O Homem Sem Memória
67 – Num belo e quente dia de Agosto, foi convidado pelo seu tio Manuel, também conhecido pelo Reza, em homenagem à sua extrema devoção a Deus e ao ritual das orações, a ir à festa da aldeia.
Foi de véspera, pois pretendia dar umas voltas pelos caminhos velhos que percorreu a pé e de burro na companhia do seu falecido avô materno. Desceu o rio no vau, mesmo junto à casa da avó, e foi até à Ribeira onde se lembrava de ver regar os tomates, os feijões, as ervilhas, as cebolas, as cenouras e os pimentos. Ainda tinha viva a imagem do avô a comer um tomate taludo e muito vermelho, depois de lhe aplicar dois cortes em cruz, lhe pôr umas areias de sal e lhe dar quatro dentadas. A ele deu-lhe uma mão cheia de morangos colhidos nas bordas do poço e no fim da faina beberam água fresca da nascente por um pimento transformado em copo.
Lembra-se de andar às carrachulas do avô, a cavalo no burro velho e atrelado à mão da avó. Um pouco mais abaixo, alapou-se junto a uma nogueira antiga onde costumava repousar e apanhar fresco. Chorou baixinho. Sentia muito a falta do avô, das suas mãos de bom gigante a partirem nozes com um murro, dos seus olhos meigos, do seu corpo enorme que lhe dava uma sensação de protecção como nunca mais sentiu. Desceu mais um pouco e visitou a Clerga onde se colhiam das melhores pavias da aldeia, boas cerejas, nêsperas e maçãs vermelhas muito ácidas, que eram as suas preferidas. De regresso a casa passou pelo chafariz e bebeu água com as mãos em concha. Cumprimentou o seu tio Artur, já bem bebido, encostado ao seu cavalo preto, que lhe perguntou quem era. Ele respondeu-lhe que era o José, o filho do seu irmão Ferreira. “O Padreco?”, perguntou o tio Artur, e continuou: “Pois olha que não te reconhecia. Até já botas barba. Estás um homem feito. Deus te abençoe, meu sobrinho. E não te esqueças de que o vinho é o sangue de Cristo. Eu, de tanto beber, vou direitinho para o céu.” “Ai vai, vai. E a beber assim vai bem mais rápido do que o que conta”, avisou-o o José. O seu tio riu-se um pouco mais e convidou-o para ir beber um copo à sua adega. O José, gentilmente, recusou. Ele, virando-se para o cavalo, disse: “Não vai o meu sobrinho padreco, vai aqui o meu rocinante.” Pegou na arreata do seu companheiro de trabalho e foi-se embora cambaleando. Quando chegou a casa já a sua avó tinha a comida pronta. Comeram os dois à lareira, apesar de ser Verão. Ele no escano. A sua avó sentada num banco com o prato no regaço. Depois da ceia, foram até casa do Tio Manuel para rezarem o terço. O filho mais velho da avó Maria tinha uma cisma por rezar que a todos incomodava. Rezava, e fazia rezar, toda a família logo de manhã em jejum, no início, no meio e no término do pequeno-almoço. A meio da manhã. No início, a meio e no fim do almoço. À hora do lanche. Antes, durante e no fim da ceia. E antes de deitar. Era enternecedor observar os olhos esbugalhados de fome e impaciência dos filhos e da mulher, quando às refeições olhavam para as panelas a fumegar e, com água na boca, iam recitando ave-marias e pais-nossos à velocidade do som. Mas de nada lhes valia, o seu ritmo é que comandava. Podiam eles despachar as ladainhas rapidamente que, enquanto o tio Manuel não desse por terminada a arenga, ninguém se atrevia a tocar na comida. Era o tocas. Aquele que ousasse servir-se antes de ele dar por terminada a reza era condenado ao jejum. Ficava sem comida e, como penitência, via-se condenado a rezar um terço inteirinho enquanto os demais comiam e bebiam. Se se ganha o céu com rezas, o tio Manuel conquistou um dos lugares mais perto do Criador. Isto no caso de Deus não ser mouco. Mesmo a sua mãe, que era muito religiosa e dada a preces e confissões, evitava, sempre que podia, ir rezar a casa do seu filho. Dizia ela que vinha sempre de lá com a língua mais seca do que a pele do bacalhau salgado. Mas havia alturas em que não se podia esquivar, nomeadamente nos aniversários da morte dos entes mais chegados, como era agora o caso. O avô José tinha morrido em Agosto. Fazia agora dez anos. Mas o tio Manuel não se limitava a rezar apenas no dia do aniversário da sua morte, todos os trinta e um dias do mês eram preenchidos com orações que, à força de tantas serem, obrigatoriamente tinham de recomendar a alma do seu falecido pai a Deus, isto no caso de Deus não ser surdo ou não entender português. O ar que lá por casa se respirava era de profundo silêncio e consternação. A excepção era feita no dia de festa. Afinal Deus também é um pouquinho de alegria. Mas no dia anterior todos lá em casa eram obrigados a duplicar a récita de ave-marias e pais-nossos. Mesmo os animais rezavam à sua maneira. Pelo menos era isso que parecia. Os cães, chegado o mês de Agosto, não ladravam, os gatos não miavam, as galinhas não cacarejavam, os chinos e os coelhos não chiavam, os recos não cuincavam, as vacas não mugiam, o burro não zurrava, nem o cavalo relinchava. Na casa do tio Manuel repetiam-se orações atrás de orações, enquanto a comida arrefecia.
Desta vez a avó do José aconselhou o neto a ser ele a comandar a reza do terço. Como andava no seminário talvez o seu filho ouvisse os conselhos do sobrinho. Ele ainda propôs rezar apenas um terço, mas o tio disse-lhe logo que não, pelo menos três que é a conta que Deus fez. A avó ainda lhe fez sinal para que insistisse. Mas ele disse que a não ser como ele mandava, no dia de festa também tinha de haver rezas nas horas das refeições, o que era uma maçada para os convidados que assim seriam obrigados a rezar pela alma dos que não eram seus. Não era que isso fosse pecado aos olhos de Deus. Mas era indelicado da sua parte obrigar a participar os seus convidados na salvação das almas dos entes queridos. A família tinha de ser capaz de resolver o problema, por conta própria.