O Poema Infinito (63): está tudo iluminado
Todo o espaço avança em direcção ao nosso olhar e a extensa montanha fica invisível. Embora claro, o tempo espraia-se mais um minuto na lúcida transparência do fulgor. Vamos vencendo o ímpeto das distâncias para ver onde acaba o amor. A fecundidade dos tempos felizes ajuda a aproximar de nós o brilho silencioso do desejo. Esse é o nosso sacramento que paira ainda sobre a lucidez do tempo que nos sobra. Tudo está agora iluminado: a perfeição da estrutura, o rigor da inteligência, o brilho do vagar, o ritmo da condição humana, o espírito que se adensa, a sabedoria lúcida da terra, a mesa repleta de frutos do desejo, o esplendor monótono dos provectos caminhos, a transparência antiga da paciência, a infinita indulgência da monotonia, as promessas de amor, todo o exílio interior, a tua face oculta, todos os verbos santos, todo o ímpeto do prazer, toda a carne nua, todos os sexos externos, o eco dos ritmos africanos, a paciência dos predestinados, o fulgor explícito dos indícios, nós os dois passeando pela brisa da tarde, a brisa da tarde passeando por nós os dois, a ausência pacífica de senso comum, a nudez básica de qualquer cópula, a verdade, a mentira, os alicerces azuis do céu, todas as epifanias de Lenine sobre um piano, a subtil firmeza dos ofícios divinos, os anjos eléctricos, todos os santos e santas de todos os altares do mundo, a solidão dos loucos, a esperança de ter esperança, toda a energia sexual dos eunucos, a memória submissa dos meus mortos, a eternidade fugaz das imagens a preto e branco, a forma eterna de uma mulher nua, o infinito prazer de penetrar uma vagina húmida, todas as leis que permitem infringir as regras estúpidas, a abstracção da vida, a certeza da morte, todas as dúvidas metódicas e não metódicas, os faunos de Aquilino Ribeiro, Pedro Páramo, Juan Rulfo, Corto Maltese, Hugo Pratt, o júbilo de Frank Zappa, todos os indícios de amor, todas as previsões de ódio, as faces pálidas dos meus defuntos pais, as cinzas inertes de todos os meus antepassados, as minhas penitências de menino, a luz eterna dos domingos da minha infância, o espanto inicial da vida, o prodígio do pão e da água, a estrita incandescência da mulher que eu amo, os meus filhos, os vestígios infinitos do pensamento livre, a ausência mutiladora da glória eterna, a fé activa dos ateus, a fé monótona dos crentes do Deus único, toda a verdade antiga, a veemente ascensão da inteligência, os gemidos precoces de um orgasmo, a extensão vagarosa do tempo, o recrudescer da razão, o prodígio dos espaços em branco, o vazio atómico que cria a matéria, a estrutura pacífica dos bichos e das plantas, o sofrimento das crianças e dos velhos abandonados, a linguagem dos poetas loucos, as palavras gastas que procuram novas semânticas, a força de uma erecção, a delicadeza sonora e sofrida de uma penetração, a indigência da beleza provocada, a sábia surpresa da minha língua mãe, o repouso, o apetite, os símbolos, a intimidade, o júbilo, o lugar comum da amizade, a oralidade, a leitura, a escrita. A escrita, a escrita, a escrita…