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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Set11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

82 – Num dia lindo de sol, António, o Roberto Carlos do Bairro Operário, principiou as suas aulas de condução na única escola que existia na cidade. E elas foram duras, pois os monitores e instrutores eram ríspidos, gozões e de palavra avinagrada.

O código, logo de início, teimou em entrar na cabeça do António aos repelões. Fez inúmeros testes continuamente a suar como se estivesse nas obras a acarretar massa. Aquelas perguntas, todas intensamente habilidosas e muito parecidas umas com as outras, deixavam-no confundido, indeciso e irritado. Quando as aulas de condução começaram, o António ficou mais aliviado. Mexer nos pedais, na manete das mudanças e do pisca, e virar o volante para a direita e para a esquerda estava dentro dos seus padrões de desempenho, já destrinçar palavras no meio de frases, todas elas semelhantes, para escolher a correcta, provocava-lhe tonturas.

Nesses dias perdia, literalmente, o pio. Não assobiava e, muito menos, cantava coisa que se ouvisse. Parecia um frade capucho com voto de silêncio. Mesmo as vendas, no estabelecimento comercial onde trabalhava, ressentiram-se do stress do António. O patrão avisou-o: “Vê lá se tiras a carta rapidamente ou desistes dela, senão vais para o olho da rua. O teu rendimento profissional tem decaído a olhos vistos. E isso sente-se na caixa ao fim do dia. Se não apuro nada, nada te posso pagar.”

E ele: “Sim, senhor Alberto. Eu vou-me aprumar. Na condução já me desenrasco, o código é que é uma chatice. Baralho-me deveras nas respostas, confundo alguns sinais e não destrinço lá muito bem o que pretendem que eu responda. E isso dá-me cabo dos nervos. Eu que até decoro todas as letras das canções, mesmo das mais difíceis, como é o caso de “O Calhambeque”, vejo-me e desejo-me para acertar uma resposta. Aquilo é meio por meio, acerto uma e erro outra logo de seguida. É um tormento. Olhe que ler é uma coisa, mas entender aquilo que se lê é outra bem distinta. Eu que o diga, que leio aquelas frases todas de enfiada, mas não entendo quase nada. Muita gente reprova no código porque não atina com o sentido das perguntas. Umas vezes pretendem uma resposta e noutras exigem outra diferente, sem que eu descortine o motivo da discrepância. A tarefa é de doidos. Mas vou perseverar naquilo até que me saia tudo direitinho. O senhor Alberto é testemunha de que não sou nada burro, eu decoro muito bem as letras das canções, como é o caso de “O Calhambeque”. Quer ver: “Mandei meu Cadillac / Pr'o mecânico outro dia…” E foi por ali adiante declamando, pois, como já vos contei, o António perdia a voz nas vésperas das aulas de código, no próprio dia e ainda no dia seguinte.

Ora isso originou uma interrupção prolongada na volátil carreira do cantor de bairro. Mas nada o arredava da teima. Queria tirar e carta. E a isso se dedicou de corpo e alma, pois artista sem carro é como um futebolista sem chuteiras, padre sem batina, guarda sem farda, ou…

Mas voltemos à aflição compulsiva do António, no preciso momento em que o interrompemos, estando ele a declamar para o patrão a letra de “O Calhambeque”: “Com muita paciência / O rapaz me ofereceu / Um carro todo velho / Que por lá apareceu…” À medida que prosseguia na sua declamação, os olhos iam-se esbugalhando, as veias do pescoço engrossando e os cantos dos lábios ficando brancos com o acumular de saliva. Mas ele nada de desistir: “Confesso que estava / Até um pouco envergonhado… O Calhambeque, bip-bip / Buzinei assim o Calhambeque / Bi Bidhu! Bidhubidhu Bidubi…” E ainda: “E logo uma garota / Fez sinal para eu parar / E no meu Calhambeque / Fez questão de passear…” Entretanto começou a ficar escarlate, com os olhos totalmente esbugalhados, a tremer de nervoso, a inchar ainda mais as veias do pescoço, quase à beira do desfalecimento. Mas não desistiu, pois tinha de se convencer e convencer o patrão, que era bom de memória e que os testes do código é que eram fora do comum, uma coisa do outro mundo.

“E muitos outros brotos / Que encontrei pelo caminho / Falavam: Que estouro / Que beleza de carrinho…" E o António a inchar e a perseverar, a perseverar e a inchar, a declamar, a perseverar, a inchar, a avermelhar, a salivar e a declamar: “Mas o meu coração / Na hora exacta de trocar / Aha! Aha! Aha! Aha! Aha!...”

E o António a inchar como a rã que queria ser boi, a avermelhar, a perseverar, a salivar, e a declamar: “Meu coração ficou com / O Calhambeque / Bi Bidhu! Bidhubidhu Bidubi…”

O senhor Alberto aflito, vendo que o António estava mesmo à beira de estoirar, tentou terminar com a loucura: “Pára rapaz ou ainda te dá alguma coisa. Pára.” Mas ao António já nada o fazia parar. Conduzindo o seu “Calhambeque”: “Bem! Vocês me desculpem / Mas agora eu vou-me embora… / Bye! Eh! Bye! Bye!” E desmaiou.

“Ai que o menino Toninho apagou-se”,  gritou a Dona Augusta que tinha vindo de propósito comprar umas cuequinhas de renda, uma combinação cheia de folhos, um curto saiote vermelho, umas meias de seda e umas ligas para prender tudo aquilo de forma a parecer uma actriz de cinema americano.

“Ai que o menino Toninho apagou-se”, exclamou novamente, agora gemendo e tremendo de susto, a Dona Augusta, uma das suas fãs mais devotas, pois o António, com as suas cantigas de amor e as suas sugestões de roupa interior, tinha dado alma e inspiração a um casamento que teimava em entrar no tédio e na modorrice.

Por entre os sorrisos nervosos dos colegas, a aflição da Dona Augusta e a estupefacção de alguns estudantes liceais que se juntaram por causa dos gritos que escutaram vindos do estabelecimento comercial, o senhor Alberto ainda teve o sangue suficientemente frio para ir diligenciar um copo de água com açúcar ao café do outro lado da rua e assim, doce e fresco, o serviu a um António exausto que ia explicando à Dona Augusta e novamente ao patrão: “Eu tenho boa memória, não sou tonto nenhum. Os testes do código é que me dão cabo dos nervos. Custa-me a atinar com a resposta correcta. É meio por meio. E assim reprovo. Na condução já me desembaraço, o código é que é uma maçada. É meio por meio. Confundo-me nas respostas, misturo vários sinais e não acerto com o que eles pretendem como resposta. E isso dá-me cabo dos nervos. Eu, que até decoro as letras das canções mais difíceis, como é o caso de “O Calhambeque”, desunho-me para acertar uma resposta à primeira. Aquilo é meio por meio. Se acerto uma, erro outra logo de seguida. É um tormento. Ainda há pouco disse, e agora repito, pois nunca me tinha dado conta, que uma coisa é ler, mas entender é outra bem distinta. Eu até leio aquelas frases dos testes todas de enfiada, mas depois aquilo baralhasse-me tudo na cabeça. Muita gente chumba no código porque não descobre o sentido das questões. Eu é meio por meio. Umas vezes exigem uma resposta e noutras pretendem outra diferente, sem que eu descortine o motivo da discrepância. Aquilo é de doidos. Mas vou perseverar naquilo até que me saia tudo direitinho. Vou. Vou e vou. Eu decorei “O Calhambeque” do Roberto Carlos sem ajuda de ninguém, nem dum papel. Foi só ouvi-la algumas vezes directamente da telefonia e zás, entrou direitinha na minha cabeça. A letra da canção do Roberto é constituída, fora a parte falada, por sete estrofes, tendo as três primeiras nove versos, a quarta dez, a quinta novamente nove, a sexta onze, a sétima e a oitava oito. Além disso as rimas são fracas. Ao todo são sessenta e cinco versos, fora a parte falada. E tudo isso decorei e canto sem esforço nenhum. Mas o código, o código…”

Foi então quando a Dona Augusta teve uma lembrança das boas: “Deixe estar Toninho, que eu vou falar com o meu marido, que é unha e carne com o Senhor Baptista, o dono da Escola de Condução, e logo se há-de ver o que se arranja. O menino sabe que eu sou grande amiga sua. O que fez por mim não tem preço. Só eu e o meu Jeremias é que sabemos o bem que foi para nós tê-lo conhecido, ter escutado o seu repertório e aceitar os seus conselhos para a minha lingerie. O Toninho é um anjo. Não se aflija mais que tudo se há-de arranjar a contento de todos. Agora descanse lá um bocadinho e cante-me “Eu te darei o céu”. Se faz favor.”

“Perdoe-me Dona Augusta, mas hoje não consigo. Tenho o fole cansado”, rematou o António.

“Não faz mal, fica para a próxima”, disse despedindo-se a Dona Augusta. 

28
Set11

O Poema Infinito (67): as memórias

João Madureira

 

No teu corpo de abrigo abro a minhas velas pandas e navego. Navego e cavalgo. Os ventos são perfeitos e a tempestade é um breve instante de eternidade. Afloram-me aos lábios as palavras dos instantes que se sucedem. Os nossos corpos combinam-se como ondas de desejo. Os nossos olhos reflectem o irresistível ensinamento das marés. Tu és a minha rota de vontade. Abrigo-me na tua sombra esperando as gaivotas que se juntam no convés. Temos ainda uma reserva clara de paixão. O mar calmo embala um sonho doce de pacificação. Um voo de ave mergulha no verde dos teus olhos enquanto bates as pálpebras em câmara lenta. Ficas Iluminada como um círio. Agora moldo o fogo que me abrasa nas formas do teu corpo acetinado em púrpura. Os gestos densos tornam-se demiúrgicos. Queimo-me no sonho íntimo da matéria. A memória é um vórtice. E o tempo é um cruel rito de desespero. Por isso os sorrisos incendeiam-se na dolorosa expectativa do prazer. Pego em ti como o lume envolve a carne que quer possuir. E o instinto submerge o desejo e o desejo submerge amor e o amor submerge a morte e a morte submerge tudo e tudo submerge o nada. A cada dia que passa recolho mais e mais destroços de sonhos antigos. As memórias queimam. As memórias reflectem os recantos da infância perdida. As memórias escorrem pelas paredes das casas abandonadas. As memórias são chagas abertas pelo pó indelével do passado. As memórias rebentam, enlaçam, perturbam os nervos que produzem o equilíbrio. As memórias fundem os nossos cânticos magoados. As memórias cortam. As memórias consomem vidas e gestos e lágrimas e palavras. As memórias são também ímpetos traiçoeiros. As memórias percorrem a fragilidade dos sorrisos inocentes. As memórias são pétalas murchas levadas pelo vento frágil do desalento. As memórias abrem a pele dos ímpios, incendeiam os lamentos dos moribundos e sustentam o pão-nosso de cada dia. As memórias são súplicas de esperança e de desilusão. As memórias são o pecado original. As memórias são carícias de cinza e poeira doirada e procura e desespero. Por vezes, as memórias são também lareiras acesas numa noite fria de Inverno. De bom grado te daria a saborear as minhas memórias mais doces, mas as memórias são intransmissíveis. São cruelmente individuais. São como guloseimas de plástico, como frutos de vidro, como jóias falsas, como ilhas longínquas. As memórias são tufões infinitos de obsessão. As memórias são o desejo impossível das origens. As memórias nascem no fundo do mar quando cada um está ainda dentro do ventre materno. As memórias têm a sedução fria dos corais e do sal e das noites sacudidas pela textura enganadora da quietação. As memórias são o lugar incerto de todos os orgasmos simples ou múltiplos. As memórias são pegadas na areia da praia, são os promontórios do desejo, são os sinais da saudade de ter saudade. As memórias são barcos iludidos pelo cantar das sereias, são pénis erectos pelo desejo impossível. As memórias, quando estão a chegar ao destino, queimam-se como filamentos de lâmpadas. As memórias são também um bocadinho da divindade e da sua perfídia e das escarpas escorregadias da sua redenção. As memórias são plantas solitárias e animais solitários e homens solitários e mulheres solitárias e livros solitários e fotografias solitárias e malas solitárias e casas solitárias e dias solitários e camas solitárias e sorrisos solitários e lágrimas solitárias e deuses solitários e amantes solitários e filhos solitários e mães solitárias e pais solitários e avós solitários e beijos solitários e masturbações solitárias e sonhos solitários e noites impiedosas e perseguições infinitas e esperanças feridas e penetrações esplendidamente sonhadas e poemas de vento e extensões de florestas queimadas. Por tudo isto e por ainda tudo o mais que fica por dizer, respiro agora na noite domesticada pelas carícias do amor. Tu ainda não és memória. Deus seja louvado.

26
Set11

O golfe, a feira medieval e a agenda cultural

João Madureira

 

R. virou-se de repente para mim e disse: “Um estudo recente feito por especialistas revelou que a cultura do golfe tem um efeito extraordinário na consolidação e desenvolvimento da democracia, do mercado livre e no incentivo para uma sociedade mais aberta. Os países, com uma cultura do golfe raramente entram em guerra e, quando o fazem, nunca lutam entre si. Já os países onde essa cultura não está implementada possuem um perfil marcadamente mais belicoso.”

 

“É um facto”, concordou o F. com uma pontinha de sarcasmo. 

 

“Faz todo o sentido”, continuou o R., “pois o golfe é o desporto da burguesia por excelência. E o que pretende a burguesia? Paz, claro está. E também pretende ordem e segurança. E deseja, ainda, uma estrutura social que seja propícia ao negócio, para que possa fazer aquilo que sabe fazer melhor, ganhar muito dinheiro. É esse o efeito civilizador da classe média, e, sem ela, a democracia morre na praia.”

 

“O problema é que no nosso país ela está a desaparecer”, lembrou o M. “E quando a classe média não consegue jogar golfe aproxima-se a bancarrota…”, “Ou uma revolução”, augurou o L.

 

Eu tentei por uma pouco de água na fervura: “Como muito bem diz Anatole Kaletsky, no seu livro Capitalismo 4.0, o mundo é demasiado complexo e imprevisível para que qualquer mecanismo de tomada de decisões seja consistentemente correcto, quer se baseie em incentivos económicos, quer se baseie em incentivos políticos. A experimentação e o pragmatismo têm, portanto, de se tornar palavra de ordem…”

 

“Tu lês muito”, atirou-me à cara o R. “És um poço de sabedoria.”

 

Ao que eu retruquei: “Leio muitos livros, mas não os suficientes para me considerar um intelectual. Nunca o fui e nunca o serei. Posso afirmar que nem golfe sei jogar. E isso, como muito bem quis dizer o R., é um entrave à democracia e ao desenvolvimento social. Na verdade, nunca me especializei em coisa nenhuma, nem em mulheres, nem em vinhos, nem em futebol, nem em cinema, nem em política. Considerei que era muito classe média-média, pois gosto de estar no silêncio do meu escritório, na modorrice do meu quarto silencioso e no conforto da minha sala a ver televisão em alta definição. Pensava que dessa forma contribuía para o aprofundamento da democracia, para a consolidação do mercado, para o estímulo de uma sociedade mais livre e aberta. Para a paz. Mas, sei-o agora, como não sou capaz de acertar com um taco numa bola pequena e enfiá-la num buraco exíguo, estou a contribuir para a bancarrota, ou para o eclodir de uma guerra, ou duma revolução.

 

“Todas as guerras deviam ser à maneira antiga, decididas em duelos de espada, cada qual utilizando a sua inteligência, a sua força e a sua habilidade”, lembrou com um brilhozinho nos olhos o F.

 

O D., que esteve calado até esse momento, foi quase logo ao que lhe interessava. Primeiro demoliu o golfe, que, na sua opinião, é um jogo para meia dúzia de manientos. Ele, que se afirma um rural empedernido, diz que gosta da tradição. Mas a tradição já não é o que era. Mesmo assim lembrou-se de dar como exemplo de boas práticas a realização da Feira Medieval. Disse que sim senhor, que esteve bem. Que na Idade Média é que se vivia com todo o recato. Gente simples, que ia feirar com o que tinha, sem se preocupar com o futuro. “Nessa altura”, lembrou o D. “vivia-se o dia-a-dia com simplicidade e agrado. E assim é que devia ser. O progresso matou a tradição, assassinou o convívio, estraçalhou a honra, depenou o amor, aviltou a amizade e defenestrou as relações sociais.”

 

O F. lembrou-lhe que na Idade Média as pessoas morriam como coelhos, passavam fome de rato, matavam-se por dá cá aquela palha e trabalhavam como escravos. “Por isso te digo que esses arremedos de feiras medievais que por aí se realizam são sucedâneos dos filmes de aventuras e, por isso mesmo, puros exercícios de ficção para enganar papalvos e vender bugigangas. Além disso, o que tu viste em Chaves tem muito pouco de feira portuguesa, ou ocidental. O rigor histórico é ínfimo. A falcoaria era apanágio de ricos, os encantadores de serpentes eram islâmicos, como islâmicas eram as danças do ventre, os suk, os karavansai e as jaymas. Isto já para não falar nas lendas tuaregues e berberes, importadas, especialmente, do Magrebe.”

 

“A mim”, disse o L. com toda a ronha do mundo, “o que me fascinou foi o parque infantil medieval. Isso diz tudo acerca das patranhas que por aí se vão efectuando com o nome de Feiras Medievais.”

 

Eu tentei pôr um pouco de água na fervura: “Se calhar isso é o que menos interessa. De facto, o circo foi interessante. Aquilo é um espectáculo montado para atrair pessoas. Para as divertir. Para…”

 

Mas o F. adiantou-se: “Para enganar papalvos. Para ir fazendo campanha eleitoral mesmo com as eleições ainda longe. É por estas e por outras que o país está à beira da bancarrota. Gasta-se aquilo que não se tem com objectivos de propaganda. Desbarata-se dinheiro em inutilidades. E depois quem paga somos todos nós que não fomos tidos nem achados nas decisões. É o pão e o circo para entreter o povo. E tudo isto sucede enquanto o país não cria empregos para oferecer aos desempregados e aos jovens, enquanto se corta na saúde, na educação e na segurança social. Faz-me lembrar o Titanic, que enquanto a orquestra tocava o navio se afundava, inexoravelmente.”

 

Depois de o deixar desabafar, tornei a teimar: “O público até interagiu com os músicos e os actores. É festa, é festa…”

 

“A festa acontece sempre antes da tragédia…”, tornou a perseverar no seu pessimismo o F.

 

Mas eu tornei a teimar: “Venderam-se produtos da terra, roupa, petiscos…”

 

Mas o F. tornou a interromper: “Isso vende-se sempre. Seja Feira Medieval, Feira dos Stocks, Feira dos Chás, etc. Além disso, e para vergonha nossa, as alheiras e as linguiças vieram da Guarda.”

 

Mas eu tornei a teimar: “Reconheço que este pagode já o vi em muitos outros lugares. O espectáculo é montado por uma empresa especializada. No entanto, foi agradável de seguir. Os artesãos…”

 

“Artesãos? Os poucos artesãos que por lá vi eram todos de fora”, exagerou, como é seu costume, o F.

 

Com a toleima com que o F. argumentava, não deu para continuar a conversar sobre a feira. Ele, quando quer, é mesmo mau. Por isso, resolvi ir para casa ver o debate no parlamento. Lá também teimam muito uns com os outros, exaltam-se e berram, como se fossem todos surdos. Isto apesar de terem microfones com muito bom som. Manias. Mas consigo ouvi-los sem me chatear, pois não são meus amigos. Além disso, aquilo que eles dizem entra-me por um ouvido e sai-me logo pelo outro. Se um diz bem de uma coisa, de imediato outro vem explicar o contrário. Parecem garotos. Ninguém se leva muito a sério. É tudo retórica. Tudo encenação.

 

Já um pouco fora da Feira Medieval e do Parlamento, abri a agenda cultural para me inteirar, e para vos dar conta, do que de mais relevante se passou na cidade, isto na perspectiva dos senhores que a elaboram, identificados no documento como o putativo “Gabinete de Apoio Técnico à Eurocidade Chaves-Verin”, seja lá isso o que for.

 

Informo os estimados leitores que, desde logo, a apresentação me fascina. A sua dimensão em harmónio é um dos seus elementos mais sedutores, senão mesmo o primordial. E os seus títulos em escada são, também eles, um elemento gráfico muito atraente, além de prático, pois a busca é instantânea. A capa da edição de Setembro traz dois saxofones. E eu também gosto muito de saxofones. E o fundo é azul. E eu também gosto muito do azul. Bastava apenas isso para ter o meu apoio. Mas toda ela é sumarenta e repleta de surpresa, evidenciando, desde logo, o forte apoio às artes por parte da autarquia e a oferta cultural no nosso concelho, que é vigorosa, diversificada e de grande qualidade.

 

Senão vejamos: Com a identificação de “todo o mês”, temos três actividades de topo, pois são as iniciativas com mais destaque na agenda: o mundo dos livros, a hora do conto e o curso de teatro. No entanto, relativamente à primeira iniciativa ela não passa de uma proposta, que se pode realizar… ou não, dependendo de marcação prévia por parte de grupos organizados. E também não é durante todo o mês, como erroneamente se veicula, mas apenas às terças-feiras, ou seja apenas quatro dias em vinte e tal possíveis. A hora do conto sofre do mesmo problema, pois só se realiza às quintas-feiras. Relativamente ao curso de teatro, não são prestadas informações específicas, limitando-se a agenda a informar os interessados que estão abertas as inscrições.

 

Claro que nas páginas da agenda também existem algumas propostas de música e uma que outra exposição. Mas o prato forte da agenda cultural continua a ser as concorridíssimas palestras no SPA do Imperador, nada mais, nada menos, do que seis, um workshop e três caminhadas. A interessantíssima temática da podologia deu agora lugar à alimentação e outras temáticas convergentes. A primeira foi sobre o rastreio de nutrição, a segunda foi o primeiro remake da edição de Agosto (Osteoporose e os seus factores preventivos), a terceira evidenciou a menopausa e a alimentação, a quarta abordou os mitos da alimentação, a quinta foi outro remake da edição de Agosto (A alimentação dos nosso filhos e netos) e a sexta abordou a nutrição e as doenças cardiovasculares. O workshop (com a exigência de uma inscrição de sete euros) foi dedicado às ervas aromáticas e às especiarias. Mas as Termas de Chaves – SPA do Imperador, arranjou ainda forças, e capacidade logística, para organizar três caminhadas, com uma inscrição de cinco euros, mas com direito a assistir à actuação de um rancho folclórico.

 

Podemos dizer, sem nenhum exagero, que se não fossem a Biblioteca Municipal e as palestras do SPA do Imperador, a agenda corria o sério risco de ter edições com espaços em branco para as iniciativas de Chaves e todo o restante preenchido com a divulgação dos filmes clássicos que passam em Verin. Com este tipo de vida cultural no nosso concelho, estamos em crer que mudar é preciso. Para mais informações, esperem pela próxima semana. Até lá. E agora desculpem-me que vou ali vestir o fato de treino, calçar as sapatilhas ortopédicas, pegar no bordão e meter dez euros ao bolso, pois não posso perder a caminhada do SPA. 


23
Set11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

81 – Mas havia algo que teimava em perturbar grande parte do êxito artístico do António. Trajar de fato, camisa à francesa e, ao mesmo tempo, pedalar uma bicicleta, para o que tinha de amarrar a bainha das calças com uma mola de pendurar a roupa. Era uma situação vexante. Podia sonhar em ir a calcantes para o emprego, como o faziam os pequeno-burgueses que habitavam no centro da cidade. Mas ele, qual trabalhador suburbano, tinha de palmilhar os quilómetros da praxe para ir de sua casa ao trabalho, regressar para o almoço, ir de novo para o trabalho e regressar ao fim do dia a casa para comer a ceia, acomodar os canários e ensaiar o repertório. 

Os ensaios fazia-os sempre em frente ao espelho do guarda-fatos do quarto tendo por plateia os irmãos que se enchiam de rir e bater palmas. Quando ainda estava um pouco inseguro do seu desempenho numa nova canção, aí enxotava a garotada para fora da sala de ensaios e trabalhava com afinco as suas performances românticas tendo por base as fotografias das capas dos discos, fotografias recortadas de jornais e revistas ou das actuações dos verdadeiros artistas em programas de variedades televisivas.

Tentou ainda acrescentar ao seu repertório a “Canção do Rouxinol” e “Campanera”, de Joselito, mas desistiu porque não conseguia, por mais que tentasse, imitar os requebros e os vibratos do Pequeño Ruiseñor (em português, o Pequeno Rouxinol). Era pura e simplesmente incapaz de emitir os sons agudos prolongados, que eram o principal trunfo de Joselito.

Durante muitas das suas actuações, quer para grandes plateias, quer para plateias mais discretas, quando lhe pediam que cantasse canções do Joselito, ele, entre o embaraço e a cordialidade, desculpava-se com o tipo de voz do ruiseñor (rouxinol em português) espanhol, que, na sua perspectiva, era a de uma criança, e ele, o António, de criança, já não tinha nada. Ou quase nada, se lhe tirarmos o sonho, a inocência e o deslumbramento.

O público comum, na sua frontalidade, franqueza e entusiasmo, retorquia-lhe que ele era quase tão pequeno como o Joselito, ou o Joselito era quase tão alto como ele, que era a mesma forma de dizer que ambos e dois, como muito bem diz o povo no seu linguajar patusco, eram minorcas. Mas, apesar da provocação, que todos entendemos genuína e sincera, e por isso fruto da ingenuidade e do gosto popular, o António espargia-os com música à capela, como sói dizer-se hoje em dia. Então debitava as modinhas de Roberto Carlos, Nelson Ned, Teixeirinha, Los Diablos, Gianni Morandi, e dos Antónios: Calvário, Mafra, Matos e Mourão, que punham aos pulos o coração dos mais jovens, arrepiavam a pele e punham os pêlos em pé aos amantes, partiam o coração aos casais mais maduros e faziam chorar baba e ranho aos velhotes. Com um misto de carinho e provocação, muitos dos seus amigos, sabendo-lhe do dói, perguntavam-lhe: “E o rouxinol? Queremos o rouxinol. Rouxinol, rouxinol, rouxinol.” Ao que ele respondia com muita habilidade e sapiência: “O rouxinol ficou em casa na gaiola. Para todos vós, aqui vai, com muito carinho e afecto, especialmente dedicado às raparigas namoradeiras, e aos rapazes mais atrevidos e marotos, a “Namoradinha de um amigo meu”, de Roberto Carlos.”

Era frequente ouvir-se na plateia: “O rapaz pode não poder com o «Rouxinol» do Joselito, mas dá-lhe forte com as canções do Roberto. E assim, mesmo sem instrumentos nem microfones, apenas com a boca, é um regalo ouvi-lo cantar. A voz é um instrumento poderoso.”

Todos lá no bairro concordavam com o teor deste comentário. O senhor Manuel, o seu autor confesso, que possuía uma taberna, um mix, como sói dizer-se contemporaneamente, de loja comercial e casa de pasto, era um dos seus mais indefectíveis fãs. Noite em que o António actuasse no Bairro, era certo e sabido que o vinho, os petiscos, os rebuçados de tostão e os espanhóis, os sorvetes de groselha, as embalagens de bolacha Maria e a laranjada Flávia, se esgotavam, ainda antes de a noite terminar.

É provável que estejamos a exagerar um pouco, pois o vinho era muito difícil de se esgotar numa taberna de bairro no início dos anos setenta. O vinho – desde que o mundo é mundo, ou desde que Cristo ensinou o seu povo a baptizá-lo e a multiplicá-lo, técnica que também aplicou ao pão e ao peixe, mas sem tanto êxito –, além de existir como reserva estratégica numa taberna, tal e qual o ouro no Banco de Portugal, sem grandes técnicas pode ser acrescentado. Claro que perde algumas das suas qualidades organolépticas intrínsecas, como o sabor, o odor, a cor e o corpo, mas ganha outras, como por exemplo a de não emborrachar tanto.

O António, já um verdadeiro manipulador de plateias, misturava sabiamente as canções, sobretudo as brejeiras com as mais sentimentais, perseguindo claramente a intenção de produzir um efeito catártico, o que lhe conferia um estatuto de estrela de bairro, que não sendo uma forma de ganhar a vida era, nitidamente, uma forma de adquirir estatuto e criar amizades electivas e licenciosas. Pois essas coisas não são apenas apanágio dos ricos, famosos e notáveis. É que os pobres também têm sentimentos, sexo e cérebro. Além de verem, sentirem, emocionarem-se com o sol, o vento e um céu azul ou vermelho ou laranja, gostam de beijar, acariciar, oferecer flores, ouvir palavras doces, fazer carinhos, e até trajar com luxo e ouvir contar uma boa história, ou ver um lindo quadro, ou, até, fazer amor, mesmo que lhe chame outro nome. O povo pode, muitas das vezes, não acertar nas palavras, mas bate quase sempre certo nos sentimentos.

Mesmo sem dar nas vistas, o António, a par do êxito, começou a ganhar algum dinheiro extra. E, farto de pedalar com molas a prender as calças, como um vulgar trolha suburbano, imaginou comprar um carro. Por isso, um dia, ao chegar do trabalho, virou-se para o pai e anunciou: “Vou tirar a carta.” E o pai: “E para que queres tu gastar dinheiro a tirar a carta de condução? Pesa-te o dinheiro no bolso? Pensa mas é em comprar uma mota como a minha. Eu, iludido como tu, tirei a carta de condução. E para quê, se continuo a andar só de mota? Um carro não é luxo para pobres. Desengana-te meu filho. Uma mota é que é. Vais e vens do trabalho rapidinho e sem te cansares.” Ao que o António respondeu: “Posso ir e vir mais rápido de mota, mas de Inverno quem é que aguenta o frio e a chuva? Eu vou tirar a carta de condução.” E foi para o quarto ensaiar “ O Calhambeque” do Roberto C.: "Essa é umas das muitas histórias / Que acontecem comigo / Primeiro foi Suzy / Quando eu tinha lambreta / Depois comprei um carro… / Quero buzinar o Calhambeque / Bi Bidhu! Bidhubidhu Bidubi!...

21
Set11

O Poema Infinito (66): a geometria da destruição

João Madureira

 

Permanece vazia a casa abandonada. De uma janela avista-se o rio. Cá dentro existe um cheiro intenso a humidade e a afastamento. Lá fora flutuam aromas intensos, cores fortes e olhares desamparados. A aldeia vive agora subjugada na sua geometria de destruição. As sombras e as silvas tomaram conta das paredes. Os insectos rumorejam misteriosos delírios. Toda a ilusão cai esfarelando-se no chão esburacado da sala. O medo é agora insinuante. Nem a imagem dos mortos se fixa nas fotografias amarelecidas. Aquela era a minha porta da infância. Hoje é um abismo de desilusão. Os ângulos da casa reflectem a meticulosa memória das cinzas. A casa atravessa agora o corpo esfíngico dos espectros. A saída secreta é actualmente um espelho de trevas. O silêncio espreita por cima do meu ombro a solidão da folha em branco. Não há escrita. Escrever dentro deste mausoléu é uma impossibilidade manifesta. O avô desfez-se numa alegoria. A avó é uma espiral dorida. O pai é uma tristeza branca. A mãe um reparo inclinado. As arestas das paredes progridem para dentro das palavras. A desolação perfura as memórias que se afundam no tempo do esquecimento. Tento acender o lume, mas os dedos encolhem-se como hélices. A solidão é tão grande que mete medo. A solidão das escadas, a solidão das portas fechadas, a solidão dos caminhos, a solidão da adolescência, a solidão das fechaduras inúteis, a solidão dos besouros abandonados, a solidão dos bancos, a solidão da herança e das árvores e dos sentidos, a solidão das fotografias e dos textos felizes, a solidão dos corpos e dos queixumes nocturnos. A casa abandonada permanece vazia. Mingou muito. A candeia está no mesmo sítio mas apenas serve para as aranhas comporem as suas teias. A varanda estilhaçou-se em mil resíduos de evocações. E o poço inverteu-se. A minha mente procura um rosto. Mas já não tenho certeza de quem. Foram-se as imagens e apenas ficaram os nomes definhados. Recrio a memória catastrófica da morte. Pouco mais há a dizer. A aldeia é uma perturbação da paisagem. A casa cada vez mais se inclina para o abandono. As horas deste lugar são um nada absoluto. Amanhece? Anoitece? Tanto faz.

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