61 – Sábado de manhã, quando o dia começava a resplandecer, quando os pássaros prolongavam os seus voos, quando as flores começavam a brincar com a luz do sol e com as cores do arco-íris, José lia, sentado num banco do jardim, “O Malhadinhas” e não parava de sorrir e de se maravilhar com a prosa do escritor beirão. Continuava afectado com a ausência da sua namorada, mas tentava diversificar os motivos de desorganização sentimental. Por isso nada melhor do que saborear a genial prosa de Aquilino Ribeiro. Então ela apareceu como um anjo vestido de mulher. E, ao contrário da primeira vez, vestia saia curta. E movimentava-se dengosamente em cima das suas pernas bonitas. Aproximou-se do José sem ele dar conta e sentou-se a seu lado. Ele assustou-se. Olhou para ela e pôs cara feia. Foi o instinto o que lhe desenhou o esgar. Mas rejubilou por dentro. Ela sorriu-lhe com doçura e esperou que se recompusesse. Ele olhou outra vez para ela e manteve-se sério. Custou-lhe representar o papel de duro, mas o orgulho a isso o obrigava. Tentou concentrar-se na leitura do livro. Ela permaneceu ao seu lado calada e serena. Isso quase o fez rebentar de raiva. “Queres que me vá embora?”, perguntou ela atrapalhada. Ele não respondeu. Não conseguia atinar com o que devia responder. Queria fazer-lhe sentir que a sua ausência sem notícias o tinha magoado profundamente. O tinha feito sofrer. “José, por favor, olha para mim.” Pôs-se-lhe um nó na garganta, mas continuou a fazer que lia o livro. “Se não me ligas, vou-me embora. Custou-me vir ter contigo. Chegaram uns zunzuns aos ouvidos da madre relatando-lhe que eu me encontrava com um seminarista. Deves calcular o chinfrim que isso provocou. Ainda bem que o meu pai não foi informado na altura senão rebentava uma guerra civil em minha casa. A madre, no entanto resolveu convocar a minha mãe para uma reunião. Ela de um lado e eu do outro a esgrimirmos argumentos sobre o amor. A madre limitava-se a ouvir e a fazer que rezava. A minha mãe não se cansava de dizer que isso não existe. Que o amor é uma palavra sem sentido prático que aparece nos livros. Que é uma coisa de tontos. E eu a tentar fazer-lhe ver que se não ama o meu pai não devia ter casado com ele. “Que remédio, minha filha”, respondeu-me a minha mãe. “O amor, por aqui, é engravidar, parir e calar. Nós somos umas barrigas de encher.” O José riu-se com a acutilância da última frase. Então pediu-lhe desculpa pelo seu comportamento e deu-lhe um beijo. Ela correspondeu e aninhou-se nos seus braços. Estiveram assim durante muito tempo. A ouvirem-se respirar e a sentirem os corações a bater num ritmo suavemente descompassado. “Gosto de ti, Graça”, pronunciou ele por fim. Ela beijou-o delicadamente nos lábios e disse que também o amava. Beijaram-se repetidamente. “Porque não vieste ter comigo no outro dia?”, perguntou o José colocando a medo um travo ligeiramente amargo nas palavras. “Esperei por ti como nunca tinha esperado por ninguém na vida. E doeu-me.” “Eu sei, li a tua carta. Mas não podia fazer nada. A minha condição feminina impõe-me provações que, mesmo sendo naturais, me infligem estados físicos delicados. Todos os meses passo três dias que me põem de cama com dores. ” “Delicada é a tua forma de falar.” “Honesta e forte é a tua maneira de escrever.” Tornaram a beijar-se como dois amantes e então ele leu-lhe várias passagens de “O Malhadinhas”. E riram-se como dois tontos.