, o vulto desembuçou-se e deu lugar à fina figura da Rosita em cima de umas andas que gritou muito alto o nome da guarda. Então o cavalo empinou-se e fez com que o surpreendido guarda caísse ao chão. Quando se sentiu sem carga, a montada do agente da autoridade Martins pôs-se em fuga deixando o seu estimado dono estatelado no chão. Por detrás da Rosita surgiu o seu pai que se aproximou do surpreendido guarda e lhe deu com o cipó de torgo na cabeça. Desfalecido, mas não inconsciente, viu como o contrabandista lhe apertava as mãos e os pés como quem se prepara para matar um animal.
O guarda ouviu o contrabandista dizer para a filha: “Chega-me aí a navalha.” “Para que queres tu uma navalha, filho de um reco?, balbuciou o guarda Martins. “Para te capar”, respondeu a Rosita. Então baixaram-lhe as calças, as cuecas e, com gesto certeiro, de um só golpe deceparam-lhe o pénis. “Este já está”, informou o pai. “Mete-lhe o rebuçado na boca, para que desfrute”, pediu a Rosita.
O contrabandista benzeu-se e assim fez.