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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

10
Jun11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

67 – Num belo e quente dia de Agosto, foi convidado pelo seu tio Manuel, também conhecido pelo Reza, em homenagem à sua extrema devoção a Deus e ao ritual das orações, a ir à festa da aldeia.

Foi de véspera, pois pretendia dar umas voltas pelos caminhos velhos que percorreu a pé e de burro na companhia do seu falecido avô materno. Desceu o rio no vau, mesmo junto à casa da avó, e foi até à Ribeira onde se lembrava de ver regar os tomates, os feijões, as ervilhas, as cebolas, as cenouras e os pimentos. Ainda tinha viva a imagem do avô a comer um tomate taludo e muito vermelho, depois de lhe aplicar dois cortes em cruz, lhe pôr umas areias de sal e lhe dar quatro dentadas. A ele deu-lhe uma mão cheia de morangos colhidos nas bordas do poço e no fim da faina beberam água fresca da nascente por um pimento transformado em copo.

Lembra-se de andar às carrachulas do avô, a cavalo no burro velho e atrelado à mão da avó. Um pouco mais abaixo, alapou-se junto a uma nogueira antiga onde costumava repousar e apanhar fresco. Chorou baixinho. Sentia muito a falta do avô, das suas mãos de bom gigante a partirem nozes com um murro, dos seus olhos meigos, do seu corpo enorme que lhe dava uma sensação de protecção como nunca mais sentiu. Desceu mais um pouco e visitou a Clerga onde se colhiam das melhores pavias da aldeia, boas cerejas, nêsperas e maçãs vermelhas muito ácidas, que eram as suas preferidas. De regresso a casa passou pelo chafariz e bebeu água com as mãos em concha. Cumprimentou o seu tio Artur, já bem bebido, encostado ao seu cavalo preto, que lhe perguntou quem era. Ele respondeu-lhe que era o José, o filho do seu irmão Ferreira. “O Padreco?”, perguntou o tio Artur, e continuou: “Pois olha que não te reconhecia. Até já botas barba. Estás um homem feito. Deus te abençoe, meu sobrinho. E não te esqueças de que o vinho é o sangue de Cristo. Eu, de tanto beber, vou direitinho para o céu.” “Ai vai, vai. E a beber assim vai bem mais rápido do que o que conta”, avisou-o o José. O seu tio riu-se um pouco mais e convidou-o para ir beber um copo à sua adega. O José, gentilmente, recusou. Ele, virando-se para o cavalo, disse: “Não vai o meu sobrinho padreco, vai aqui o meu rocinante.” Pegou na arreata do seu companheiro de trabalho e foi-se embora cambaleando. Quando chegou a casa já a sua avó tinha a comida pronta. Comeram os dois à lareira, apesar de ser Verão. Ele no escano. A sua avó sentada num banco com o prato no regaço. Depois da ceia, foram até casa do Tio Manuel para rezarem o terço. O filho mais velho da avó Maria tinha uma cisma por rezar que a todos incomodava. Rezava, e fazia rezar, toda a família logo de manhã em jejum, no início, no meio e no término do pequeno-almoço. A meio da manhã. No início, a meio e no fim do almoço. À hora do lanche. Antes, durante e no fim da ceia. E antes de deitar. Era enternecedor observar os olhos esbugalhados de fome e impaciência dos filhos e da mulher, quando às refeições olhavam para as panelas a fumegar e, com água na boca, iam recitando ave-marias e pais-nossos à velocidade do som. Mas de nada lhes valia, o seu ritmo é que comandava. Podiam eles despachar as ladainhas rapidamente que, enquanto o tio Manuel não desse por terminada a arenga, ninguém se atrevia a tocar na comida. Era o tocas. Aquele que ousasse servir-se antes de ele dar por terminada a reza era condenado ao jejum. Ficava sem comida e, como penitência, via-se condenado a rezar um terço inteirinho enquanto os demais comiam e bebiam. Se se ganha o céu com rezas, o tio Manuel conquistou um dos lugares mais perto do Criador. Isto no caso de Deus não ser mouco. Mesmo a sua mãe, que era muito religiosa e dada a preces e confissões, evitava, sempre que podia, ir rezar a casa do seu filho. Dizia ela que vinha sempre de lá com a língua mais seca do que a pele do bacalhau salgado. Mas havia alturas em que não se podia esquivar, nomeadamente nos aniversários da morte dos entes mais chegados, como era agora o caso. O avô José tinha morrido em Agosto. Fazia agora dez anos. Mas o tio Manuel não se limitava a rezar apenas no dia do aniversário da sua morte, todos os trinta e um dias do mês eram preenchidos com orações que, à força de tantas serem, obrigatoriamente tinham de recomendar a alma do seu falecido pai a Deus, isto no caso de Deus não ser surdo ou não entender português. O ar que lá por casa se respirava era de profundo silêncio e consternação. A excepção era feita no dia de festa. Afinal Deus também é um pouquinho de alegria. Mas no dia anterior todos lá em casa eram obrigados a duplicar a récita de ave-marias e pais-nossos. Mesmo os animais rezavam à sua maneira. Pelo menos era isso que parecia. Os cães, chegado o mês de Agosto, não ladravam, os gatos não miavam, as galinhas não cacarejavam, os chinos e os coelhos não chiavam, os recos não cuincavam, as vacas não mugiam, o burro não zurrava, nem o cavalo relinchava. Na casa do tio Manuel repetiam-se orações atrás de orações, enquanto a comida arrefecia.

Desta vez a avó do José aconselhou o neto a ser ele a comandar a reza do terço. Como andava no seminário talvez o seu filho ouvisse os conselhos do sobrinho. Ele ainda propôs rezar apenas um terço, mas o tio disse-lhe logo que não, pelo menos três que é a conta que Deus fez. A avó ainda lhe fez sinal para que insistisse. Mas ele disse que a não ser como ele mandava, no dia de festa também tinha de haver rezas nas horas das refeições, o que era uma maçada para os convidados que assim seriam obrigados a rezar pela alma dos que não eram seus. Não era que isso fosse pecado aos olhos de Deus. Mas era indelicado da sua parte obrigar a participar os seus convidados na salvação das almas dos entes queridos. A família tinha de ser capaz de resolver o problema, por conta própria. 

08
Jun11

O Poema Infinito (51): abandono

João Madureira

 

Anoitece o povo no seu percurso circular. Deitado sobre a sombra do meu corpo sonho com árvores que falam. Correm as mães bendizendo os seus filhos. O perfume das coisas desperta conversas inverosímeis entre os pássaros. É este o modo antigo dos sonhos se reproduzirem entre as palavras luminosas. As estações do ano tornam-se translúcidas. As paisagens desdobram-se noutras paisagens que atravessam sistemas de fantasia. Uma fresca ansiedade invade a memória dos dias. Marco no chão a certeza da morte. As crianças repartem entre si as sementes da ternura. Desce dos astros o cântico mecânico da água. O tempo mostra os seus anéis. A Terra gira em volta de girassóis teocráticos. A aldeia rumina o seu passado glorioso. Os seus caminhos têm o sossego da morte. Colchões de erva e giesta inundam todos os caminhos. Dedos de silêncio afundam a geometria dos passos das almas. A manhã estende-se agora por cima dos campos absurdos. Um sol insólito invade as casas que implodem de solidão e abandono. Um sono de sílabas devora os nomes dos que já morreram. Uma tristeza antiga invade o pânico dos velhos que esperam estáticos mais uma hora de vida. As árvores encolhidas do quintal gastam a ternura da sua sombra nos gatos. O silêncio é cada vez mais um grito ensurdecedor. Até as pedras adoecem com o abandono. Tento enxotar a solidão. O mito dos factos acciona a geometria acumulada dos textos. Epítetos alegres caem dos ramos da memória. Alguém tosse um remorso obsessivo. Os cegos enxugam os seus olhos líquidos. As mamas das mulheres arrefecem nas suas rugas. Mesmo as tábuas das portas exibem o seu silêncio seco. O ar alisa a confusão pálida dos animais. Os velhos são agora as margens de um rio definitivamente seco. O dilúvio do abandono passeia entre as ruínas do interior. Alguém chora por causa do tempo feroz. O meu olhar encosta-se às palavras e caminha de encontro à insónia. A minha angústia mutila a noite. 

06
Jun11

O engano e a verdade

João Madureira

 

Há por aí muita gente a quem lhe desagrada o êxito. A mim desagrada-me apenas um certo êxito. Aquele que não deriva directamente do mérito. Quando ele é aleatório, fruto da sorte e não evidencia uma relação directa com o esforço e o talento. Mas também sei que o êxito é sempre um acessório.

 

E a fama que ele traz é um acessório enorme. Por isso sempre construí a vida em coerência com aquilo que penso. Confesso que nem sempre é a atitude mais fácil, ou confortável. O sentimento de perda é, por vezes, enorme. E a passagem do tempo – esse mestre da vida – acaba sempre por nos empurrar no sentido de fazermos um balanço entre aquilo com que sonhamos e aquilo que efectivamente alcançámos. Por isso, aqui estou, nem triste nem alegre, nem optimista nem derrotista. Apenas irritado.

 

Segundo Mark Twain, o tempo passa e a História, quase sempre semelhante a um rio, não se repete, mas rima.

 

Há por aí muita gente que sente a necessidade de eternizar a vida num minuto. E isso dói-me, pois sei que o que nos toca viver é a efemeridade absoluta. Efectivamente sei que existe uma saturação. E é essa saturação que faz com que olhemos de forma enviesada para tudo aquilo que até há bem pouco tempo considerávamos como um dado adquirido.

 

Errar é humano. É com o erro que se aprende. Nós caminhamos na vida errando. Sempre foi assim e sempre assim será. Por vezes alguém aproveita o erro em proveito próprio, deliberadamente, apenas com o intuito de triunfar. De ter êxito. E isso é indigno. Por exemplo, nos últimos vinte anos existiu muita gente poderosa que errou propositadamente. Que se aproveitou da sabedoria popular para desbaratar tudo aquilo que foi genuíno. Para derrotar deliberadamente o próprio povo que diziam, e teimam em afirmar, defender e honrar. Pensam

que o povo é cego.

 

De facto, o povo português não é cego mas parece. E essa cegueira advém-lhe da luta pela sobrevivência. Porque a maioria do povo está no limite da sobrevivência.

 

Tudo o que recentemente aconteceu em Portugal faz-me lembrar, com mágoa, reconheço, uma empresa de marketing que, num cartaz de promoção de um filme, colocou a expressão “filme excelente”, retirada de um artigo de um crítico de referência que tinha escrito efectivamente “de drama excelente este filme não tem nada”.

 

Para terminar aqui vos deixo, como premonição, este pequeno conto minimalista sobre um casal. No entanto aviso desde já que qualquer história é uma distorção. E eu não sou imparcial.

 

Pedro e Paula resolveram ir passar um fim-de-semana (com o feriado de terça-feira encostado ao sábado, por causa da nova lei) romântico a Paris. Ele já com o cabelo a rarear e ela com uma voz demasiado rouca por causa do tabaco. Ele tinha o sistema nervoso tão à flor da pele que era perceptível através das finas linhas azuis das suas mãos e da cara.

 

Esperavam relaxar, mas apenas conseguiram viver três dias stressantes na cidade luz. Em primeiro lugar, não conseguiram encontrar um único lugar onde pudessem comer bem e em conta. Calcorrearam mais caminho pelas ruas de Paris em três dias do que em quinze de passeios diários na sua querida cidade. E viram restaurantes. Nalguns chegaram mesmo a entrar. E num até se atreveram a sentar. Mas o que lhe agradava a ele nunca era do agrado dela. Discutiam os menus com uma raiva surda.

 

As sugestões dele eram rejeitadas por motivos nutricionais, estéticos, dietéticos, humanitários, ou, quando era chamada à razão, simplesmente porque não lhe parecia bem.

 

E o contrário também era verdadeiro: tudo o que lhe agradava a ela não o aprazia a ele, quer porque era caro de mais, ou, simplesmente, pelo facto do empregado ter sido indelicado com o Pedro por, supostamente, ter entendido que falava português, ou, meramente, pela simples razão de que não tinha os suficientes conhecimentos de francês que lhe permitissem distinguir o filet mignon do foie gra ou do escargot.  

 

Durante três longos dias percorreram a maior cidade gastronómica do mundo de fio a pavio, argumentando futilmente, famintos e envergonhados.

 

Quando, finalmente, regressaram ao apartamento depararam-se com uma praga de baratas. Ela gritou de horror. Era entomofóbica. É bem possível que ele também tivesse gritado de terror. Mas parou a tempo. Ela continuou. Se os gritos tivessem sido ouvidos no Inferno teriam eriçado o próprio Satanás. Pedro já tinha visto suficientes filmes para saber que nestes casos o que resulta é uma bofetada. Mas apenas fez o gesto de querer esbofetear Paula. No entanto, o simples esboço foi tão mau como se lhe tivesse batido a sério. Ou mesmo ainda pior. Pois o grito dela indicava perda temporária de sanidade, enquanto o gesto do José foi deliberadamente intencional. E tudo isto por causa da fome.

 

PS 1 – A ingratidão é uma coisa engraçada. Mas não importa. Aquilo que hoje consideramos um engano pode ser a verdade de amanhã.

 

PS 2 – A purga da mediocridade também se faz nestes momentos de transição. Há por aí muita barata que viveu no seu buraco de poder e que agora vai sentir o acre sabor da sua aviltante subserviência. O tempo é um aliado da verdade. Por isso permitam-me que sorria quando penso na incomodidade de algumas pessoas que, em vez de servirem um partido e um ideal, apenas se serviram dos dois para prejudicarem e iludirem as pessoas e a realidade. Quem nasceu para lagartixa nunca chegará a crocodilo. 

03
Jun11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

 

66 – O José, enquanto a família viveu no bairro da Cruz Santa, conviveu sobretudo com jovens que tinham abandonado a escola há muito tempo ou nem sequer lá tinham andado. Apesar da sua ignorância, ou do seu analfabetismo, eram rapazes solidários, amigos da pândega, educados e respeitadores.

Iam ao cinema ao sábado à noite e à missa aos domingos de manhã. E também iam às festas das aldeias. Podemos dizer que o José patenteava um genuíno afecto pelas festas e romarias. Não tanto pelo seu carácter popular ou religioso, mas antes pela sua bizarria humana.

Assistia às missas fixando os rostos dos paroquianos, observando os seus gestos mecânicos durante as liturgias, escutando a musicalidade das palavras repetidas até à exaustão e que todos conheciam de cor e salteado. Doía-lhe ver os rostos amargurados dos pecadores, quase todos pobres e alguns famintos. Que pecados poderiam ter aqueles pobres desgraçados? Meu Deus, que pecados? A haver pecado seria da parte de Deus que os abandonou à sua sorte logo à nascença. Deu-lhes vida e com ela sofrimento, pobreza e abandono. Um Deus tão severo, ou negligente, não sendo justo, não podia ser verdadeiro. Mas eles, pobres diabos, adoravam-no, veneravam-mo, temiam-no, vergavam-se à sua grandeza e ao seu esplendor. Rezavam-lhe com toda a fé que possuíam. E ela era muita, mas era uma fé feita de desespero, de subserviência, de medo. Não era uma fé redentora, era uma fé sofrida. Agradeciam-lhe o pão que não tinham, a vida que não suportavam, o amor que não sentiam, a saúde que faltava, os difíceis dias de labuta, as ninhadas de filhos. E faziam-lhe promessas. Davam-lhe o dinheiro que não possuíam, acendiam-lhe velas, ofertavam-lhe as melhores galinhas e coelhos, o melhor fumeiro, ou o presunto do reco. E ainda conseguiam ter forças e coragem para se arrastarem de joelhos em sucessivas voltas pelos adros à volta das igrejas, até ficarem com os joelhos em sangue.

O José começou a suspeitar que o Deus que o ensinaram a venerar, e que o Padre Zé o incentivou a defender e servir, ou era falso, ou era cruel. E o seminário, por incrível que pareça, ainda ajudou mais no sentido desta contraditória percepção. Ele estava destinado a servir um Deus que já não amava e em quem se recusava a acreditar.

No entanto, nas festas e romarias experimentava a sublimação da condição humana. Gostava de assistir às procissões, de observar as janelas e as varandas engalanadas com as mais finas colchas, as senhoras definidas pelos seus respeitosos véus, os homens de cabeça destapada, os anjinhos com os olhos brilhantes de alegria e com os seus sapatinhos de verniz e meia branca, os meninos de calções e as meninas de longas tranças, os andores dos santos repletos de notas balouçando ao sabor da passada dos transportadores, o padre à frente, a banda atrás, mulheres a cantar, homens a suar, foguetes no ar, rezas, olhares, sorrisos.

Apreciava o cheiro das pétalas das flores que decoravam os caminhos, o odor dos cordeiros assados, as conversas de ocasião, o sorriso das moçoilas, ao lábios das moçoilas, os seios, os traseiros e as coxas das moçoilas. E se durante a tarde se divertia a falar com uns e com outros, a beber cervejas e a chalacear com os amigos, a noite passava-a a dançar. Era no arraial que gostava de dar azo à sua veia de bailarino.

As senhoras gostavam de o ver dançar, pois ele requebrava bem a anca, dava arte ao movimento das pernas e prumo às costas e à cabeça. Dançava ao ritmo da música, qualquer que ela fosse, e adaptava-se como uma luva ao seu par. Por o saberem estudante de seminário, as mães entregavam-lhe as suas filhas para a dança sem pestanejarem. Em jeito de brincadeira, por vezes diziam-lhe: “O senhor é que há-de sair um bom padre.” Ao que ele retorquia: “E porque não, cara senhora. Jesus também dançava nas festas e chegou a Santo.” De novo a mãe da moçoila: “Olhe que não é isso o que a Bíblia diz.” Ele: “Cara senhora, não há só uma bíblia. Há muitas e nem todas dizem o mesmo.” Ela: “Quer o jovem insinuar que a Bíblia não diz a verdade?” De novo ele: “Não. Quero dizer que não há só uma verdade.” Ela novamente: “E em qual devemos acreditar?” Ele sofista: “Na que nos der mais jeito.” Ela já um pouco mais séria: “O senhor anda a estudar para padre ou para judeu.” Ele carrancudo: “Lembro-lhe que Cristo não era padre mas era judeu.” Ela desiludida, virando-se para a filha: “Vamo-nos embora Madalena, já não danças mais com este atrevido.” A Madalena: “E porquê mamã, ele dança tão bem e de forma tão séria.” Ela definitiva: “Porque eu mando. Mais a mais, eu bem vejo como ele mete a perna pelo meio das tuas. Pode andar a estudar para padre, mas vai sair judeu. Ou maçónico.”

O José nunca desanimava. Dali se ia com um sorriso nos lábios encomendar-se a outra senhora que tivesse ao seu lado uma filha linda e de formas bem sublinhadas. Detestava lambisgóias magras e frívolas. Apreciava moças de coxa redonda, seio forte e levantado, cara rosada e cabelo comprido e encaracolado. 


01
Jun11

O Poema Infinito (50): perder a memória

João Madureira

 

Ver-te-ei sempre na tentativa vã de construíres a paciência com os instrumentos da suavidade e da calma como se a casa onde habitas fosse um prolongamento do teu rosto modelado pela luz. Acordas ao de leve erguendo o fundo dos sonhos enquanto encostas as mãos ao ventre. Todo o teu corpo é uma onda viva. Todo o teu sangue corre ligado à água, ao ar, ao fogo e à luz da lucidez. A terra inteira vive em ti. No centro cálido do teu sexo uma flor de desejo abre-se em espiral. O teu corpo é um braço que respira modelado pelo mar. Somos cada vez mais mortais. Essa é a nossa inocência. O livro que lês acende-se nos teus olhos. Um fogo violento incendeia a parede das palavras. A tua boca é agora ausência. A árvore da idade estende as suas mãos até às folhas mortas. Uma folha de rocio respira a terra. Um cavalo alado digere o sabor das ervas. Línguas de ar suspiram pelo mar e pela resistência transparente dos lábios. Pequenos animais encostam-se à parede do sono. Uma verdade nova vai nascer da fina embriaguez dos anjos. Uma fábula moderna cai do silêncio antigo. Fadas silenciosas agrupam-se na pureza das praias da infância. Temos o hábito da tristeza. A vida é a pátria do mutismo das tempestades. O amor é aqui onde se respira o corpo coberto de nudez. Uma árvore exacta treme no espelho construído por palavras abertas. És a minha amorosa confusão. Eu renasço nessa vertigem, num corpo unido pela desordem. Transformas o teu corpo numa página aberta de suspiros. Áleas perpendiculares compõem vértices de instantes. As palavras pobres produzem buracos deslizantes. A eternidade é um bloco hermético de nada. A dor é a única razão das mães. Alguém rasga a felicidade em pequenos pedaços. O teu corpo é agora uma língua ávida e livre. Outro dia começa a perder a memória. 

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