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77 – Mas uma coisa é falar e outra bem diferente é fazer. Passado uma semana lá andava o José no arraial da festa de Boticas tão fresco e prazenteiro como se não tivesse memória.
Foi para lá no carro do Asdrúbal, ou melhor, do pai do Asdrúbal, que lho emprestou para ir de Santo Amaro ao Sport, que são para aí uns mil metros bem medidos, e voltar. No regresso a casa, com o carro apinhado de onze gandulos, o Asdrúbal resolveu fazer um desvio por Boticas, que eram à vontade uns sessenta quilómetros entre o ir e o voltar.
Demoraram cerca de uma hora bem contada, pois as curvas eram muitas e boas, a noite estava escura e os faróis do carro pouco mais alumiavam que uma lanterna a pilhas. A juntar a todas estas contrariedades, o Asdrúbal viu-se e desejou-se para meter a segunda e a quarta velocidades, pois o José seguia escarrapachado entre os dois bancos da frente a um palmo da manete das mudanças.
Chegaram à festa já o arraial tinha começado há um bom pedaço. Primeiro rondaram as tascas ambulantes, pois, como todos sabemos, uma das características da juventude é ter um apetite insaciável e uma sede persistente. Sentados num banco corrido em frente de uma tábua suspensa em dois suportes de madeira mal talhada e pobremente assentada, mandaram vir um ovo cozido para cada um, que descascaram e polvilharam com sal e pimenta. Depois do ovo mastigado, botaram um copo de tinto, deram um murro no peito e, em duo, foram buscar parelha para dançar.
Antes de dispersarem, o Asdrúbal avisou que às quatro em ponto todos deviam estar junto à porta principal da Igreja Matriz para rumarem caras a Névoa. Quem não fosse pontual ficava em terra.
Escusado será dizer que o José fez parelha com o Carlos Trolaró. Deram uma volta pelo recinto, visitaram a igreja que estava toda iluminada por dentro e por fora, apreciaram o andor da Nossa Senhora da Livração, que era uma santa em tudo semelhante a todas as santas espalhadas por esse Portugal fora, visitaram a enorme imagem de São Cristóvão no meio do ribeiro do Fontão, com o Menino Jesus ao ombro, admiraram o foguetório estrelejante de início de noite e foram, mais uma vez, comer e beber. Mas só o fizeram porque o Carlos Trolaró convidou e pagou, pois o José estava teso como um carapau seco ao sol. O seu pecúlio deu à justa para pagar a quota-parte da gasolina ao Asdrúbal, para o ovo cozido e para um copo meado de vinho tinto.
Desta vez comeram sardinhas e fêveras assadas, desbastaram um rico melão de Almeirim e beberam três canecas de vinho do real. Por cima botaram uma cigarrada bem absorvida e percorreram todo o recinto à cata de um duo de raparigas que aparentassem uma certa liberdade de movimentos e uma positiva independência em relação à família e aos vizinhos. A última experiência do José tinha servido para os colocar numa orientação onde predominava a precaução e, sobretudo, a imprescindível destreza da fuga.
O José com um copo a mais ficava eufórico e, sobretudo, atrevido. O Carlos, por seu lado, aguentava melhor a pressão e o vinho. Depois de várias experiências, nem sempre bem sucedidas, encostaram-se a um par de moçoilas emigrantes em França que revelavam uma acidental independência de espírito e uma positiva liberdade de expressão e movimentos. Estavam na festa sós e com a firme intenção de se divertirem o mais que pudessem. “Esta vida são dois dias. N'est-ce pas?”, disseram elas. Ao que eles responderam: “Mais oui, bien sur.” E durante muito tempo dançaram toda a espécie de ritmos: passodobles, tangos, valsas, chachachas, rock e música popular portuguesa. Além de se cansarem, como era óbvio, estabeleceram uma certa intimidade da qual resultaram ternos beijos florais, alguma cumplicidade erótica e uma subida de adrenalina que apenas podia resultar num acto sexual redentor. Por alturas da apoteose do fogo-de-artifício, combinaram ir vê-lo para um lugar recatado. O que melhor encontraram foi uma pequena leira de ervas depois de um giestal. O Carlos, numa momice de generosa loucura, regressou à Vila para comprar uma garrafa de champanhe fresco e mercar um bolo, por muito pindérico que fosse. Quando se iniciou a girândola do fogo preso, o Carlos Trolaró abriu a garrafa de vinho espumante e dela beberam entre sorrisos, beijos e borbulhas refrescantes. No chapéu do José confeccionaram umas sopas de amante cansado.
Por fim aconteceu o inevitável, cada par procurou o seu terreno de cópula e copularam aquilo que quiseram e da forma que melhor se lhes adequou. Nestas coisas do amor físico, o corpo é que manda.
O fogo-de-artifício durou cerca de meia hora, que foi o tempo necessário a cada par ter o seu desempenho sexual de forma mais ou menos satisfatória. Por vezes o céu enchia-se de luz, o que permitia a cada um visualizar as partes pudentes do seu parceiro como se fossem espaços sagrados. Orgasmos, se é que os houve, e nós estamos em crer que sim, foram conseguidos de forma tão natural quanto possível. Dizem que o amor meteórico também é uma forma de amor. Pelo menos essa foi a sensação com que os quatro ficaram depois de se despedirem.
Às quatro em ponto chegaram à porta da Igreja Matriz onde o Asdrúbal já os esperava impaciente. A noite, nas suas palavras, tinha-lhe corrido mal. Só lhe calharam em sorte donzelas virgueiras que apenas permitiam a dança com os respectivos corpos a meio metro de distância. O condutor do carro ainda perguntou aos demais rapazes como tinha sido a noite. Todos foram unânimes no relatório: o arraial tinha sido uma autêntica desilusão. Mas, como bem sabemos, nem todos estavam a dizer a verdade. E a verdade, naquele amena situação, aproveitava a quem? Comer e calar é atributo dos sábios.
Dos onze jovens, apenas dez compareceram a tempo. Como estava com os azeites, o Asdrúbal proferiu: “Eu avisei, quem não está a horas fica em terra.”
Todos os presentes, visivelmente cansados, desiludidos, bêbados e frustrados, enfiaram-se no carro como puderam. Mesmo com menos um parecia que iam lá dentro mais três ou quatro. Fins de festa provocam ressaca e irritação. Curva aqui, curva ali, curva acolá, lá se sujeitaram à corajosa subida até Névoa.
Numa curva mais apertada, uma porta mal fechada abriu-se e fechou-se logo num de repente. Alguém mais sóbrio pensou ouvir um grito estranho. Mas foi apenas uma conjuntura fugaz. Pelo menos foi aquilo que pareceu,
Tarde e a más horas a carga foi deixada onde o permitiu a fúria juvenil do Asdrúbal. Por isso, o seu generoso pai o pôs a desfolhar videiras na encosta da quinta familiar de Arcossó durante um dia completo.
Souberam mais tarde que o Manuel Chupeta foi internado no hospital de Névoa com uma perna partida e um traumatismo craniano devido ao insólito facto de ter sido projectado, na curva do Leite, sem que alguém se tivesse apercebido do arremesso.
Desencadeia-se rapidamente uma fulguração de espaços nos teus lábios e as paisagens estilhaçam-se no deslumbramento do sangue incendiado como se Deus fosse proibir qualquer coisa que tem necessariamente a ver com a protuberância dos abismos iluminados pela memória por isso outro Deus investe rios de dúvidas metódicas no esquecimento do amor até doer como se essa fosse uma coisa mesquinha e daí nascesse uma nuvem fluorescente de fogo que queima por dentro a ponte interrompida da compreensão humana como se essa fosse a solução para o vagar das pedras que constroem os castelos intactos de inutilidade sugerindo depois uma fosforescência definidora quando as tuas mãos hesitantes se crispam no meu falo como quem agarra um punhal vingador daí todos os gestos serem de amor e raiva e desilusão e ventura e regresso e o desejo torna a ser vingativo e doloroso como se não fosse possível nenhum contacto com a melodia da vida que corre como por instinto capitulando nos trechos desanimados dos pássaros vulcânicos e por aí acima vem o vento triste da inocência e da dor e do princípio de cada corpo e de cada alma morta e de cada olhar desajustado pelo desejo intenso dos doidos e agora caem-me nas mãos os livros inúteis e as palavras inúteis e os suspiros inúteis e toda a vertiginosa inutilidade da vida e da morte e do amor e toda a fulgurante incoerência da geometria das ideias feitas e do amor ultrajado e do fulgor esquecido e do hábito inglório de passear pelos rostos lívidos das crianças estupefactas como se isso fosse o rigoroso segredo da luz e da verdade e da lógica e do sentido da vida por isso dizes que a verdade só pode existir no impossível caminho da loucura e isso ainda é mais louco do que a translúcida loucura da revelação e do esquecimento e da coragem cega da respiração e da inverosímil aventura de caminhar pelas veredas da infância como se isso fosse a cabeça deslumbrada do desejo por isso sempre acreditei na intolerável beleza do teu sorriso e nas imagens de inverno que me ardem na memória e nas lágrimas felizes por ver como o amor é possível dentro da impossibilidade de um espaço definido e como as vozes ganham a sua razão no silêncio e como a memória é um poço onde caem as palavras irrepreensíveis do desespero onde naufraga sempre o barco da esperança e onde a brancura da neve cai ininterruptamente dentro da minha memória de pássaro ferido por isso a minha ânsia deambula pelo vagabundo início dos vestígios perdidos da felicidade como se a catástrofe da vida fosse o possível caos da existência daí continuar a construir ninhos de ideias onde as palavras regressam para serem alimentadas e acarinhadas pelos vestígios doces de uma ave carinhosa e daí não saber se o que digo e escrevo delimita o gesto simples de uma abelha a procurar uma flor pelo seu cheiro intenso daí a fé sobrar porque não temos mais nada a que nos agarrar e a dor vem e os sonhos morrem e a infância desaparece no meio de uma canção de embalar e nos doces caminhos da luz e da esperança os anjos envelhecem sentados no banco do paraíso e os teus olhos tornam a lançar uma pequena chama de alento por isso ainda conseguimos tentar não perder o mundo ou o que dele resta.
Acordaram-me cedo para ir para a praia, mas eu teimei que em tempo de férias um cidadão tem o direito a levantar-se tarde e continuei a dormir, ou a fazer que dormia, até serem nove horas. Depois levantei-me, tomei um duche, lavei os dentes, papei o pequeno-almoço, fardei-me a rigor, agarrei no saco que me estava destinado e fui para a praia. Na praia, apesar de ainda não ser tarde, mas também não ser cedo, o areal estava tomado. Tivemos de caminhar um bom pedaço para darmos com uma nesga de areal onde pudemos, finalmente, estender, à rasquinha, duas toalhas. A areia estava quente, o mar lá ao fundo estava azul e o Sol brilhava como quase sempre o faz de Verão.
Depois cumprimos com a tradição: besuntámo-nos bem besuntados com um bom protector solar. De seguida fui comprar os jornais ao quiosque. Boa caminhada para lá, boa caminhada para cá, e lá me pus a ler as grandes, que as pequenas, com este sol, não são muito convidativas. Li primeiro os títulos das notícias do jornal desportivo, de futebol, entenda-se. Confirmei o que já sabia: que o Benfica comprou um merouço de novos jogadores, que o Sporting comprou outro merouço de novos jogadores e que o Porto comprou apenas uma mão cheia deles.
Na outra toalha a Luzia lia o seu diário de referência com olhos de ler, apesar de os ter escondidos atrás das lentes escuras dos óculos. A meio da leitura exclamou: “O Governo de Pedro Passos Coelho subiu os transportes cerca de vinte por cento, aumentou os impostos sobre o trabalho mas não sobre o capital – ele, o figurão, que jurou não criar mais impostos e a primeira coisa que fez ao chegar ao poleiro foi criar um imposto extraordinário e vários aumentos de taxas e impostos indirectos –, facilitou os despedimentos, e, como se fosse pouco, faz agora olhos cegos sobre as trafulhices fiscais das empresas, entrega ao desbarato o BPN à filha do presidente de Angola e ao Américo Amorim, ou seja, aliena a nossa soberania e entrega de bandeja o país aos capitalistas. E o povo, onde está? Agora não buzina, não berra, não protesta? Não vem para a rua indignar-se? Não corta estradas, não faz marchas lentas? Não chama aldrabão ao Pedro Passos Coelho? Não espera em cada esquina o virgem PM para o insultar? ”
Eu, tentando pôr um pouco de água na fervura, ou melhor, tentado colocar um pouco de fresco na sua indignação, convidei-a a ir até à beira-mar refrescar o corpo nas claras águas do Atlântico. E ainda tive coragem para lembrar: “O povo está de férias. Quando regressar a casa, vai ser o bom e o bonito. Tu vais ver Luzia, o bom povo português vai mostrar o que vale, vai exibir a sua raça e entupir as estradas e marchar sobre São Bento para libertar Portugal desta cambada de mentirosos, ó desculpa, desta corja de aldrabões.”
Ela, olhando-me bem nos olhos, apesar de ter os seus disfarçados por detrás das tais lentes escuras, avisou-me: “Não brinques comigo, João.” “Credo”, disse eu. E até me atrevi a mais: “Este Governo está por um fio. Deixa o povo tomar consciência da crise e do embuste em que caiu e vais poder assistir à sua mais que justa indignação. Pois todos temos direito a indignarmo-nos.” E ela: “Crise?”, perguntou, olhando desconfiada para a multidão que enxameava a praia, e provavelmente lembrando-se das estradas congestionadas, dos restaurantes a abarrotar, dos supermercados e dos centros comerciais à pinha, dos bares repletos, das piscinas preenchidas como latas de sardinhas.
Momentos antes de colocar o pé na água lembrou: “Se fosse o José Sócrates…” (“Já cá faltava esse”, disse eu pondo o pé na água, arrependendo-me e arrepiando-me de imediato.) “… e o Teixeira dos Santos a fazer metade das crueldades que o governo do Pedro Passos Coelho já fez em apenas dois meses, e promete continuar a fazer nos meses que se seguem, teríamos o Terreiro do Paço apinhado de tendas de campismo e de portugueses indignados a gritar para o Primeiro-Ministro ir embora porque é aldrabão, mentiroso, falaz, impostor, incompetente, inapto e… chiça (a Luzia não consegue dizer porra) a água está fria…”, “como a porra”, completei eu. Depois olhou para o azul do mar, observou as pessoas ao redor e, finalmente, dirigiu o olhar na minha direcção, como só ela sabe fazer. Sorrindo um pouco, naquele seu jeito irónico disse: “E a imprensa já teria escrito barbaridades incongruentes e obscenidades apalermadas.”
Logo após, virou-me as costas e meteu-se na água fria do mar como se ela estivesse quente. Eu ainda tentei correr atrás dela, mas a água fria inibe-me a frontalidade e a coragem. Ela é como o Sócrates, decidida e corajosa, eu sou mais como o povo português, indeciso e frouxo. Mas cada um é para o que nasce, lá diz o povo na sua ancestral sabedoria.
Eu, com o corpo enfiado na água até à cintura em pose de guarda-republicano, pus-me a olhar para a minha mulher enquanto ela nadava para lá e para cá numa atitude de desafio. Nadou o que quis e, por fim, pôs-se de pé perto de onde eu estava na tal pose descrita atrás, e saiu do mar como uma sereia envolta numa fina textura de água salgada. Eu fui no seu encalço.
Conciliador, pronunciei, sem muita convicção, tentando dar-me ares de homem culto e bem informado e, por isso mesmo, de cidadão português empenhado na oposição ao executivo do PSD/CDS: “Sabes que os motoristas do secretário de Estado da Cultura são, de longe, os mais bem pagos do governo, apesar de um deles ter apenas vinte e um anos e ser, por isso mesmo, um condutor recente?” A Luzia continuou a marchar pelo meio das toalhas com toda a decisão do mundo, apesar de a areia escaldar. Eu limitei-me a ir aos pulinhos.
Por isso intentei de novo: “No entanto, o nosso (quase) conterrâneo Francisco José Viegas paga uns magros 475 euros a um «colaborador-especialista».” Entrementes chegámos às nossas toalhas. Ela secou-se numa e deitou-se noutra. Eu sentei-me a seu lado e fiquei a olhar para ela como se fosse a primeira vez. Sorri feliz. Ela continua linda. Finalmente olhou para mim e disse: “O que te vale é que gosto de ti.”
Rimo-nos os dois. Ela para mim. Eu para ela. Depois disse-lhe um segredo ao ouvido. Ela sorriu de novo e fechou os olhos. Deixei-a a secar o fato de banho e fui passear à beira mar.
76 – Depois da fuga de Stéphanie para a Póvoa, o José decidiu não se apaixonar mais durante aquele Verão. As mulheres não lhe mereciam tão grandiosa disponibilidade sentimental. Uma paixão é como uma doença, por vezes até tira o apetite e a boa disposição.
Como vingança resolveu fazer o percurso das festividades da região. Para as festas perto de Névoa, normalmente utilizava a boleia na mota do Carlos Trolaró que fazia tal barulho que presumivelmente amedrontava os lobos e punha em respeito as almas penadas. Para as festas mais distantes, juntava-se a alguns parceiros tão determinados como ele a saltar de arraial em arraial, como se andasse a despedir-se para ir para a guerra, e alugavam um táxi ou iam de boleia nalgum carro de rapazes sabidos que os transportavam em troca de dinheiro para meter gasolina à justa para a deslocação. E foram ao S. Caetano a pé. Não para realizar promessa, mas para cumprir com a tradição.
Logo após a verbena no Jardim Público, meteram pés ao caminho enfiados num rancho de rapaziada nova. Palmilharam mais de uma dezena de quilómetros num ritmo de caminhada certo, apenas mais acelerado quando foram surpreendidos por uma trovoada das boas. Quando as pingas começaram a cair grossas como bagos de uva, ainda pensaram enfiar-se debaixo das árvores, mas como os relâmpagos chispavam do céu como faúlhas de Natal, optaram por apanhar chuva, pois mais valia ficarem molhados que feitos em churrasco. O trajecto deu para galhofar, contar brejeirices e cantar.
Amanhecia quando chegaram ao recinto. Extenuados, aninharam-se nos tufos de erva maninha e dormiram o sono dos justos. Acordaram por volta do meio-dia, foram procurar familiares e amigos e com eles manjaram do farnel, que, nestas ocasiões, era sempre diversificado e farto. Comeram e beberam em franca camaradagem. Depois de visitarem a capela, de apreciarem os andores e de cobiçarem as notas que lá estavam penduradas como sinal de devoção e ajuda espiritual prestada, compraram, nas barracas da especialidade, dois chapéus mexicanos, óculos de sol de plástico genuíno e resolveram enfiar-se na carreira e regressar a Chaves, pois na festa de São Caetano não havia arraial e dançar com as raparigas só por dançar não lhes estava no feitio. Se não fosse possível o remanso do encosto, bailar era apenas exercício físico, e disso estavam eles bem abonados. Durante a viagem fartaram-se de rir e de imitar o linguajar obtuso de Mario Moreno, o Cantinflas.
O José e o Carlos tornaram-se especialistas em dança de encosto e em palavras dengosas. Como eram razoavelmente bem-parecidos, era difícil levarem tampa. As raparigas, salvo raras excepções, também gostavam de se sentir apertadas e, por vezes, no escurinho dos bailaricos, deixavam-se entusiasmar e, em ocasiões afortunadas, consentiam deslocar-se até um canto mais recatado e masturbavam os companheiros como quem esforça salpicões em tempo de confeccionar o fumeiro. Pô-las de rabo ao léu era tarefa bem mais complicada. Mas o José e o Carlos também não simpatizavam com o abuso. Usar sim, abusar só em circunstâncias muito específicas. E nas aldeias trasmontanas, os bisnaus pinantes eram tratados a estadulho ou com vara de marmeleiro, pois tanto pais, como irmãos, como namorados, cegos pela honra, pela afronta, ou pelo ciúme, enchiam-se de razões, levavam-se dos diabos e malhavam nos insolentes como em centeio maduro.
Houve ocasiões em que o par de bailarinos foi descoberto pelas mães mais avisadas em poses e serviços fora das mais elementares regras do decoro e da arte da dança. Quando assim calhava, tanto o José como o Carlos Trolaró, davam às de vila diogo, deixando para trás a atrapalhada cachopa que se limitava a levar uns tabefes sem se queixar ou, sequer, esquivar-se. Apenas uma vez a aventura da dança, seguida de masturbação e fuga, esteve para correr muito mal ao José.
No momento da evasão estratégica, daquela vez, a mãe não apareceu sozinha, mas antes escoltada pelo marido, pelo namorado e pelos filhos, que eram muitos e brutos. Como lobos, rodearam-no bem rodeado, e o namorado, de navalha de ponta e mola bem aberta reflectindo a ameaçadora luz da lua, ordenou: “Tirai as calças ao punheteiro que eu vou capá-lo com se fosse um porco.” E daquela vez o aviso soou tão sério que o José pensou que ia ficar como o Virtudes.
Começou a rezar como nunca o tinha feito na vida, mas quem veio em seu auxílio não foi Deus, ou qualquer um dos seus súbditos, mas sim o Carlos Trolaró montado na sua diabólica moto barulhenta.
Quando se viu entre os fortes braços dos homens e o frio fio da navalha do capador, o José berrou tão alto por socorro que o Carlos, entretido com uma das suas danças de encosto, o ouviu com a suficiente nitidez para se aperceber da situação desesperada porque passava o seu amigo. Um pouco contra o sentido da dança, o Carlos abandonou de imediato os braços da rapariga, que ficou imóvel de surpresa, e partiu a correr na direcção da sua mota, que se portou com todo o sentido do dever, pegando de imediato. Como um cavaleiro louco, o Carlos lançou-se na direcção do escuro caminho por onde tinha visto o amigo escapulir-se, e manobrou tão bem o seu veículo motorizado, que pôs a alcateia em alvoroço, derrubou o capador e, num golpe de génio, parou quando tinha de parar para o José montar na motoreta a jeito e dali se irem com o coração apertado como um punho fechado, mas com as partes pudentes salvas e em bom estado.
O Carlos, que mesmo em situações extremas nunca perdia o bom humor, quando parou para meter gasolina num posto ainda aberto, virou-se para o amigo e disse: “Um padre capado é o padre perfeito. Pensando melhor, talvez fosse preferível ter deixado os campónios finalizar a tarefa. Deus escreve direito por linhas tortas. A luxúria há-de ser a tua perdição. Viciaste-te em masturbação e agora não consegues fechar um arraial a dançar.” O José, ainda aflito e perplexo, virando-se para o seu salvador, apenas murmurou: “Tenho de rever a minha conduta. Isto está a tornar-se aflitivo. A carne é fraca, mas eu tenho a obrigação de me controlar. Afinal, o apelo da fé tem de fazer algum sentido.”
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