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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

10
Jan11

A tensão e o polvo frito com amêijoas e camarão

João Madureira

 

Escrevo esta crónica debaixo de uma grande tensão. É só tensão, tensão e palavras umas atrás de outras, como se a escrita fosse um caminho que vai dar a algum lado. As palavras são tensão, a vida é tensão. Tudo tende para o eufemismo e para o mais além. A alegria é tensão. A tristeza é tensão. Toda a tensão tende para a paranóia.

 

Gostaria de escrever algo de útil, mas creio que não sou capaz. Tendo, como já afirmei anteriormente, cada vez mais, para a tensão. Tudo o que leio me orienta para o mesmo caminho. Para o caminho tenso da realidade. Para a depressão. Para a economia. Para a depressão tensa da economia. Ou para a economia tensa da depressão. Ou, ainda, para a tensão tensa da epifania.

 

Deus do céu, ao que isto chegou. Uma pessoa, mesmo que não queira, é obrigada a ler o que vem nos jornais. Todos são unânimes em dizer que Portugal se portou como uma cigarra. Mas, por outro lado, os números evidenciam que as dívidas ao Fisco davam para pagar todo o défice deste ano e ainda sobrava para pagar os gastos com a Casa Civil do presidente da República. São cerca de 12,8 mil milhões de euros. O problema é que não há gente capaz de cobrar tal dívida. A economia portuguesa estagnou, a dívida cresceu e por isso somos obrigados a financiar-nos no estrangeiro. Ou seja, o país está de tanga em pleno Inverno.

 

É a paranóia completa: 600 mil desempregados, o FMI está aí à porta, a banca portuguesa tem o seu financiamento em risco, o TGV ameaça, ao mesmo tempo, prosseguir e estagnar, os políticos ameaçam-nos com boas intenções e sacrifícios. Além disso aumenta o IVA, as deduções fiscais vão diminuir, os salários na função pública vão sofrer cortes significativos. Vão subir as rendas, o crédito, a água, o gás, a electricidade, a gasolina, as portagens e os transportes.

 

E de novo sou invadido pela tensão. Pela depressão. O meu mundo está a ficar cada vez mais curto e pobre. Morreu Bobby Farrell, a cara e o corpo dos Boney M, e a irmã mais velha da família Von Trapp, protagonista do filme Música no Coração. E a Bolsa de Lisboa encolheu 6,3 mil milhões de euros em 2010.

 

E se tudo isto não bastasse, o constitucionalista Gomes Canotilho disse que “um presidente não é neutro nem moderador, é um cargo político. Todos temos as mãos sujas.” Afirmação que contradiz todo o argumentário político de Cavaco Silva, que além de não ler jornais, não ter dúvidas e raramente se enganar, afirmou que para serem mais honestos do que ele, os outros candidatos à presidência da república tinham de nascer duas vezes. E mesmo assim…

 

No entanto permiti-me que vos cite Vasco Pulido Valente (Confiança, Público de 7 de Janeiro de 2011), o emancipado, e putativo, opinion maker do regime, ele que é tão british, que não morre de amores pelas esquerdas, e virtuoso deputado do PSD seleccionado por Cavaco Silva: “Verdade que 300 mil euros não são uma fortuna e que a excitação da época levava com naturalidade a excessos lamentáveis. Só que a alegada candura de Cavaco não o recomenda. Quem se envolveu – porque ele de perto ou de longe se envolveu – na trapalhada do BPN não é aparentemente a criatura indicada para superintender, com o seu conselho e a sua prudência, a economia de Portugal inteiro. Quem nos garante que do assento etéreo a que tornará a subir não sairão opiniões ruinosas para o país? Quem nos garante que esse primoroso economista que tanto respeitávamos não se deixará enganar por um trafulha qualquer da Venezuela ou da Líbia? O dr. Cavaco pede confiança aos portugueses; e faz muito bem. Mas, com o caso BPN perdeu ele próprio a confiança dos portugueses.”

 

Dizem os sociólogos que cada vez mais as pessoas precisam de se envolver na cidadania com ideias. As lideranças carismáticas têm de fazer um enorme esforço para administrar o carisma. Daí as eleições para chefia da nossa república serem aquilo que são: um enorme vazio de ideias, com personalidades políticas que não conseguem entusiasmar nem os mais intrépidos militantes partidários.  

 

Lá fora, o Papa criou uma agência financeira contra a lavagem de dinheiro. Cá dentro, o Governo acusa Cavaco Silva de “branquear” Oliveira Costa. E o presidente, por causa das coisas, e apesar das pressões, decidiu promulgar o Orçamento de Estado de 2011. Isto é o que se chama serviço público. E é por estas e por outras que vamos tornar a eleger um homem desta grandeza.

 

E se tudo isto não bastasse, o Expresso diz-nos que 2011 vai ser um ano mais triste e escuro porque várias câmaras vão reduzir o apoio a associações e os fundos para festas e bailes populares, com a firme intenção de poupar milhões. Várias aldeias do país vão ter a luz cortada durante a madrugada, obras estruturantes vão paralisar, vai diminuir drasticamente a cedência dos autocarros, as excursões, os almoços e as romarias subsidiadas.

 

E como se não bastasse a crise económica, aí vai mais uma má notícia: um relatório do GAVE refere que os alunos do 8º ao 12º ano de 1700 escolas do país não conseguem estruturar um texto encadeado, explicar um raciocínio com lógica, utilizar linguagem rigorosa ou articular conceitos.

 

Outra: Francis Obikwelu, referenciado pelo El País como implicado na operação “galgo”, nega as suspeitas, lembrando que na sua vida só tomou vitaminas e que sempre correu limpo. E disso somos nós testemunhas, sempre o vimos correr limpo e, mais do que isso, envergando roupa desportiva de marca e muito colorida.

 

 

 

PS – E por causa da crise, mas mudando de paradigma, aqui fica uma receita de polvo frito com amêijoas e camarão, que encontrámos no livro “Receitas Bagos d’Ouro”, cujo produto das vendas reverte a favor das crianças carenciadas de São João da Pesqueira e Sabrosa.

 

Ingredientes para quatro pessoas adultas, ou para três adultos e duas crianças em idade escolar básica: 800 gramas de polvo cozido e cortado às rodelas; 12 camarões selvagens descascados; 28 amêijoas; 8 dentes de alho esmagados; azeite virgem extra q.b.; 16 batatinhas novas cozidas; coentros.

 

Confecção: Tapa-se o fundo de uma caçarola com azeite, deitam-se de seguida os alhos, os coentros, as batatinhas e os camarões. Assim que estes estiverem fritos, viram-se e junta-se-lhes as amêijoas. Quando que os ingredientes estiverem a fervilhar, introduz-se o polvo e mistura-se tudo até as amêijoas ficarem abertas. Se não simpatizar com o gosto dos coentros pode substituí-los por salsa. Acompanhe com um Branco do Douro de fino aroma.

07
Jan11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

45 – E foi o que fez. Durante os quinze dias nunca se afastou dos monitores. Nem mesmo quando eles se punham nos muros a namorar com as monitoras que do outro lado vigiavam o grupo feminino. O Artur ainda tentou várias vezes levá-lo consigo para as brincadeiras nas camaratas. Mas ele nunca baixou a guarda.

Logo no primeiro dia foi vacinado e ao fim da primeira semana foi fazer um raio x na companhia de muitos outros companheiros, todos bem acomodados dentro de uma carrinha, como se fossem prisioneiros. Tudo ali tinha um aspecto militar. Deslocavam-se sempre em fila indiana, vestiam bata igual, usavam o mesmo chapéu, dormiam em camaratas com vários beliches de duas camas, respondiam à chamada da voz de comando, levantavam-se cedo, faziam as camas, varriam o chão, vigiavam-se mutuamente, eram obrigados a denunciar os colegas que supostamente se portavam mal, tinham de obedecer cegamente aos mais velhos, especialmente aos que eram chefes de grupo, rezavam mal se levantavam, na hora das refeições e ao deitar. Também podiam ver televisão, mas eram poucos os que se aventuravam, pois era certo e sabido que as camas dos ausentes eram vandalizadas, os armários arrombados e as malas saqueadas.

O José pôs especial cuidado na guarda do dinheiro que os pais lhe tinham entregue. A mãe pediu-lhe encarecidamente que lhe comprasse uma regueifa em Valongo, quando lá passasse de comboio, pois desde que tinha chegado a Montalegre apenas comia do pão centeio que amassava e cozia no forno da Portela.

O José passou mal os quinze dias de férias. Cheio de saudades. Quando via alguns colegas serem visitados pelos pais chorava lágrimas amargas, sentindo-se triste e abandonado. Como se fosse um cão. Nesses momentos chegou a ter saudades dos impropérios da mãe e das conversas de bêbados do pai e dos seus amigos de taberna. E o Artur, em vez de lhe fazer companhia, gozava-o chamando-lhe maricas e quando o via a chorar convocava os outros capangas e punham-se todos a caçoá-lo. Ele limitava-se a chorar e a procurar a companhia dos monitores, não fossem aqueles garotos pervertidos e promíscuos lembrar-se de o sodomizarem em grupo como era prática entre os mais velhos. Os abusados não eram capazes de se libertarem da prática por medo a serem gozados e novamente violentados. Era comer e calar.

Mijaram-lhe na cama, ataram-lhe os cobertores, deitaram-lhe sal e açúcar entre os lençóis, puseram-lhe ratazanas na mala, e, por fim, roubaram-lhe o magro pecúlio. Fartou-se de chorar. Sentiu-se impotente mas rezou a Deus para que matasse os sodomitas e transformasse o Artur num inválido a necessitar de auxílio permanente. Deus lhe perdoasse tão ousado pedido. Se fosse capaz.

As refeições eram outra tortura. Especialmente o almoço e o jantar. O pequeno-almoço era tolerável, pois podia beber café com leite e comer a sêmea bem untada com manteiga. O lanche era sempre um pão com marmelada servido na praia. E mais nada. A refeição do meio-dia era difícil de engolir e a da noite possuía o mesmo encanto. A sopa era uma lavadura gordurosa e de péssimo aspecto. O prato principal era ou frango ou peixe vermelho assado no forno, com poucas variantes. A sobremesa era invariavelmente maçã reineta. O menu só melhorava nos dias em que ia lá comer com os rapazes algum graduado da GNR. Nessas poucas ocasiões atreviam-se a servir canja de galinha, vitela, batatas assadas e, como sobremesa, pudim, um discurso sobre as virtudes do serviço militar e da defesa da ordem pública a que os pais se dedicavam. E, como estavam na presença de jovens filhos de guardas-republicanos, era sempre feito um apelo veemente à militância na Mocidade Portuguesa, esse alfobre de virtudes, essa escola de boas vontades, essa instituição de acolhimento dos melhores filhos da nação.

Os banhos eram outra tortura. Iam a pé para a praia, de mão dada e a cantar o hino da Mocidade Portuguesa, calcorreando grandes distâncias debaixo do sol castigador. Chegados à praia, eram introduzidos dentro de uma barraca onde cada um era forçado a despir-se e a escolher uns calções do montão que fora recentemente utilizado pelo grupo que tinha ido a banhos antes. Tinham de os vestir à pressa, pouco interessando que fossem ou largos ou apertados de mais, punham-se em fila e caminhavam em direcção ao mar onde o banheiro pegava em cada um e o introduzia na onda que se aproximava ameaçadora. Arrepiados de frio e com os olhos piscos, todos voltavam a correr para ao pé da barraca onde se secavam ao sol com a pele a picar devido ao sal do mar.

E a forma não variou durante os quinze dias. Escolher os calções, correr para a água, ser introduzido nas ondas, correr para a barraca a tremer de frio e com os olhos piscos, secar ao sol e, com a pele como bacalhau, comer o pão com marmelada e regressar de mão dada e a cantar o hino da Mocidade Portuguesa. Depois era tomar banho, ser desparasitado, vestir-se, ir jantar, ver os monitores a namorar, contemplar ao longe no mar os barcos e o farol, ou então, nas noites de nevoeiro, ouvir os balidos intermitentes da sirene. Depois ir para a cama, ser incomodado, ouvir histórias escabrosas, gemidos inquietantes, ameaças preocupantes, roncos exasperantes, peidos, gargalhadas, novamente gemidos, observar masturbações, corridas de umas camas para as outras, sentir o cheiro a urina de alguns colchões e adormecer com a inquietação no peito. Para acordar cedo, tomar o pequeno-almoço, rezar, brincar, almoçar, ir para a praia, mergulhar, secar, vir embora a cantar, jantar, rezar, ouvir a sirene do farol, ver os monitores a namorar, chorar, sentir saudades, chorar, ir para a cama, ser incomodado, ser insultado, ouvir gemidos, sorrisos, ver mais masturbações, sentir o cheiro acre da urina, ver colegas a dormir com os olhos quase totalmente abertos por causa das lombrigas, sentir novamente saudades, chorar, rezar para que as férias acabem e para que o Artur fique paralítico e os seus horríveis colegas morram afogados no mar, etc.

Quando a tortura das férias chegou finalmente ao fim, o José ficou tão contente que nem se inquietou muito com o dinheiro que lhe tinham roubado. Guardou duas sêmeas na mala, embrulhou vários pedaços de marmelada em guardanapos com a intenção de os levar à mãe. Na viagem de regresso, enquanto os colegas compravam as regueifas em Valongo e os rebuçados na Régua, comeu as sêmeas recheadas de marmelada e adormeceu.

Para seu alívio, a mãe, quando o viu sair da camioneta, correu para ele deu-lhe um grande beijo e não falou na regueifa, apenas lhe disse que tinha sentido saudades suas. Ele abraçou-se a ela e chorou de alegria. O pesadelo tinha terminado. “Tudo é relativo”, pensou, “até a desgraça”.

05
Jan11

O Poema Infinito (29): a chama

João Madureira

 

Penso na clara noite que se suspende no dia que há-de vir. É esse o objectivo da luz. O meu destino funde-se nos teus olhos fixos nas pautas de música sacra. Sou eu que me abro nos desígnios do vento eventualmente autêntico pela identidade da poesia. O meu desejo abre um espaço certo onde a voz dos sonhos recomeça a nascer. Sou agora fogo. No enunciado das pedras que piso sinto o intervalo entre o caminho e o caminhante. A minha vereda existe nas palavras que ardem. Essa é agora a minha condição. A certeza dos rostos, a brancura da liberdade, os fios luminosos da paz, a memória longínqua do cântico dos galos, o rosto húmido da terra. Todas as evidências se comovem. O sussurro das lâminas do sofrimento acompanha o passado. O céu eterno visita-nos no espelho da memória. Semeio nos livros as sementes da pureza. E neles regresso a uma idade nova. Existe sempre um caminho para lado nenhum. Um atalho que conduz ao sono. Propago-me de montanha em montanha ouvindo o silêncio dos pássaros. É neles que pressinto a raiz do tempo. A infeliz extensão da morte. No meio das pedras nascem as ervas que olham a nascente rente ao chão. Da pureza da água sai o mutismo do vento. Sonho com uma manhã de poemas e poetas ascendentes onde as palavras se renovam na orla dos trilhos antigos. O ar estremece na língua viva do vento. Bebo a cor do mar e teço o promontório da paixão. Da superfície das algas ergue-se a cabeça dos peixes que acreditam em sermões. Caminhamos agora na terra que somos. Todo o espaço é uma pequena ponte. Pequenas gotas de esperança sulcam-nos a pele engelhada. Descemos os degraus dos dias que hão-de vir enquanto as fontes persistem na sua sede de terra. A vida continua a iluminar-nos o caminho como a chama de uma candeia ao vento.

03
Jan11

Caminhar ao frio

João Madureira

 

Lá fora chove muito. Para o lado das montanhas as nuvens carregam o céu. Para o lado da cidade os carros enchem a estrada. E eu, em frente do computador, tento alinhavar umas palavras que me libertem por alguns momentos desta inquietação permanente de escrever. Enquanto escrevo não penso na escrita. Penso noutras coisas.

 

De repente, o país encheu-se de pobres. E não foi só o país. As televisões e os jornais estão carregadinhos deles. São uma das setes pragas do Egipto. E quando o povo passa fome temos de tomar atenção aos sinais. Por exemplo, nas aldeias os chupões deitam mais fumo e nas cidades as chaminés expelem menos. Outro sinal inquietante é a intervenção do clero. Esperem aí, não é o clero que é inquietante, é a sua intervenção. É preciso avisar desde já que sou republicano mas não sou anti-clerical. Nem uso bigode. Por isso vejam nas minhas palavras apenas um sinal de alerta, não uma diatribe contra os homens vestidos de negro.

 

Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa e responsável pela Pastoral Social da Igreja (ó diabo!) deu uma entrevista ao Expresso onde afirma, entre outras coisas, que “não podemos ficar sentadinhos no sofá”. Bem, senhor bispo, com este tempo frio e invernoso o seu apelo é já por si o cabo dos trabalhos. E penso que se nos sentarmos num banco, no escano, ou mesmo numa cadeira, a situação política e social portuguesa não se altera substancialmente. Mas o senhor bispo lá deve saber do que fala. E mesmo se mudasse apenas podia ser para pior. Além disso, que outra coisa podem fazer os cerca de 500 mil desempregados? Caminhar ao frio, apanhar chuva, molhar as botas, constipar-se? Deixe-os estar descansados em casa. Assim sempre poupam as forças, não comem tanto, não precisam de se vestir para sair à rua, podem fazer a sua vidinha apenas envergando o fato de treino, podem ver os programas televisivos matinais na caminha, enquanto os filhos estão na escola, podem ver a telenovela da tarde na cadeira de encosto, enquanto os filhos estão na escola, e podem ver o filme da noite sentados no sofá, enquanto os seus filhos terminam os trabalhos da escola antes de irem para a cama.

 

O senhor bispo disse outra coisa inquietante: “Estamos a brincar com o fogo se não tomarmos medidas para ajudar instituições próximas das pessoas a equilibrar as suas vidas”. Eu brincar com o fogo não brinco. O senhor bispo não sei. Eu não o faço porque não possuo lareira. Aqueço-me com um aquecedor daqueles que arremessam ar quente quando os ligamos. Antigamente aquecia-me com um aquecedor, ou dois, a gás. Mas tive que me desfazer deles porque acabavam sempre por criar uma atmosfera pesada dentro de casa. E as sucessivas crises nacionais, que sempre me acompanharam ao longo da vida, foram permanentemente um factor de pressão sobre a saúde e o orçamento familiar. Além disso a minha avó, e mais tarde a minha mãe, sempre me disseram que brincar com o fogo fazia com que eu mijasse na cama. Está claro que me abstinha de brincar com as brasas à lareira na presença delas, mas fazia-o às escondidas e, posso agora confessar ao senhor bispo, sem receio nenhum, que também é para isso que o senhor é aquilo que é, nunca mijei na cama. Ou melhor, mijei uma vez, quando inaugurei a minha puberdade e sonhei com as coxas da Sofia Loren depois de as vislumbrar num filme que vi no antigo Cine Teatro, ainda o senhor Zé Mota, o contínuo do Liceu, era vendedor de bilhetes e o senhor Zé Mário tomava conta do bar onde eu comprava no intervalo uma sandes de fiambre e um Sumol e a Dona Francília tomava conta do cinema. E olhe, senhor bispo auxiliar, esses também foram tempos de profunda crise e, se bem me lembro, havia bem mais pobreza, muitos menos carros, as calças dos rapazes eram cerzidas, não para estarem na moda mas porque não havia dinheiro para ter mais do que um ou dois pares, a maioria dos jovens não estudava, a maioria das mulheres não tinha emprego, grande parte dos homens eram agricultores pobres, não havia Serviço Nacional de Saúde, nem Segurança Social minimamente credível, nem subsídio de desemprego condigno, nem reformas universais, nem muitas outras coisas que agora existem e que a maioria das pessoas se habituou a usufruir sem se inteirar que é preciso trabalhar para criar riqueza, que o dinheiro não nasce nos montes como a erva, que a dignidade e a responsabilidade não são palavras vãs.

 

O senhor bispo disse ainda que, e passo a citá-lo, “que há pobres, há gente com fome, há gente aflita porque perdeu o emprego”. Pois há senhor bispo auxiliar, pois há. Mas sempre houve. E ainda lhe digo mais, ainda que me custe, sempre houve e haverá. E gente como senhor também, que pensa que só faz sentido um padre onde existe pobreza. Nesse aspecto, a Igreja é como o Partido Comunista, só medra na pobreza, só resplandece na miséria, só se transcende na desgraça. É a iconografia. Cristo era pobre. É o que por aí se diz. Existem historiadores que dão isso de barato. Mas se ele era pobre, não quer dizer que defendesse a pobreza. Ou que a achasse redentora. Mas tem de concordar comigo que o mito de um Cristo para ricos era coisa que só lembraria ao demónio. Mas, senhor bispo, desculpe-me a pergunta, considera que a Igreja de Roma, Roma e o Papa são sinónimos de pobreza? Diz-se por aí que o Estado devia desfazer-se da maior parte dos seus bens para prover à crise social que existe. Mas porque razão as instituições denominadas de solidariedade social pedem cada vez mais o apoio do Estado sem o qual, confessam, não têm capacidade de subsistir? Sabe senhor bispo, estou em crer que se a Igreja alienasse algum do seu património também podia auxiliar o Estado a tomar conta dos seus contribuintes. Então que dizer da opulência do Vaticano? O Papa, que é o símbolo universal da Igreja Católica, veste-se impregnado a ouro, transporta uma cruz de Cristo banhada a ouro, e usa um anel que é outro símbolo da sua opulência e do seu poder. Ele que é o representante de Cristo na Terra. E Cristo, entendamo-nos, é o símbolo terreno da pobreza, dos pobres de espírito, dos desalojados, das vítimas da guerra, das vítimas da desgraça e da doença.

 

O senhor bispo diz ainda que “temos na política mais gestores do que líderes”. Não sei se é verdade, mas sei, isso sim, que é verdade que há demasiados homens de cabeção e batina a imiscuir-se na política. Quando vêem que o poder espiritual se esvazia depois de avanços civilizacionais, passam à guerrilha política vestidos de cordeiros do Senhor. Ganhem juízo, comprem umas sandálias e agarrem num bastão e percorram outra vez o caminho de Damasco. A seguirem pela senda da prestidigitação e do maquiavelismo, Deus pode muito bem nunca lhes perdoar a vergonha. Se é que acreditam nele. Olhe que usar o preservativo não deve ser nunca o tema central do apostolado de uma fé. A camisa-de-vénus é um regulador social, um acto de higiene e de liberdade individual. Só mais uma questão para terminar: Se Cristo, os seus apóstolos e Maria Madalena fossem vivos, acha que só teriam relações sexuais para procriar? Eu, que sou um homem de fé e acredito nos homens, vou cometer a heresia de afirmar que se Cristo fosse vivo, ele mesmo usaria a camisinha se disso tivesse necessidade. Cristo queria salvar as almas dos homens porque os amava e pretendia que eles vivessem alegres e felizes.

 

PS – Se são católicos, agora no novo ano podem adquirir para oferecer aos mais necessitados fatos, camisolas, camisas e cintos na Zara ou na Modalfa, pois os pobres de hoje não aceitam roupa em segunda mão, comprada nos ciganos ou nos chineses. E têm toda a razão, lá por serem pobres não são obrigados a vestir roupa que já foi usada, confeccionada com defeito ou fabricada com matéria-prima de reduzida qualidade. Também têm a sua dignidade, mesmo não parecendo.

 

Aos seguidores de outros credos, e mesmo aos agnósticos, o apelo é o mesmo. Nunca se esqueçam que a pobreza não distingue orientações de qualquer tipo. E muito menos as sexuais.

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