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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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19
Set11

Filosofia, aves canoras e diversas apreciações ao Governo da Nação

João Madureira

Quando olhou para uma rapariga, desenhada pela mãe natureza a régua e compasso, que passou no nosso ângulo de visão, o rosto do meu amigo A. transformou-se num sorriso triste e nostálgico. E disse: “Pois, a beleza. A beleza! A beleza parece-me bem, mas apenas serve para o prazer. Na minha perspectiva, os homens deviam dedicar a sua vida a fazer coisas úteis, tais como…”

 

Eu, para abreviar a desconversa, interrompi-o energicamente: “Mas quem foi que te meteu na cabeça que a beleza e o prazer não podem ser úteis?” Ao que A. me respondeu, agitando nervosamente a caixinha das pílulas de viagra que transporta no bolso: “Foi a idade.” Eu, para despistar a nostalgia e a angústia do envelhecimento, que cada vez vai teimando mais em nos atazanar a vida, retorqui: “Não me confundas, nem te desculpes. Tu, que foste um revolucionário inflexível, não pregavas aos quatro ventos que o objectivo final de todas as revoluções eram a beleza e o prazer distribuídos por toda a gente?” Ao que o meu desenganado amigo respondeu rindo com dentes de escárnio e lábios de maldizer: “Pois! Talvez seja. Vou ter de pensar nisso.”

 

O F., que fazia que se entretinha a resolver um sudoku de nível médio, resolveu participar na conversa: “O A. fala na beleza mas penso que se está a referir ao desejo. Entretanto tu falas na revolução, mas queres dizer arrependimento.” “Cá para mim estás-te a armar. Agora de velho é que te deu para a filosofia? Quando novo detestava-la”, remoncou o A. Mas o F. não se deu por achado e atacou forte: “Posso-vos confessar que foi o desejo quem arruinou a primeira metade da minha vida e a outra metade foi estragada pelo seu oposto, o arrependimento. A não ser que tu” – e apontou o seu dedo acusador na minha direcção – “me consigas explicar como pões a funcionar o truque da serenidade.”

 

Com amigos destes, um homem tem de estar sempre atento, senão sai do jogo. Por isso tentei imitar um dos líderes mais querido e estimado de todos os tempos e disse: “Em verdade, em verdade vos digo, existem tão poucas coisas no mundo sobre as quais conseguimos ter certezas, que talvez seja essa indeterminação quem guia as nossas compulsividades mais fortes.” Depois desta tirada, todos ficámos em silêncio.

 

Mas foi sol de pouca dura. No nosso grupo, cada um à sua maneira, está sempre a delimitar o território. E já que não o pode fazer urinando, como o fazem, por exemplo, os lobos, utiliza o expediente das palavras. Por isso o D., que até ali tinha estado a ler uma revista científica, resolveu também dar um ar da sua graça: “Em algumas florestas da América do Sul, existem aves verdadeiramente extraordinárias. Por exemplo, o assobio harmonioso e divino do rapazinho do chaço só se pode escutar apenas um pouco antes do amanhecer. Todo o outro tempo está de bico calado. O chamamento da araponga ouve-se a quilómetros de distância. E o famoso pássaro do petróleo apenas voa durante a noite utilizando, para isso, um equipamento de radar que tem na cabeça…”

 

“Tu é que me saíste cá uma ave canora!”, chalaceou o A. “E tu um papagaio de gabarito”, retorquiu o D. Eu, para dar um arzinho da minha graça, resolvi introduzir nova alínea na conversa e, imitando os Monthy Python, cantarolei: “E agora algo completamente diferente…”

 

“Então vamos agora falar de política”, propus. E eles: “uuuuuuuuuuu”. Mas eu não liguei e continuei na minha, pois sei, de ciência certa, que os homens só gostam de falar de três coisas: sexo, futebol e política.

 

O primeiro pontapé foi meu: “Por falar em aves canoras, o bisnau do ministro das Finanças fez três conferências de imprensa e conseguiu surpreender em cada uma delas. Mas sempre pela negativa. Em todas anunciou subida de impostos. Primeiro foi a sobretaxa extraordinária sobre o subsídio de Natal, depois foi a antecipação da taxa normal do IVA na energia, que apenas estava prevista para 2012, e, finalmente, decidiu agravar a derrama estadual no IRC e introduzir uma sobretaxa no IRS do último escalão.”

 

“E então, qual é a surpresa?”, perguntou D. enquanto este vosso amigo esfregava os olhos. Eu, que sei antecipar as perguntas, engatilhei o argumento justificador do embuste eleitoral que nos pregou o primeiro-ministro: “Foi Vítor Gaspar quem andou, mês após mês, a explicar, em tudo quanto era órgão de informação, que havia muito por onde cortar despesa em Portugal. Mas, até ao momento, apenas se limitou, como qualquer aprendiz de contabilista, a subir os impostos. E isto é um embuste, uma falsidade e uma fraude política.”

 

O D., veio a jogo lembrando que o consumo das famílias, segundo o INE, registou, no segundo trimestre do ano, a maior queda de sempre. E declarou irónico: “Ora isso é ainda consequência das medidas de austeridade do governo de José Sócrates.”

 

O F. fez um reparo, lembrando, e bem, que as medidas de austeridade da era Sócrates, comparadas com as deste governo, são como equiparar um ligeira ventania a um tornado. 

 

O A., que não morre de amores por Pedro Passos Coelho, proferiu com voz de barítono: “A praxis política do governo do PSD/CDS lembra-me a velha história do burro a quem o dono resolveu desabituar de comer. O jerico ainda aguentou até ao décimo quarto dia, mas no décimo quinto morreu. Incrédulo, e desgostoso, o dono comentou: Logo agora que te estavas a habituar é que resolveste morrer. És mesmo burro. Quem te baptizou, acertou em cheio.”

 

Todos nos rimos a bom rir, menos o D., por isso resolveu provocar: “O PSD é visto, até pelos verdadeiros socialistas, como um partido responsável e, apesar do mar revolto em que nos encontramos, está a levar o país a bom porto. Daí a presença de Mário Soares na Universidade de Verão do PSD.”

 

“Olha que o problema não está na presença de Mário Soares na iniciativa do PSD, mas sim nos jovens social-democratas terem gritado que «Soares é fixe», depois de o ex-presidente da República ter criticado duramente a vassalagem do governo do PSD/CDS à troika, aumentando brutalmente os impostos e privatizando tudo o que é público, rentável e estratégico”, atalhei eu.

 

Dos quatro elementos do grupo, três estamos de acordo em que o PSD está a ter uma prática política totalmente contrária ao discurso que fez na oposição. Que foi enganador e demagógico o discurso dos partidos do Governo, pois unicamente teve por objectivo criar uma crise política, com o único objectivo de conquistar o poder. Com essa atitude introduziram no debate ideológico um défice moral que vai, necessariamente, afastar ainda mais as pessoas da política. Além disso, os membros mais importantes do Governo revelam um liberalismo dogmático excessivo, que os afasta da compreensão da coisa pública e da administração e gestão da vida de um país. Por detrás das estatísticas existem pessoas. E os outros ministros e secretários de Estado mostram um amadorismo serôdio e ridículo. E por último, o primeiro-ministro, no seu jeito inábil de dizer aquilo que quer camuflar debaixo de subterfúgios linguísticos, já anunciou uma espécie de guerra preventiva contra a conflitualidade social, denominando-a como “risco de tumultos de rua” e está a transpor a perigosíssima fronteira da destruição do Estado social, sem alternativas visíveis, credíveis e sérias.

 

“Já para não lembrar que a nossa dívida aumentou devido ao buraco financeiro encontrado na Madeira. Nada mais, nada menos, do que 1610 milhões de euros que o governo do arquipélago deve ao Estado central. Uma enormidade. E o palhaço ainda…”

 

D., não sabemos se no gozo ou a sério, interrompeu as doutas palavras do F. e trouxe à colação o discurso do inenarrável presidente do Governo da Madeira. “Razão tem o Alberto João. A culpa disto tudo é da Maçonaria e da Internacional Socialista que não cessam de perseguir o distinto madeirense e…”

 

O A., um pouco enfastiado com a arrogância do D., aconselhou-o, imitando o Rei de Espanha: “Por qué no te callas?”

 

A partir daqui a conversa azedou um pouco, por isso abstenho-me de a referir. A amizade a isso me obriga. A amizade e o decoro. O clima de crispação é já visível, mesmo entre amigos. E ainda nem sequer chegamos ao Natal. Então é que vão ser elas.

 

Assistir a estas discussões fez-me perceber que Marx, que se enganou em tantas coisas, tinha razão quando falava na capacidade implacável que o dinheiro patenteava em se imiscuir em todos os aspectos da vida humana.

 

PS – Tinha por intenção dar-vos conta das muitas e variadas iniciativas sugeridas na agenda (axenda) cultural de Setembro da putativa “Eurocidade Chaves-Verin”, no entanto, não sei porque motivo ela, a agenda, não me chegou via correio, depois de alguns anos de recebimentos atempados e, convenhamos, gratuitos. Estou em crer que tudo se ficou a dever a um mais que justificado ajustamento financeiro, vulgo poupança. No entanto, descansem os estimados leitores que não é por esse motivo que me dispensarei de dar-vos conta do que lá vem vertido. Pois se não vai Maomé à montanha, vai a montanha a Maomé. Pois assim é que é. Rima e é bem capaz de ser verdade. Então até para a semana. 

16
Set11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

80 – Dava gosto observar o António pedalar a sua bicicleta enquanto assobiava lindas canções de amor. Ou o António a pedalar e a imitar um gracioso par de pintassilgos, ou de rouxinóis. Ou o António a pedalar e a imitar na perfeição uma ária tocada pela banda dos Pardais. Uma coisa é certa: o António pedalava com toda a virtude do mundo e assobiava com todo o esmero do show bussiness nacional e internacional, fosse lá isso o que fosse.

Um dia, enquanto penteava a sua farta e escura cabeleira frente ao espelho do guarda-fatos, tentou cantar. Tinha escutado na rádio várias canções de amor e, a jeitos de envergonhado, experimentou reproduzi-las a modinho. E saiu-se bem. Por assim dizer, o António possuía um bom ouvido e uma voz que, não sendo muito expressiva, era afinada. Além de cantar, acompanhava as modinhas com baixos nasais, ritmos de bateria produzidos à base de artísticas manobras de língua e solos de guitarra executados da mesma forma, mas de outro feitio.

Com o seu aparelho fonador reproduzia, com muito carinho e denodo, todas as modinhas que escutava e se lhe fixavam na cabeça. E sem fazer esforço nenhum. Pelo menos era o que aparentava. O rapazio apreciava-lhe o jeito e as cachopas dispunham-se a dançar com ele só para ouvir, bem juntinho ao ouvido, as principais canções da moda em estereofonia.

Especializou-se em Roberto Carlos (“O calhambeque”, “Quero que vá tudo para o inferno”, “Eu te darei o céu”, “Namoradinha de um amigo meu”, “Debaixo dos caracóis dos teus cabelos” e, sobretudo, “Eu te amo”); Nelson Ned (“Tudo passará” e “Domingo à tarde”); Teixeirinha (“Coração de luto”, que fazia chorar todas as mães, as suas filhas, as avós, alguns netos e ainda alguns dos cães mais sensíveis à arte e ao drama humanos); Los Diablos (“Un rayo de sol”); Gianni Morandi (“Non son degno di te”). Mas o seu tremendo êxito e a sua grande fama ficaram a dever-se à brilhante imitação do repertório dos Antónios: António Calvário (“Avé Maria” e “Oração”), [Conjunto] António Mafra (“Sete e Pico” e “Arrebita, Arrebita, Arrebita”); [António] Tony de Matos (“O destino marca a hora” e “Digo adeus à saudade”); e António Mourão (“Ó tempo volta para trás”).

Todavia, uma coisa é andar de bicicleta e assobiar e outra, bem distinta, é cantarolar lindas canções românticas, andar de bicicleta e trabalhar de ajudante de trolha. Para contrariar o destino, começou a pensar em arranjar um emprego consentâneo com a sua recente categoria de cantor. Deixou crescer o bigode e cortou o cabelo à imagem e semelhança dos seus ídolos mais próximos.

De fatinho às três pancadas, sapato de salto alto à Nelson Ned, camisa de enormes colarinhos à francesa, desmesuradamente aberta no peito, dirigiu-se corajosamente a uma casa comercial – sita na rua de Santo António e especializada em roupa exterior e interior de homem, senhora e criança (tais como fatos, vestidos, meias, cuequinhas de renda e soquetes e demais sortido), além de uma gama extensa de retrosaria e tecidos –, e solicitou emprego. O patrão do estabelecimento comercial, surpreendido pelo charme discreto, e untuoso, do António, mas, sobretudo, pela ousadia irreverente do sósia de Nelson Ned, sorriu e disse que o artista podia vir trabalhar à experiência por um mês. Depois logo se via. E, de facto, a experiência resultou em cheio.

O António, qual disco-jóquei ambulante, deslumbrou as clientes que, viciadas na rádio e nos seus ícones populares, se deleitavam a ouvi-lo assobiar, ou entoar, todas as canções que andavam de boca em boca como se fossem ladainhas, promessas, sonhos, ou tudo junto.

Se as clientes pediam, e pagavam na hora, um fio de linhas ou um fecho éclair, o António dava-lhes de bónus “Quero que vá tudo pro inferno”. Se lhe pediam chita a metro ou umas cuequinhas de renda, o António debitava a “Namoradinha de um amigo meu”, ao centímetro e o “Sete e Pico” quase ao milímetro. Então se a clientela se atrevia a comprar uma vestimenta de baptizado ou um fato de casamento por atacado, o António era imediatamente solicitado a desbobinar todo o cardápio de canções, menos o “Coração de luto”, do Teixeirinha, e, por precaução, “Ó tempo volta para trás” do António Mourão, pois se as mães dos nubentes ficavam de olhos lacrimejantes e com pele de galinha ao ouvi-la, os jovens noivos, depois de escutá-la, consideravam a sua mensagem inquietante ou extemporânea. 

14
Set11

O Poema Infinito (65): o ruído estrutural

João Madureira

 

Toda a inocência do mundo cabe dentro de um grão de areia, por isso os homens se esquecem da harmonia lenta da poesia. Daí o poemacto de herberto helder e a poesia toda. As cidades cantam incendiadas pela cegueira de Deus que se orgulha do epinício lácteo entoado pelos lábios virgens dos anjos. As tuas mãos procuram, por isso mesmo, o instrumento profundo da angústia. O amor estremece no coração duro dos homens, por isso o seu olhar é um dardo que atravessa a palidez dura do corpo dos amantes prontos a atingir o orgasmo. Todos os orgasmos deixam um rastro que sangra na solidão das noites obsessivas. Mulheres incendiadas pegam nos seus corpos e mergulham nas estrelas. Homens cantam hinos verídicos de onomatopeias habitadas por vozes rudes que homenageiam a honra dos adjectivos absurdos. Agora podemos imaginar a delicadeza e a subtileza de um coito interrompido. Somos tocados por vozes feridas onde o silêncio apreende o seu sexto sentido felino. A morte é um cântico cego. A minha memória cobre-se de nomes infinitos que passam de boca em boca imaginando fórmulas mágicas. Por vezes tudo se ilumina por dentro, por isso as pessoas perdoam o tempo e esquecem as lembranças dolorosas da infância. Quero desprezar todas as coisas para não esquecer coisa nenhuma. O tempo futuro é um profundo movimento devastador. Ardem os lugares na minha memória. Sorrio com um sentimento elevado de demência. Palavras cantam dentro das minhas varandas interiores. Entre elas procuro a linguagem exacta do amor e do desespero. Penso agora no ruído estrutural da criação vegetal, no movimento fabuloso das papoilas, na madrugada triste dos miosótis, na delicadeza impulsiva de uma seara de trigo, no enlouquecido corredor das giestas brancas, no espírito verde dos fetos, na demência sorridente dos nenúfares, na penumbra fulgurante dos míscaros, no pasmo inocente das gipsófilas, na menstruação iridescente dos amores-perfeitos, na lembrança desvairada dos cravos, no estremecimento adormecido das tulipas, na solidão obsidente das silvas e das urtigas e dos tojos, na loucura interior das videiras, no silêncio purificado dos medronheiros, na espantosa exuberância das macieiras em flor e na irremediável banalidade das rosas de todas as cores e feitios e tamanhos. Lembro-me ainda do admirável mutismo das fontes, do irreprimível entusiasmo das montanhas, da inexorável extinção do mundo, da torrente infindável de sofrimento e angústia humanos, da absorvente melancolia dos dias, da misteriosa suspensão da claridade, da arrefecida originalidade de Deus, do sorriso enigmático de uma mulher grávida, da inspiração comovida de um poeta, da impossível verdade de um político, da insustentável leveza de um sorriso de criança, da aprendizagem paciente da beleza, da esperança lenta do amor, do silencioso ruído dos espoliados, do imprevisto grito de igualdade, do erotismo fecundo de uma mulher estendida, do milagre melancólico da escrita, da solidão inventada dos génios, da magnificência dos lençóis de água, da pura substância criadora de um beijo, da substância pura de uma carícia, do despenhamento incendiado de um coito, da auréola intima do pudor, da promessa consagrada do amor e do ódio e do ciúme e da punição, da indecisa esperança no sobrenatural, da voz incendiada das avós, da alucinação longa do crepúsculo dos deuses, da superstição maravilhosa de uma noite de luar, do imponderável testemunho dos salvadores mortais, do testemunho desfalecido dos redentores imortais, e da entontecida fantasia em que me afogo quando escrevo. Entretanto deito-me em cima do meu poema e adormeço. 

12
Set11

O sentimentalismo e a troika

João Madureira

 

Desde pequeno que tenho uma relação difícil com tudo o que remete para a esfera do sentimental. Ou melhor, quando me falam em algo sentimental fico logo com um pé atrás, e só não fico com os dois porque dessa forma caio.

 

Confesso que tenho uma relação complicada com os clichés e com os lugares comuns. Provocam-me urticária. Aprendi a ser persistente desde criança. Feitios. A esfera do sentimental lembra-me a nostalgia, a piedade, o pedantismo, a hipocrisia e os contos de fadas. A minha avó era muito anti-sentimental, apesar (ou por isso mesmo) da sua educação singela, da sua vida difícil e da sua viuvez precoce. Era autêntica. Por isso, eu tento sempre ser verdadeiro. Tento. Tento sempre. Mesmo que isso me prejudique. Feitios. Daí, provavelmente, apreciar Milan Kundera, pois escreve palavras severas contra o sentimentalismo e contra a mentira.

 

O escritor checoslovaco defende que o sentimentalismo é um disfarce, que colocamos em cima do mundo para não percebermos como vivemos. Quanto à mentira, as cinzas da utopia do comunismo (tarde, mas mais vale tarde do que nunca) aí estão para lhe dar razão. Toda a razão. Por isso tento, ainda, contrariar o sentimentalismo e opor-me a todo o tipo de totalitarismo, seja ele comunista ou fascista. Entre os dois venha o Diabo e escolha, se for capaz.

 

Sentimentalismo é, por exemplo, o presidente do Inatel, Vítor Ramalho, pagar cinco mil euros por uma entrevista, registada como trabalho de promoção, ao “País Positivo”, uma revista gratuita de carácter comercial e distribuída com o jornal Público. Na verdade, este tipo de trabalho de promoção dá muito jeito, não só ao putativo “País Positivo”, como ao Inatel e também a muitos autarcas em tempo de campanha eleitoral no sentido de promoverem, mais do que as potencialidades e as obras do concelho que dirigem, as respectivas campanhas eleitorais. E tudo à custa do erário público. Daí o país estar como está, cheio de dívidas e dirigido por políticos que, para comprarem as bandeirinhas, os cartazes, os espelhos, os chapéus, as esferográficas e os apitos, vendem a alma aos empreiteiros e aos seus sucedâneos, além de utilizarem o pretexto das entrevistas e artigos encomendados que custam pipas de dinheiro e são apenas, e só, eficazes manobras de propaganda eleitoral, tudo facturado em nome da autarquia e servido ao povo como trabalho jornalístico de primeira qualidade, quando toda a verborreia, vertida em papel de jornal, não passa de uma enorme efabulação publicada, repito e sublinho, em espaço comprado e pago a peso de ouro para propagandear, muitas das vezes, meias verdades, quando não mentiras descaradas. 

 

Vítor Ramalho disse que voltaria a fazer o mesmo. E estou em crer que os autarcas continuarão a comprar as entrevistas e os espaços comerciais em jornais de distribuição gratuita que servem para enganar os incautos e martirizar as consciências inquietas. Ou seja, a desonestidade compensa.

 

E o regabofe é tanto, e tão descarado, – e eu não sabia, como estou em crer que a grande maioria dos estimados leitores também não sabe, que os autarcas municipais podem acumular funções remuneratórias nas empresas municipais – que a troika impôs uma nova reforma administrativa a proibir os autarcas de poderem acumular esses cargos (tachos, chama-lhes o povo).

 

Mas reparem, não foram nem os nossos governantes, nem os nossos autarcas, os autores dessa proposta, foram uns senhores estrangeiros vestidos de homens da regisconta que, em apenas quinze dias, descobriram a ignomínia – além de elaborarem um programa que governará Portugal durante vários anos – e exigiram a sua extinção. Mas os homens da regisconta foram ainda mais longe ao proporem a redução de freguesias, que são constituídas unicamente pelos elementos da junta e pelos seus adversários derrotados, e de algumas câmaras que nem eleitores possuem para justificarem o estatuto de juntas de freguesia.

 

Miguel Relvas, um dos directores-gerais da troika em Portugal, dos 11 eufemísticamente denominados como ministros do Governo Português, garante que o objectivo é fazer uma redução do sector empresarial local. No entanto, os lóbis instalados ao nível do poder autárquico prometem forte oposição. Pudera! Mas Relvas garante mãozinhas de veludo: “O que se pretende é uma revolução tranquila, exigível, desejável e necessária”. Que a força esteja com ele e com a sua revolução sentimental. Valha-nos a Santa Hipocrisia, a mãe de todos os demagogos.

                                                                                                    

Da área do sentimentalismo é também a nomeação da directora-geral da troika, Assunção Cristas, para a área da Agricultura. A senhora até é simpática e rechonchudinha, muito na linha tradicional da mulher portuguesa, mas não é isso, com toda a certeza, o que lhe deu créditos para ser nomeada para o putativo governo da nação. Também estamos em crer que não foi a sua categoria de professora universitária de Direito Privado que convenceu o presidente da troika em Portugal, eufemísticamente denominado Primeiro-Ministro, a nomeá-la para a pasta da agricultura. Então o que foi? Simplesmente o pertencer a um partido (CDS) que faz parte da coligação da troika sediada em território luso. Ela mesmo reconhece: “Caí aqui de pára-quedas no sentido de que não tenho nenhuma anterior ligação à agricultura”. Eu repito, para não pensarem que é gafe: “Não tenho nenhuma anterior ligação à agricultura.” E adianta: “Mas, graças a Deus, os secretários de Estado [aqui deve ler-se secretários dos directores-gerais da troika] dominam bem todas as matérias.” Ou seja, a senhora é um simpático e redondo, verbo-de-encher. 

 

Mas atenção, nas suas propostas para ganhar a confiança dos agricultores e dinamizar o sector agrícola, que está à beira da liquidação total, propõe-se desbloquear verbas atrasadas do PRODER, reduzir o número de motoristas do seu putativo ministério, ir a Bruxelas sempre que possível, reduzir o número de gravatas para poupar no ar condicionado, mexer na mobilidade dos seus funcionários e mais meia dúzia de lugares comuns que qualquer estudante do secundário é capaz de expor depois de passar duas horas a estudar um qualquer texto da CAP sobre o assunto.

 

Da área do sentimentalismo são também os apelos de Pedro Passos Coelho para a boa vontade dos portugueses relativamente às medidas de austeridade impostas pela secção da troika que dirige. Mas, pelo que oiço, sinto e sei, o bom povo português começa a perder a boa vontade e a confiança que nele depositou nas últimas eleições legislativas.

 

De cada vez que fala de improviso mete medo aos empresários, incendeia as relações socais, atemoriza os pobres e aterroriza a classe média. E quando leva o discurso preparado, aquilo sai-lhe que nem um tiro de pólvora seca. Mas para não me acusarem de convencido, má-língua ou perigoso socialista, dou a voz ao Vasco Pulido Valente, que, ao que sei, foi companheiro de luta de Sá Carneiro, deputado do PSD e apoiante de Cavaco Silva. Ora então aí vai. E sem espinhas: “O discurso [do Pontal], que devia ser claro, acabou repetitivo, retórico e uma digressão desordenada por isto e por aquilo, insusceptível de orientar ou entusiasmar ninguém. Se o sr. primeiro-ministro não sabe escrever, arranje rapidamente quem escreva por ele.”

 

E como isto já vai um pouco extenso, sentimentalmente me despeço de todos vós com a promessa de que voltarei na próxima semana, se me deixarem. 

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