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74 – Se havia uma coisa que caracterizava as férias grandes estudantis em território nacional é que elas eram mesmo grandes. Mas grandes mesmo. Eram noventa dias de lazer e brincadeira que a maioria dos estudantes preenchia como sabia e podia. No Verão do seu contentamento, o José gozou que se fartou. Entre as campanhas territoriais e os fins-de-semana alucinantes vividos à beira rio, existiram ainda várias e distintas incursões semanais em aldeias da vizinhança. Uma delas foi em Outeiro Raso, na casa de um amigo da família, o Carlos Trolaró.
O Carlos tinha os pais e a irmã em França, mas fazia que estudava em Névoa. Era um no meio de centenas de estudantes em idênticas condições. Passava o ano lectivo na cidade entretido a passear os livros. No Verão rumava caras Outeiro Raso para aí desfrutar de uma vida regalada e independente.
Com a família longe, entretinha-se a vadiar pelos campos fora e a habitar solitário a sua casa, tipo maison, que os pais tinham construído na croa do povo, já um pouco afastada do núcleo antigo de casebres que ainda davam alma ao lugar. Podia optar por residir em casa dos avós, mas o Carlos preferia viver só que mal acompanhado. Os avós eram uns chatos, uns velhos ranhetas que lhe punham a vida num inferno. E o contrário também era verdadeiro. Ou ainda mais verdadeiro do que a primeira premissa.
O Carlos Trolaró tinha um sonho que se subdividia em dois: queria ser guarda-redes de futebol ou cantor romântico à boa maneira do seu ídolo Adamo. Explicava que não se importava mesmo nada em acumular as duas funções. “C´est la vie, mon pote.”
Carlos convidou o José para lhe fazer companhia na sua grande maison e também para desempenhar o distinto cargo de treinador. Por isso os dias passaram a ser preenchidos com uma rotina exercida a tempo e horas. Acordavam a meio da manhã, tomavam um pequeno-almoço de pão com manteiga e leite frio, dirigiam-se ao campo de futebol, arrimado no cocuruto de um monte aplainado, e aí treinavam até se esgotarem. Pelo menos o Carlos esgotava-se com todas as forças que possuía, pois saía do campo a pingar suor. O outeirense era um guarda-redes esforçado, lá isso era, mas era ainda muito mais um piteiro dos grandalhões. Perguntava insistentemente ao amigo, e treinador ocasional, se eram visíveis melhorias no seu desempenho. O José dizia que sim. O Carlos então insistia para que lhe despachasse uns remates mais difíceis, mais encostados aos postes, ou à trave da baliza. E o José, para não contrariar o amigo, assim procedia. Mas as coisas teimavam em acontecer como não deviam, pois a cada remate do José a bola insistia em entrar sempre na baliza à guarda do seu guarda-redes. Então o Carlos exasperava-se e culpava o amigo de não ser um bom treinador e muito menos seu amigo. Era entre suor, ranho e rancor que terminavam todas as manhãs de treino.
À vinda, passavam no comércio do senhor Zé Crispim onde o guarda-redes outeirense tinha, por indicação expressa dos pais, conta aberta. Aí compravam cervejas, sumóis, manteiga, pão, sardinhas, atum de conserva e várias latas de salsichas Izidoro.
Ao almoço e ao jantar comiam invariavelmente batatas fritas, salsichas e ovos estrelados, que era o único prato que sabiam confeccionar. Ainda tentaram manjar as sardinhas e o atum em lata, mas aquilo soube-lhes tão mal que o deitaram às galinhas. Mas até esses bichos, que não são nada esquisitos quanto à sua alimentação, rejeitaram a oferta com uma determinação que os fez rir durante algum tempo. Após o almoço dormiam a sesta. Mais à tardinha davam longos passeios pelos montes armados com a pressão de ar do Carlos. Abatiam indiscriminadamente, à chumbada, distinto passaredo, que penduravam à cintura como os caçadores adultos. Chegados a casa, serviam os troféus de caça ao gato que começou a engordar a olhos vistos.
À noite é que eram elas. O Carlos andava apaixonado pela filha da dona da Serração da aldeia. E o Carlos apaixonado era um caso sério. Vestia-se a rigor, com camisa branca de colarinhos colossais, calças pretas de tirilene à boca-de-sino, meias brancas, sapatos escuros de ponta fina, cordão graúdo de ouro ao pescoço, pulseira do mesmo feitio e material, relógio luzidio e cabelo empoupado com brilhantina. Além disso encharcava-se em perfume que tinha a rara qualidade de atrair toda mosquitada das redondezas. E, depois de empunhar a sua guitarra de cordas de plástico comprada em Feces, punha-se a tange-la como se fosse o vivo demónio em figura de músico de rock. Escusado será dizer que o Carlos não conseguia afinar o instrumento e muito menos tirar dele uma única nota ou acorde que estivesse com as mais elementares regras e leis da música. Podemos mesmo afirmar que ele tinha ainda menos jeito para a música do que para o futebol. Mas nenhum desses equívocos o demovia das suas serenatas quotidianas.
Postados na varanda de casa de onde se avistava a janela iluminada do quarto da moradia da amada do Carlos, o José alumiava a figura garbosa do Carlos com um feixe de luz produzido por uma lanterna de pilhas. Nessa ocasião, o Adamo de Outeiro Raso começava a fustigar as cordas da viola e a entoar suspeitos versos das cantigas do seu ídolo numa imitação mais que duvidosa de francês que alcançava unir na mesma conjuntura, e num coro imenso, a ululação solidária de todos os cães da aldeia, um que outro uivo que bem podia ser de lobo, ou mesmo o regougar de vários raposos ou raposas, pois para o efeito tanto vale. E o Carlos cantava a primeira a segunda e a terceira canções com a mesma coragem e denodo com que deixava entrar a bola na baliza que supostamente defendia. Fazia mesmo vários encores por noite. Só desistia quando ficava rouco ou se finava a amarela luz do foco.
Deitava-se sempre exausto, mas só adormecia depois de realçar a beleza da sua amada, que por acaso era muito pouco prendada (mas quem feio ama bonito lhe parece), e depois de lhe enaltecer as virtudes e de insistir com o José para lhe confessar, debaixo de juramento, se via alguma virtude nas esforçadas serenatas. O José, depois de jurar por tudo quanto era sagrado que dizia a verdade e só a verdade e mais nada do que verdade, confirmava todas as ilusões do amigo, dado que os amigos são para as ocasiões, pois era fiel ao provérbio de cariz popular: quem muito jura muito mente.
É preciso falar da terra transfigurada em Primavera, das palavras infatigáveis, das raízes circundantes da verdade. Cavalos silenciosos cavalgam por dentro de estrelas inclinadas. Homens dormem fundidos com os seus sonhos de aventura. Mulheres cantam verbos ampliados pela alegria. Nos caminhos velhos ressuscitam os sorrisos dos anciãos, as pedras tremem de silêncio, as águas eternas correm pela garganta da montanha. Uma alegria desesperada ilumina as colinas misteriosas. Olhares inocentes reaparecem inspirados pela humidade da carne lasciva. O amor cavalga a insatisfação. Erecções múltiplas alimentam as finas raízes do prazer. Tudo volta a ser como dantes. Tudo se desfaz e se refaz imperceptivelmente, como um corpo de sangue. Os meus dedos escutam a pungência do teu sexo acendido. Mistura-se o prazer e a dor. Os olhos possuem vertigens lentas. As nossas bocas são agora fogueiras ingénuas. O desejo cumpre de novo a tarefa de aplicar a vida na sua oculta loucura. Os devaneios linguísticos transformam-se em pequenas imagens excitadas. Essa é a vida árdua do amante. Depois de mexer no teu corpo mexo também no meu arrefecimento. O desejo passa então de íntimo a eterno. Deito-me no calmo canto dos teus olhos e brilho. Essa é a pessoalíssima visão do amor. Vejo ervas e musgo e estrelas paradas no teu cabelo. E de novo as coisas acontecem. As coisas pessoalissimamente universais ressuscitam na sua envolvência parada. O movimento é o corpo. A inocência é o dom. Toda a inocência tem a idade da poesia. É esse o rigoroso segredo da paixão.
Um pouco por desfastio intelectual, passei cerca de três minutos a contar ao R. uma história que me tinham contado acerca da compreensão humana – aliada a um instinto quase animal do labor político –, de Salvador Allende. Situação que chegou a suscitar sentimentos contraditórios nada fáceis de resolver pelos seus correligionários e pelas forças da ordem. Sendo já presidente, um homem desfilou à sua frente numa manifestação levando um cartaz insólito: “Este é um Governo de merda, mas é o meu Governo.” Allende levantou-se, aplaudiu-o e desceu para lhe apertar a mão.
R., após uns longos minutos de mutismo reflexivo, virou-se para mim e pronunciou: “A minha avó sempre me disse para desconfiar dos homens que contam boas histórias.”
O L., claramente irónico, soletrou várias vezes a palavra maravilha e, por fim, suspirou: “Depois de te ouvir falar estou para aqui todo arrepiado. O que por aí vai de hipocrisia e ilusão. Valha-me Nossa Senhora”, rematou ele que é um ateu não praticante.
Ao que o F. aduziu: “Tenho saudades dos tempos em que não dizias nada para teres sempre razão.”
“O silêncio dos humanos não é a ausência de fala, é, antes, o dizermos tudo sem articularmos uma só palavra, por muito singela que seja”, retorqui o L.
“Porra”, disse eu, “deslumbraste-me. Poucas vezes te ouvi falar tão bem. Fiquei mesmo cheio de inveja da tua eloquência.”
O R., armado em bom, ripostou: “Eu tenho muito medo da inveja. Pois a inveja é a mãe de todos os vícios.”
“Tu por vezes assustas-me um pouco com a tua lógica”, disse eu. E continuei: “É a vida. E na vida ninguém está para ficar. Aqui só se está de passagem.”
“Na vida e no Governo”, lembrou muito bem o R. A seguir tentou armar-se em apoiante crítico do novo governo e soletrou a modinho: “Coitado do Pedro Passos Coelho, quando pensava que, com as medidas de austeridade, tinha ganho a manteiga para pôr no pão, faltou-lhe o pão… E o alho que agora está muito na moda.”
“O homem embandeirou em arco com o vitória nas eleições legislativas, mas agora anda caladinho que nem um rato, pois descobriu que a crise internacional era mesmo verdadeira”, lembrou lucidamente o F.
Então, de repente, saiu-me esta brilhante metáfora, que de certeza li em algum lado: “Não se sobe às árvores pelos ramos”. Bem, confesso, esta minha tirada deixou-os boquiabertos.
Depois de mais uns momentos de silêncio expectante e reflexivo, o L. resolveu elogiar-me com a sua fina ironia: “Talvez seja a experiência da escrita quem te confere essa grande dimensão de visionário de província. E o facto de estares comprometido com o sistema que tanto criticas é que te permite uma ironia interessante.”
Eu que sou homem que não me deixo calar com duas tretas, mesmo que sejam verdadeiras, o que não era, manifestamente o caso, elevei o tom do discurso: “Ignatus, o célebre personagem do romance Uma Conspiração de Estúpidos escreveu, numa carta que pretendia servir como pagamento de uma viagem de táxi, o seguinte: «O universo, é claro, baseia-se no princípio do círculo dentro de outro círculo. De momento encontro-me num círculo interior. É evidente que também pode haver círculos mais pequenos no interior deste círculo.» Apesar da excelente visão do mundo, o motorista obrigou-o a pagar a viagem em dinheiro. Esta é a dura realidade da vida dos autênticos escritores e pensadores.
“Tu”, disse eu virando-me para o L. “és o típico homem justo numa sociedade injusta.” Ao que ele retorquiu: “Era a ti quem as irmãs adoravam porque costumavas ganhar todos os santinhos por saber o catecismo.”
Então resolvi ser mesmo maroto. “Pelo menos não me deixo transformar num idiota que só gosta de televisão, de carros novos e de comida congelada. Nem ando no psiquiatra. A psiquiatria é pior do que o comunismo, lava-nos o cérebro. E eu não quero ser um robô. Eu sou um homem simples.”
Reconheço que fui indelicado, porque o L. anda a ansiolíticos por causa de uma depressão. Mas estava mesmo a pedi-las. E, por vezes, o pensamento é bem mais rápido do que as conveniências. Além disso, o que está dito, dito está. Mas, mesmo assim, fiquei com pena do L., pois naquele momento era a imagem de um guerreiro vencido, sem guerra e sem tropas. Como escreveu Mia Couto acerca do barbeiro Arcanjo Mistura, naquele momento eu próprio fiz o papel de cegocêntrico. E por isso me penitencio.
73 – O José continua vigilante. De cima do terraço observa as suas tropas que, também elas, mesmo não parecendo, continuam despertas. Nas terras em volta amadurecem os frutos, as ervas secam e os pássaros cantam alegres. Este continua ser o Verão do seu contentamento.
Sentado numa cadeira reza baixinho uma oração por si inventada onde exalta o Sol, a Terra, a Água e o Ar. O chapéu à Daniel Boone permanece bem erecto na sua cabeça. Enquanto observa o nascer do dia tem uma erecção e começa o chorar baixinho de verdadeiro júbilo. De seguida entoa, com a boca transformada em cornetim, o hino do amanhecer, para deleite das suas imaginárias tropas, dos galos dos vizinhos e dos cães das redondezas.
A sua mãe, também ela já desperta e a rezar as suas orações, emociona-se com a pequena loucura do filho mais velho. O seminário tem desenvolvido nele uma estranha, mas tocante, loucura fantasiosa. Os irmãos adoram-no.
O José tem feito deles, pequenos conselheiros, confidentes ou filhos adoptivos. Conta-lhes histórias, confidencia-lhes pequenos segredos, enche-os de mimos. Continua a ler imenso. Os livros são o seu verdadeiro mundo. São o território que administra com sabedoria, lealdade, verdade e justiça.
Hoje o cornetim toca também para lembrar à família que está na hora de acordar e preparar toda a logística necessária que permita passar um dia à beira rio.
O dia tem tudo para dar certo: amanheceu lindo de morrer, não há vento e está calor. Além disso, o guarda Ferreira está a gozar alguns dias de licença. Por insistência da dona Rosa, uns dias fuma menos… mas bebe mais. Noutros dias bebe menos… mas fuma mais. O guarda Ferreira continua, para nosso gáudio, o homem equilibrado que sempre foi e continuará ser, se Deus quiser.
Mal acordou fumou um cigarro, mas não bebeu nada. Tratou da sua higiene pessoal, foi buscar os garrafões do vinho tinto e arrumou-os junto à porta. Depois comeu um pedaço de pão com nozes e figos e bebeu um calicezinho de aguardente. Mas não fumou nenhum cigarro. Continua fiel à sua promessa de equilíbrio. De seguida ajudou a acomodar a comida feita de véspera nos cabazes e a dobrar os liteiros e os cobertores. Enquanto a dona Rosa vestiu e calçou os filhos, o guarda Ferreira e o José transportaram e acomodaram toda a tralha na carroça do vizinho Carriço.
Saíram de casa às sete, chegaram, por volta das oito, à margem direita do Tâmega e às nove sentaram-se a comer o pequeno-almoço. Durante o caminho o guarda Ferreira não fumou um único cigarro. Ainda fez uma ou duas tentativas para puxar o maço do bolso da camisa, mas o olhar certeiro da dona Rosa foi suficientemente persuasivo para o inibir da atitude. Pelo caminho juntaram-se a muitas outras famílias que seguiam na mesma direcção e com o mesmo propósito.
Mal dispuseram as mantas no chão, algumas crianças voltaram a adormecer. O José pediu autorização à mãe para as acordar. Ela disse-lhe que o melhor era deixá-las dormir até acordarem. Nessa altura terão fome e será mais fácil alimentá-las. A mãe sorriu para o José e o José sorriu para a mãe. É bem possível que já se queiram mais um pouco. Viver à distância torna-nos mais tolerantes, atenua-nos os defeitos, aumenta-nos as virtudes.
O mata-bicho soube-lhes pela vida. O bacalhau frito e o presunto, juntos com o pão centeio, combinaram bem com a fome e esta também combinou muito bem com a bola de carne, os rissóis, a linguiça e o salpicão. Depois o vinho caiu regaladamente em cima da comida e a comida agradeceu. O guarda Ferreira, em coerência com o equilíbrio prometido, e devido a não ter fumado um único cigarro – se descontarmos um fumaçado a medo quando foi mijar atrás de um casebre e ainda outro durante a penosa montagem do acampamento –, bebeu um litro de tinto bem medido. Seguidamente foi pendurar os garrafões a refrescar na água do rio.
As crianças, por fim, acordaram e puseram-se também elas a comer. As mães começaram a falar-lhes, a dar-lhes mimo e a sorrir, o que combinou muito bem com a boa disposição dos cavalheiros que começaram a falar de futebol e a organizar-se em pequenos grupos. Porque os garrafões de vinho estavam afogados em água corrente, o guarda Ferreira, mais uma vez fiel à sua promessa de equilíbrio, fumou vários cigarros com o ligeiro intervalo de tempo que levava a acendê-los uns nos outros.
Os homens, esses sortudos, como não discutiam política, por não saberem o que isso era, e porque eram todos, ou quase todos, do Benfica, o que não possibilitava o contraditório necessário à manutenção de uma discussão acesa sobre o desporto rei, puseram-se a jogar à sueca. E assim se mantiveram até à hora do almoço.
Na banca onde o guarda Ferreira se alapou para batê-las, ao contrário das outras mesas de sueca, o vinho não entrou. A Dona Rosa tinha dado ordens expressas: “Aqui só joga quem não beber.” Ao que alguém mais bem disposto do que a anfitriã perguntou: “Nem um copinho de água?” Ao que ela respondeu: “Vai à merda Manuel.” Para logo de seguida se ouvir a voz serena do José: “Por favor, mãe, não sejas tão escatológica.” Ao que a família Ferreira em uníssono respondeu, incluído o guarda Ferreira, imitando a voz estridente da dona Rosa: “O que eu sou é escanifobética. Ah, ah, ah!” Ao que o senhor Manuel ripostou atrapalhado: “Não percebo nada do que estais para aí a dizer.” Então a dona Rosa repetiu: “O que eu sou é escanifobética”. Foi a vez do João se começar a rir e dar um peido sonoro como sempre acontecia quando gargalhava com vontade. O que foi aproveitado pelos outros irmãos para se rirem também o que provocou novo peido do João e mais riso nos irmãos e na dona Rosa, a que só não se lhes juntou o Leão, porque já tinha morrido, e o Virtudes porque tinha ficado em Montalegre, sempre num crescendo de hilaridade que nos abstemos de dar conta mais pormenorizada porque, afinal, já foi descrita em dois momentos anteriores.
O guarda Ferreira, como não bebeu… fumou. E bem, só não chupou os dedos porque necessitou deles para pegar e largar as cartas.
O almoço foi bom. Comeram bolos de bacalhau, azeitonas, presunto, arroz de ervilhas, frango assado e bifes e chicharro de cebolada. Como sobremesa filaram-se no melão. As crianças beberam Sumol, as mulheres mais envergonhadas água e as mais destemidas vinho branco. Os homens enfrascaram-se com tinto. No fim do almoço o guarda Ferreira ainda esboçou o gesto de puxar de um cigarro. Mas como antes olhou instintivamente na direcção da dona Rosa, meteu de imediato o cigarro no maço e serviu-se de mais dois copos de tinto de Arcossó.
Depois do repasto, enquanto o sol apertava, todas aquelas singelas criaturas de Deus, saciadas de comida e de paz, se puseram a dormir a sesta. Ressonaram como cavalos bêbados.
Lá mais para a tarde, sob o olhar vigilante das mães e dos irmãos mais velhos, as crianças atreveram-se a ir dar banho nas águas mansas do rio. Com a algazarra das crianças, os homens despertaram dos seus sonos embriagados e começaram a sorrir e a peidar-se com muita singeleza de espírito.
Esta ocasião hilariante permitiu que o guarda Ferreira fumasse mais um apetecido cigarro. Depois foi jogar as cartas e continuou a fumar ao mesmo ritmo com que perdia partida atrás de partida. A sorte do jogo não queria nada com ele. “Azar ao jogo, sorte no amor”, disse galhofando o par de adversários de mesa da sueca. Mas não levaram o riso até ao fim. Falar de amor na relação entre o guarda Ferreira e a dona Rosa é coisa que nem os pobres de espírito conseguem dizer sem sentirem remorsos. Com coisas sérias não se brinca.
No meio da erva seca os rapazes mais velhos jogaram futebol por entre gargalhadas e pó. Apenas o José se absteve devido a não ser capaz de andar descalço. Ainda propôs que lhe autorizassem a jogar com os sapatos que eram mimosinhos. Mas eles disseram que não, a jogar que o fizesse de meias. Ele assim procedeu, mas o raio das peúgas romperam-se logo de seguida.
Depois de mais uma maratona de cartas e de cigarros, o guarda Ferreira voltou a ser convidado para a merenda. Comeram-se os restos, que, mais do que restos, eram nova e suculenta refeição. Escorropicharam-se os garrafões de vinho e alguns homens mais bebidos, começaram cantar o fado. Por não haver mais vinho, o guarda Ferreira pode terminar o dia fumando os cigarros que lhes restavam olhando serena e calmamente para os filhos e para o pôr-do-sol. Quando a dona Rosa apareceu na sua frente, em contra luz, a lembrar-lhe que estava na hora de regressar a casa, o guarda Ferreira teve uma epifania: viu a sua mulher a morrer afogada no rio. Depois olhou para o filho e arrepiou-se. O José continuava a adivinhar o pensamento dos outros.
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