Estava eu em frente da montra da sapataria Patela a transformar o preço de uns sapatos em quilos de arroz, massa, batatas, frango, febras de porco, latas de sardinha, atum, garrafas de azeite, dúzias de ovos, embalagens de leite, pão e vinho, quando o H., olhando para o meu ar de espanto, disparou à queima-roupa as seguintes palavras que ele atribuiu a Fukuyama, o profeta do fim da História: “As ideologias vergaram-se ao apelo de líderes carismáticos. É a rivalidade pessoal entre políticos que move os líderes carismáticos. É a rivalidade pessoal entre políticos que move o mundo e não as suas diferentes ideias. O meio utilizado tornou-se o fim. O poder deslocou-se do Parlamento para a televisão. A imagem é mais determinante do que a substância. E o Estado, ainda hoje um enorme centro de poder, perdeu o seu lugar determinante com as sucessivas crises e a globalização”.
O R., depois de atravessar a rua na passadeira para experimentar os reflexos de um condutor mais acelerado, disse a rir, como é seu costume e feitio: “Foi o rancor a Sócrates o que levou Pedro Passos Coelho a desencadear a actual crise política. Pensou que bastava provocar novas eleições para despachar o Sócrates para a reforma. Mas parece que a porca lhe vai sair mal capada. Em vez de se preocupar essencialmente com a situação do país, optou por apostar na sua carreira política. Confundiu os seus desejos com a realidade e isso pode vir a ser-lhe fatal. Além disso, o povo português não é apologista de vindictas, insultos e desqualificações. Já acusaram o homem de tudo, mas ninguém conseguiu provar nada. E Pedro Passos Coelho, em vez de apontar ideias e soluções para o país, fala mal de Sócrates e do Estado. Em vez de apresentar projectos, diz mal de Sócrates e do Estado. Quando alguém o questiona sobre um futuro governo de coligação, Pedro Passos Coelho diz que ou ele ou Sócrates, os dois nunca, como se o dirigente do PS tivesse lepra; quando lhe falam dos problemas da educação ele responde que a solução é afastar Sócrates para acabar com a escola pública e assim emagrecer o Estado; quando lhe falam de economia e finanças responde que com Sócrates não faz governo; quando lhe falam de agricultura, explica que o engenheiro Sócrates é o principal responsável pela crise do arroz, pelo tamanho do tomate, pela falta de cor das cerejas ou dos morangos, pela subida do preço dos cereais no mercado internacional; quando lhe falam de cultura diz que o engenheiro Sócrates é o principal culpado por em média um português ler menos do que um livro por ano; quando o questionam sobre o desporto refere que o engenheiro Sócrates é o primeiro responsável pelo facto de o Benfica ter perdido o campeonato nacional e pelo facto de alguns atletas de alta competição terem falhado provas internacionais devido a lesões, pois com um governo por si chefiado acabam as lesões, a estações do ano voltam ao normal, o míldio deixa de atacar as vinhas, o Benfica volta a ser campeão e os sacanas dos transmontanos, esses calaceiros, vão ter de passar a pagar portagens. Quando o questionam sobre o Serviço Nacional de Saúde refere que os privados podem fazer melhor e que a culpa da falta de aspirinas e pensos em alguns hospitais, ou Centros de Saúde, é culpa do José Sócrates. Além disso, o engenheiro Sócrates é culpado…”,
“Podes calar-te um momento e deixar falar o F.”, propôs o J. Mas o F. informou que não lhe apetecia falar pois as sondagens agora resolveram ir contra a realidade. E ele recusa-se a admitir que, depois de tudo, o povo português se volte a enganar dando a vitória ao PS do engenheiro Sócrates. “A ser assim, não é o povo que tem de mudar de governo, mas sim o PSD que tem de mudar de povo”, atirou-lhe o R. com malícia. Ele nem chus nem bus.
O H. voltou a Fukuyama: “Os países não são pobres por falta de recursos, mas porque lhes faltam instituições políticas efectivas”.
“Olha, é como o parlamento, a cada eleição que passa vai perdendo qualidade. Cada vez mais se parece com as assembleias municipais onde pouco se aprende e nada se resolve”, insistiu o R.
“Cuidadinho com a língua, que eu sou deputado municipal e não te admito que fales nesse tom jocoso”, advertiu-o o A. “Bem, então condescendo, o parlamento parece uma assembleia de gaiatos aos berros onde ganha a discussão aquele que falar mais alto e disser pior do engenheiro Sócrates”, disse o R.
Depois de um silêncio embaraçoso, o R. voltou à carga: “Penso que o Pedro Passos Coelho já está arrependido.” “Arrependido?”, berramos todos juntos. “Sim, arrependido. Quando lhe entregaram a chave da sede nacional ficou como um miúdo a quem ofereceram um brinquedo novo. Então sentou-se à secretária e pensou que para chegar ao governo bastava apelar aos rapazes perdidos do Peter Pan e falar mal do Sócrates. Resolveu montar uma tragédia. Ele era o bom e o Sócrates o vilão. Esqueceu-se dos princípios básicos em democracia: a educação, a tolerância e a paciência. As grandes palavras inequívocas devem ser reservadas para as grandes ocasiões inequívocas. E a paciência é a mãe de todas as virtudes. No PSD já todos pensam no senhor que se segue.”
Então aproveitei para desatar a conversa e cada um ir à sua vida: “Nem tudo o que parece é. E a vida não é uma estrada direita. Nem sempre a verdade triunfa.” E dali nos fomos todos com o coração um pouco mais apertado. A democracia tem destes defeitos. Triunfa aquele que recebe mais votos, independentemente da razão, da coerência, ou da qualidade dos seus projectos. E projectos, tal como os chapéus, há muitos e para todos os gostos e feitios.