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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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20
Mai11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

64 - O tempo passou, mas a raiva não. E se há coisa que um barrosão tenha é memória. Pode passar o tempo, mas a indignação permanece como uma verruga. É como uma doença crónica. Pode ser tratada, mas jamais desaparece.

Continuou-se a contrabandear, a trabalhar os campos, a patrulhar as aldeias. Os contrabandistas trocavam e vendiam café, gado, polvo, chocolates, bananas, sapatos, armas, azeite e farinha. Os agricultores cultivaram batatas e centeio. Os guardas autuavam os carros de bois por causa do chiar das rodas, pelo facto das aguilhadas terem a ponta de metal maior do que os cinco milímetros permitidos por lei, pelo facto de os cães não terem licença, as galinhas andarem livremente nas ruas, ou as donas de casa despejarem as águas para a via pública.

Num dia solarengo e frio, o guarda Artur à paisana, quando numa encruzilhada virava caras a Montalegre acompanhado dos seus cães de caça e exibindo várias perdizes e coelhos à cintura, deu de chofre com um jovem que não conhecia. Deu-lhe os bons dias como era seu hábito e até sorriu de contente. O rapaz não lhe respondeu, apontou-lhe calmamente a caçadeira e disparou. De seguida chegou-se junto do corpo do guarda ofegante e pronunciou: “Para não morreres na ignorância de quem te mandou para o outro mundo, faço questão em te informar que sou o filho mais velho do Justo de Padornelos.” O guarda Artur, com o espanto estampado no rosto lívido, ainda conseguiu dizer: “Não foi por querer. Disparou-se-me a espingarda.” O rapaz contrapôs: “Tiraste a vida a um homem honrado. E esse homem honrado era meu pai. Por isso vais morrer.” “Perdoa-me. Não me mates. Foi sem querer. Disparou-se-me a espingarda”, desculpou-se de novo o GNR. “Por mim até era capaz de o fazer, mas a minha mãe não o consente. Ela não te perdoa. Não consegue. Desde o dia da morte de meu pai nunca mais aquela mulher dormiu uma noite que fosse. Grita e geme enquanto dorme. Vive num pesadelo. Vai todos os dias ao cemitério. Não tem paz. Só a morte a pode acalmar. A dela ou a tua. Para mim a opção é clara. Eu jurei-lhe que te matava antes mesmo de ir para a tropa. E os Justos de Padornelos são gente de uma só palavra”, explicou o rapaz com muita calma. “Pensa nos meus filhos. Ainda são tão pequeninos!”, balbuciou o guarda Artur enquanto expelia um fio de sangue pelo canto da boca. “Que Deus me perdoe”, disse o filho do Justo de Padornelos enquanto se benzia. Depois virou o cano na direcção do coração do GNR e disparou um tiro certeiro. Ainda pensou descarregar o segundo cartucho na direcção da cabeça para desfigurar o assassino de seu pai. Mas teve dó. O seu acto de misericórdia e redenção consistiu em deixá-lo ir para o outro mundo com o rosto completo, não fosse Deus, ou alguém em seu nome, pôr-se a fazer perguntas indiscretas sobre o que tinha acontecido e quem tinha feito aquela maldade. Pois uma coisa é matar porque assim obriga o código de honra de um barrosão, outra bem diferente é despachar um GNR nervoso e fanfarrão com o rosto desfeito para a eternidade.

Este acto de vingança iniciou um período de guerra entre os vários sectores da sociedade. Os guardas, feridos na sua honra e amedrontados no seu viver, começaram a espiolhar todos os caminhos da região como se andassem atrás do bando do Juan. Os contrabandistas começaram a espiar os agentes da autoridade como quem quer afastar a peste negra. Os agricultores começaram a amanhar as suas terras com o claro receio de que uma guerra poderia rebentar entre os dois bandos e que eles seriam as principais vítimas. Os lobos quando estão feridos, ou se sentem acossados, investem ainda com mais ferocidade. O sangue clama por mais sangue. A honra por mais honra. A vingança por ainda mais vingança.

O caos tomou conta da vida dos barrosões. Os guardas da GNR começaram a perseguir e a prender os contrabandistas, e o respectivo contrabando, no território e nas clientelas controladas pela GF. Os guardas da GF, ofendidos e amargurados, responderam na mesma moeda. Tais desvarios só trouxeram à região mais pobreza. Os produtos essenciais à vida das populações carenciadas começaram a escassear. E os que ainda eram comercializados atingiram valores proibitivos. Até os cães se começaram a engalfinhar por tudo e por nada. As vacas começaram a escornar os donos mais desprevenidos e as galinhas começaram a pôr fora os seus ovos. Os porcos cuincavam tanto nas lojas que parecia que tinha chegado a época das matanças. Isto em Setembro. Mesmo o padre Zé se começou a enganar nas prédicas, a confundir os sermões, a trocar as epístolas, a carregar nas penitências. As próprias beatas começaram a ver o seu estatuto em causa. Se em épocas normais se confessavam e apenas tinham que cumprir a penitência mínima, um padre-nosso e uma ave-maria, nos tempos conturbados começaram a ser obrigadas a rezar tanto ou mais do que os pecadores crónicos. E isso trouxe-lhes desconforto e provocou uma que outra desistência no coro da igreja. Mas o pior ainda estava para vir. Que os GNR vigiassem os GF e os contrabandistas e que os GF vigiassem os GNR e os contrabandistas e estes vigiassem os GNR e os GF ainda vá que não vá. Agora os GNR vigiarem-se a si próprios é que lhes foi ousadia fatal.

No posto de Montalegre havia duas facções, uma liderada pelo sargento, Alves, que era o chefe de posto, e uma outra dirigida pelo subchefe, o primeiro-cabo Sarmento. Sabendo disto, o chefe do posto da GF combinou com o chefe do bando de contrabandistas seu amigo que montasse uma armadilha com a intenção confessa de trocar as voltas às patrulhas da GNR. Ou seja, que os contrabandistas controlados pela facção do sargento Alves fossem denunciados e presos pela facção do primeiro-cabo Sarmento e vice-versa. Com as rotinas trocadas e com os caminhos enredados, num mesmo dia as forças da GF e da GNR apreenderam mais contrabando do que em todo o último ano. Tal prodígio de eficácia foi mesmo notícia nos jornais nacionais. Alguns dos contrabandistas presos, depois de apertados por agentes especiais vindos da capital de distrito ou mesmo do comando da região norte, resolveram falar. Toda a marosca foi descoberta. E o que primeiro tinha motivado as propostas de louvores e condecorações foi transformado em castigos e transferências. Muitos dos contrabandistas foram condenados a penas de prisão, com pena suspensa, e ao pagamento de multas avultadas. Mas esse foi o preço a pagar pelo facto de se verem livres dos guardas prevaricadores. Quem não quis uma boa madrasta ficou com uma ruim mãe. A sorte é assim. Todos os guardas foram substituídos por colegas mais jovem e ainda sem vícios. E o tempo que se gastou na aprendizagem dos caminhos do contrabando, na identificação dos cabecilhas, nos contactos iniciais e no recebimento das primeiras lembranças por patrulharem os caminhos vazios, deu tempo para que a paz e a concórdia voltassem de novo a Montalegre e às aldeias vizinhas.

Escusado será dizer que os cães tornaram a passear pacatamente pela Vila e pela Portela como se fossem ovelhas, as vacas passaram a ir e a vir dos lameiros ao som de modinhas assobiadas ou a toque de gaita-de-beiços, os recos voltaram ao silêncio da engorda e as galinhas poedeiras começaram a pôr dois ovos por dia e dentro dos limites da casa dos donos. Até o Padre Zé conseguiu de novo o milagre de atinar com as epístolas, de acertar com os sermões e de administrar penitências de acordo com os pecados de cada um.

O guarda Ferreira, metido na embrulhada do contrabando por fazer patrulha com um guarda corrompido, apesar de alegar inocência, foi admoestado pelo instrutor do processo com estas palavras, muito ao gosto popular: “Tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta.” Pela parvoíce ganhou uma guia de marcha para o Porto. A Dona Rosa, enjoada com uma nova gravidez, decidiu transferir-se para Névoa, onde a vida era mais em conta e onde os filhos tinham facilidade em estudar no Liceu ou na Escola Técnica, além de poder dar um pulo à sua aldeia sempre que lhe apetecesse. A vida a dois cada vez mais era um quebranto triste em cima de uma rotina amargurada. A solução encontrada foi um bom remedeio. 

18
Mai11

O Poema Infinito (48): tempo indigno

João Madureira

 

vivemos tempos indignos onde os aprendizes de feiticeiro se escondem da razão debaixo das pedras do poder e a miséria de novo aí vem erguendo lagartos ao sol por isso dizes que os métodos do vento são antigas fórmulas de palavras douradas pelas sementes do silêncio e o silêncio volta à superfície para sentir o corpo do mar onde ainda pesa o sal e a luz verde e de novo o corpo cai em cima da idade e a superfície da idade produz um sismo da mesma intensidade do voo dos pássaros e o destino volta a ser a extensão infindável do sonho dos homens e um outro fogo sobrevoa as planícies escritas pelo suor dos camponeses daí as tempestades tolherem a árdua escrita dos poemas furiosos onde os relâmpagos incendeiam as searas do desejo onde a arte dança inebriada pelo fogo líquido dos alquimistas e onde deus é a efémera alegria das sombras por isso as flores rejeitam o nascimento de mais pétalas e os colibris exaustos suspiram por voos normais e os verdadeiros feiticeiros agravam o impossível regresso do paraíso e os gnomos com gestos desenfreados abrem a sua pele numa tentativa de remediar o mal esse é o conhecimento do inferno onde os inocentes choram o engano de deus e as palavras estilhaçam o pudor e consomem a verdade numa paz de fragmentos onde cristo expõe de novo as suas chagas para espanto dos seus fiéis seguidores que mais uma vez exaltam a fragilidade da sua religião interior como se isso fosse um milagre consumado enquanto perdemos o céu e a chuva e o sol das invectivas da fé só aí os dedos desgastados pelas carícias limpam as lágrimas dos amantes separados enquanto os pecadores engolem os espinhos da luz da redenção enquanto os apóstolos conduzem o seu rebanho ao despenhadeiro da esperança e as bocas amanhecidas pregam o abandono e a solidão por isso se perpetuam os infernos como tesouros estragados de dor e a ilusão conserta rostos sulcados de rugas enquanto a ausência incendeia as raízes insidiosas da lógica e da razão enquanto alguém rouba felicidade dos falsos abismos são esses os deuses ilegítimos da eternidade

16
Mai11

Dialécticas e copos de vinho

João Madureira

 

Depois de almoçarmos umas excelentes costeletas com batatas fritas no Manco e de as acompanharmos com um tinto da casa com origem na região de Valpaços, fomo-nos estender na relva do jardim, como quatro jovens irreverentes, cada qual acompanhado pela respectiva garrafa de água das pedras para ajudar a digestão. É que os anos vão passando e as digestões cada vez se tornam mais lentas e difíceis.

 

Pusemo-nos a olhar o céu, na ocasião decorado com nuvens altas de um branco sagrado. Distraidamente, e talvez um pouco sugestionados pela pinga, identificámos várias aparências: um cavalo de corrida, uma égua barrosã, o castelo da Walt Disney, um barco veleiro, um dos submarinos do Paulo Portas, Cavaco Silva, Nossa Senhora de Fátima e os três pastorinhos, o beato João Paulo II, uma sereia, o rosto da minha avó, Pinóquio, o Rato Mickey, José Sócrates e Pedro Passos Coelho.

 

Com a visão do candidato do PSD a primeiro-ministro, logo o F. se entusiasmou e teve mais uma das suas tiradas filosóficas: “O PPC sofre da síndrome das areias movediças. Sabe que se vai enterrar, mas hesita entre a morte lenta, se ficar quieto, ou a morte rápida, se se mexer. E quanto mais se mexe mais se enterra.”

 

O L., homem mais prudente, atirou-lhe sorrateiro: “Não confundas a nuvem com Juno”. O que, convenhamos, é uma tirada de se lhe tirar o chapéu. Todos nos rimos, até o F. E dali nos fomos entreter ao estilo do PSD, a jogar às cartas.

 

Enquanto o R. tirava o plástico ao baralho novo, o L. disse que a ser verdade o que vem no Expresso, que a Troika vai reestruturar Portugal de alto a abaixo, o melhor será dispensar os políticos e entregar isto aos directores-gerais dos respectivos ministérios. Depois de aprovadas as medidas impostas pelo FMI, o novo governo vai ser um verbo-de-encher. Eu baralhei as cartas, o L. partiu o baralho e o F. deu-as.

 

E assim nos entretemos durante um bom pedaço da tarde, jogando à sueca por entre várias insinuações, e mesmo algumas acusações, de incapacidade para baralhar com sabedoria, de falta competência para prever as jogadas, de gerir mal os trunfos, de destrunfar a desoras, etc. Tal e qual as acusações da oposição ao governo e do governo às oposições.

 

Finda a contenda, resolvemos ir petiscar como pretexto para beber mais uma ou duas garrafas de tinto do Gorgoço. E discutimos política. A política, entre nós que somos bons amigos, só é analisada enquanto comemos e bebemos. Noutros contextos é um jogo perigoso, que já provocou zangas, insultos e amuos. A comida e a bebida são um excelente apaziguador. Mas convém controlar sempre os índices da bebida. Pois, quando se desequilibram os pratos da balança, pode rebentar a guerra. E, como todos sabemos, um homem atestado de razões etílicas a discutir política é um verdadeiro kamikaze. 

 

Comecei eu. Pois sou o mais atrevido. E desta vez com algo mais chegado à cultura. O escritor Mário Vargas Llosa, o Nobel da literatura de 2010, disse numa entrevista que a Net liquidou a gramática, gerando “uma espécie de barbárie sintáctica”. Os jovens de agora (“se fossem só os jovens”, comentou o R. enquanto metia um pedaço de queijo à boca) abreviam palavras nas redes sociais e nos SMS. Os meus amigos olharam para mim como se estivessem à espera de mais alguma coisa. Eu, de maroto, enrolei uma fatia de presunto, adicionei-lhe um pedaço de queijo e enfiei-os na boca. De seguida trinquei um pedaço de pão centeio, mastiguei tudo bem mastigado, salivei a rigor e engoli. E eles ainda à espera. Fazendo-me distraído, peguei no copo de vinho e sorvi um trago satisfatório. Dei o estalido com a língua para manifestar o bem que tudo aquilo me soube e, calmamente, peguei no meu bloco de notas e li as palavras do escritor peruano: “Se escreves assim, se falas assim, é porque pensas assim, e se pensas assim é porque pensas como um macaco. Isso parece-me preocupante. Talvez as pessoas sejam mais felizes assim. Talvez os macacos sejam mais felizes do que os seres humanos. Não sei”.

 

“Eu não sei se os macacos são mais felizes do que humanos, mas de certeza que os portugueses são uns infelizes. O que poderá significar que sendo os portugueses infelizes são mais humanos e sendo mais humanos são diferentes dos macacos”, complicou o L. O vinho do Gorgoço tem destas contra-indicações.

 

O F., molhando apenas os lábios com o vinho, lamentou: “Quem passou uma Páscoa infeliz em Portugal foi o presidente da Comissão Europeia que viu o seu partido destruir aquilo em que tanto se empenhou. Veio nos jornais que, para Durão Barroso, a forma como o PSD supervisionou o chumbo do PEC e a leviandade de que deu mostras ao provocar uma crise política em Portugal, foi um erro que contrariou os planos da própria União Europeia. A estratégia de Bruxelas passava por almofadar a situação económica e financeira portuguesa com a nítida intenção de ganhar tempo até que um novo mecanismo de ajuda pudesse entrar em vigor. Com a leviandade do PSD tudo ficou comprometido”. “Por isso é que os barrosistas ficaram de fora das listas do PSD para as legislativas”, lembrou o R. E, enquanto carregava no tinto, sobrecarregou ainda mais nas cores, como é seu timbre: “Pedro Passos Coelho não tem programa eleitoral, não tem ideias, não tem prática política suficiente, e, muito mais grave do que isso, não tem qualquer tipo de experiência governamental, nem equipa para governar Portugal. Entregar-lhe os destinos do país é como entregar os comandos de um Boeing com um motor a arder e com o outro aos soluços ao piloto estagiário.

 

O L., mais conservador, resolveu citar Miguel Sousa Tavares: “O voto útil, desta vez, é entre duas inutilidades: uma, porque já sabemos onde nos leva; a outra, porque temos todas as razões para suspeitar que nos levará para pior ainda”. “Não vem mais vinho para esta mesa”, exclamou o R. enquanto sorria e bebia mais um copo.

 

Eu, na tentativa de ironizar, resolvi trazer Eduardo Catroga à liça. “Parece que já abriu a caça ao funcionalismo público lá para os lados do PSD”. O L., como bom conservador, sorriu e fez o desabafo: “Explica-te melhor”. E eu expliquei-lhe, como é meu timbre, socorrendo-me das próprias palavras do dito: “Há tanta coisa para caçar no Estado e tanta gordura para cortar.” (…) Como medida adicional, é possível “cancelar entradas de novos funcionários por uns anos”.

 

“Com esta receita do PSD então é que a geração à rasca fica mesmo sem futuro”, disse o R. O F. tentou contemporizar: “O PSD também tem dito algumas verdades, por muito que nos custe a admitir a alguns de nós”. O R., bebendo outro copo, declamou António Aleixo: “Para a mentira ser segura / e atingir profundidade / deve trazer à mistura / qualquer coisa de verdade. O F. suspirou. E o L. levou-se dos diabos e disse para falarmos de futebol. Mas como dois são do Benfica, um é do Sporting e outro é adepto dos Dragões, propus que falássemos do tempo. E foi o que fizemos até nos irmos embora. 

13
Mai11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

63 – Se é verdade que o José, com muita pena, foi o primeiro a abandonar Montalegre, o resto da família não perdeu pela demora. O seu pai, por punição disciplinar, foi obrigado a emigrar para o Porto. A restante família, por questões logísticas, sentimentais e económicas, foi de abalada para Névoa. A história da diáspora, se a isso me autorizarem, pode ser contada em poucas palavras.

Montalegre era essencialmente uma terra de lavradores, guardas e contrabandistas. Sendo que os contrabandistas também eram, muitos deles, lavradores e agentes da autoridade; os guardas eram todos lavradores e, muitos deles, contrabandistas; e os lavradores eram quase todos contrabandistas e muitos deles guardas, ou amigos de guardas, ou familiares de guardas, que por seu lado eram amigos de contrabandistas e estes cúmplices dos agricultores, que eram guardas, etc., numa espiral de cumplicidades vertiginosas, engenhosas e lucrativas.

E todos eram igualmente caçadores. Caçavam perdizes, codornizes, coelhos e lebres. Por vezes caçavam-se uns aos outros. Numa terra de fronteira, mesmo não havendo guerra, também não existe paz. Todos vivem em ambiente de armistício. Apesar de conviverem, vigiavam-se mútua e permanentemente. Eram raposas finas. Conheciam-se todos uns aos outros, sabiam os caminhos, os carinhos, as amantes, os amantes, os deslizes, as virtudes e os defeitos. Apesar do cuidado com que conviviam, nem sempre conseguiam controlar todos os movimentos que as massas humanas protagonizam.

Tudo se acelerou num dia de chega de bois no campo de futebol do Montalegre. Lutavam os bois de Padornelos e Sendim. A guarda foi incumbida de não deixar levar para dentro do recinto os varapaus que cada homem transportava consigo. Eles, muito a custo, lá foram deixando, numa cerca à guarda da GNR, os bordões que tanto serviam para tocar o gado, como para amparar o corpo, como para marcar terreno, ou para dar porrada em caso de necessidade. E uma chega de bois é sempre a circunstância adequada para cada um fazer valer as suas forças. Ou o boi do povo faz o que tem a fazer, que é vencer o adversário, ou o povo o faz por ele. Por vezes vence o boi, mas sai derrotado o povo da respectiva aldeia. Ganhar em toda a linha é um calha. Quase sempre chegam-se os bois para logo de seguida se chegarem os povos das aldeias.

Os bordões que se juntaram à entrada do recinto compuseram uma pirâmide com mais de dois metros de altura. Mas a cara dos assistentes revelava algum desconforto. Um barrosão sem um cajado na mão sente-se meio despido. Mal os bois entraram no campo as pessoas começaram a ulular incentivando os animais à luta. Os animais primeiro olharam em volta, depois começaram a esgaravatar o chão com as patas e finalmente encaixaram os cornos um no outro com toda a força que tinham. A terra começou a tremer com o pisar dos bichos e com os pulos dos assistentes. Cada marrada dada era sentida com arrepios, gritos e assobios. O boi de Sendim, espumando da boca, numa investida lateral, fez vários lanhos no quadril do seu adversário, que o pôs a sangrar como um porco. O garboso animal, sentindo-se gravemente ferido, abandonou a luta e correu para longe do recinto. Principiaram os vivas ao boi vencedor, que normalmente são acompanhados de cajados em riste, mas que desta vez se limitaram a ser de punho e mãos levantadas e lenços a esvoaçar. Ouviram-se também vários desafios verbais que tiveram o condão de provocar uma guerra campal entre os contendentes. Mas lutar à unha é coisa para fracos. No barroso quando se bate em alguém é logo para estrumar o adversário. Um barrosão sente que ganhou a luta quando o seu inimigo cai ao chão tal e qual um carvalho abatido a golpe de machado. E, para esse feito, nada há de mais eficiente e nobre do que um varapau. Por isso cada contendor se dirigiu ao merouço dos cajados e pegou no primeiro a que conseguiu deitar a mão, sem grandes preocupações de atinar com o legítimo. Podemos dizer que os guardas foram impotentes para deter a mole humana que se deslocou na sua direcção. Apenas um guarda se armou em valente e gritou “alto senão disparo”. Mas o ulular da multidão em alvoroço e a força da turba a correr traduziram a ordem inútil. Nervoso, ou assarapantado, o GNR disparou vários tiros. Um deles abateu cobardemente um dos melhores homens de Padornelos. A luta entre civis acabou logo ali. Muitos dos presentes ainda acariciaram as pistolas que traziam camufladas nos bolsos, mas o bom senso e a honra barrosã foram mais fortes. Se alguém matasse ali na frente de todos um GNR era certo e sabido que ia passar as passas do Algarve, o povo da sua aldeia certamente seria severamente castigado e a sua família de certeza que sofreria consequências dolorosas. Há falta de guarda para abater, alguns dos homens mais irados de Padornelos, vendo o seu chefe morto no chão, enxugaram os olhos e correram atrás do seu boi. Encontraram-no a beber água numa ribeira. Com os rostos sombrios de raiva e desgosto, fuzilaram o pobre animal. 

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