A vontade de dizer não
Os meus amigos andam intrigados por eu desconfiar instintivamente das ideologias. Por vezes isso deixa-os perplexos, perguntando-se, e perguntando-me, no que é que eu acredito realmente, qual é a minha visão do mundo. O R., provocador como sempre, diz que eu sou o tipo de pessoa que passa após os primeiros 15 minutos num restaurante a debater os méritos relativos do peixe em relação à carne.
Mas a verdade é que sou mais do estilo de Tony Campolo, um conhecido ministro protestante branco dos EUA, que gosta de abanar os seus ouvintes com uma clemência confortável. Num sermão anunciou: “Há três coisas que hoje gostaria de dizer. Primeira: Enquanto vocês dormiam ontem à noite, trinta mil crianças morreram de fome ou de doenças relacionadas com má nutrição. Segunda: A maior parte de vocês está a cagar-se para isso. Terceira: O pior é que ficaram mais chocados por eu ter usado a palavra «cagar» do que com o facto de trinta mil crianças terem morrido ontem à noite.”
Apesar disso, todas as semanas as pessoas de todos os credos, religiões e ideologias continuam a rezar, e a pregar, nos santuários e nas televisões, completamente esquecidos destes factos. De novo volto a Campolo: “ Deus tem de estar farto desta merda.”
Os triunfadores do 5 de Junho vivem e morrem pela presunção de que são os génios do bem que triunfaram definitivamente sobre os anjos do mal. Pensam que tudo o que fizeram, e tudo o que aconteceu, foi intencional e brilhante. Depois de todo o idealismo serôdio do movimento “laranja”, e depois dos dias inaugurais da indigitação, o PSD e o CDS vão ter de aceitar a dura evidência de que governar é muito diferente de fazer campanha, é um passar da poesia à prosa, da celebração e babujaria à batalha e ao compromisso ou, por vezes, à derrota. E quando este governo de direita falhar, o meu receio é que as pessoas do meu país tenham medo de mais uma vez ter esperança de acreditar de novo. O perigo da desilusão é imenso porque os problemas são enormes.
O meu amigo R., vendo-me tão amargurado, argumentou, em abono da humanidade, que os melhores espécimes foram sempre maltratados ou assassinados: Pitágoras foi morto por causa de um diagrama, Séneca teve de cortar os pulsos, além de todos os santos e professores que se tornaram mártires.
Mas não se ficou por aí. Resolveu estereotipar-me: “De repente dei conta de uma tua qualidade. És do contra, possuis um sentimento de discórdia dentro de ti. Não deslizas ligeiramente pelas coisas. Apenas dás essa impressão.”
Esta foi mais uma das muitas vezes que alguém disse alguma coisa que posso considerar como verdadeira a meu respeito. De facto, o que ele disse é certo, possuo efectivamente um sentimento de oposição dentro de mim e um enorme desejo de oferecer resistência e de dizer “não”. É instintivo. Como há por aí tanta gente a dizer sim, a minha vontade é dizer não.
O meu amigo R. contou-me que, na sua perspectiva, os partidos políticos têm a qualidade de uma antiga, e famosa, escola de gatunos de Roma que era tão cara que os alunos assinavam um contrato comprometendo-se a pagar à instituição metade do que ganhassem durante cinco anos depois de se formarem.
Eu retorqui, por desfastio: “Olhando para ti, sou capaz de dizer que na nossa espécie somos todos muito semelhantes.” Ele concluiu: “Mas, apesar disso, as diferenças são agradáveis.”
Por fim lembrei-me de alguém amigo e conclui que, afinal, tinha acabado por descobrir, com amargura, como é pequena a vontade que as pessoas revelam em verem alguém ter êxito num projecto especial. E do consolo que algumas delas sentem quando o que é insignificante prevalece e todos os outros esforços vão por água abaixo. Isto sempre debaixo do manto diáfano da hipócrita camaradagem.
O R. tem razão, são a desgraça e o lixo o que dá unidade ao mundo. Supostamente, apenas a diversão torna esta perspectiva tolerável. E disse uma coisa inquietante: “Se pudéssemos transformar em lodo as falsidades corriqueiras de um dia, estrangularíamos o Tâmega, fazendo com que deixasse de correr.